12/27/2023

Luciana (Conto), de Graciliano Ramos



LUCIANA

Ouvindo rumor na porta da frente e os passos conhecidos de tio Severino, Luciana entregou a Maria Júlia as revistas e as bonecas de pano, ergueu-se estouvada, saiu do corredor, entrou na sala, parou indecisa, esperando que a chamassem. Ninguém reparou nela. Papai e mamãe, no sofá, embebiam-se na palavra lenta e fanhosa de tio Severino, homem considerável, senhor da poltrona. Luciana adivinhava a consideração: os donos da casa escutavam, moviam a cabeça e aprovavam; na cozinha, resmungando, arreliando-se, a criada preparava café. Às vezes na família repetia-se uma frase que tinha peso de lei.

              Foi tio Severino quem disse.

              Ah!

E não se acrescentava mais nada.

Luciana quis aproximar-se das pessoas grandes, mas lembrou-se do que lhe tinha acontecido na véspera. Mergulhou em longa meditação. Andara com mamãe pela cidade, percorrera diversas ruas, satisfeita. Num lugar feio e escorregadio, onde a água da chuva empoçava, resistira, acuara, exigindo que pusessem ali paralelepípedos. Agarrada por um braço, intimada a continuar o passeio, tivera um acesso de desespero, um choro convulso, e caíra no chão, sentara-se na lama, esperneando e berrando. Em casa, antes de tirar-lhe a camisa suja, mamãe lhe infligira três palmadas enérgicas. Por quê? Luciana passara o dia tentando reconciliar-se com o ser poderoso que lhe magoara as nádegas. Agora, na presença da visita, essa criatura forte não anunciava perigo.

Luciana avizinhou-se do sofá nas pontas dos pés, imitando as senhoras que usam sapatos de tacão alto. Gostava desse exercício, convidava a irmã para brincar de moça. Encolhida e pálida, Maria Júlia cambaleava — e Luciana se arranjava só: prendia cordões numa caixa vazia, que se transformava em bolsa, com um pedaço de pau armava-se de sombrinha e lá ia remedando um pássaro que se dispõe a voar, inclinada para a frente, os calcanhares apoiados em saltos enormes e imaginários. Assim aparelhada, chamava-se d. Henriqueta da Boa-Vista. Manifestara-se à irmã e à cozinheira. Como as duas não admitiam que ela pudesse crescer de repente e mudar de nome, envolvera-as num largo desprezo e começara a entender-se com as paredes: ficava horas meneando-se, fazendo mesuras, dirigindo amabilidades às amigas invisíveis de d. Henriqueta da Boa-Vista.

Tio Severino era notável: vermelho, tinha maçarocas brancas no rosto, o beiço e o queixo rapados, a testa brilhante, sobrancelhas densas e óculos redondos. Entre os dentes amarelos a voz escorria, pausada, nasal, incompreensível. Luciana percebia as palavras, mas não atinava com a significação delas: arregalava os olhos claros, via a figura engelhada aumentar, a roupa escura e os sapatos pretos incharem como pneumáticos. Rondou por ali um instante, mas fatigou-se. Avistou no cabide o guarda-chuva de tio Severino e foi examiná-lo de perto, afastar as varetas, procurar um mecanismo por baixo do tecido. Desistiu da observação, meio decepcionada, e ia esgueirar-se para o corredor quando algumas sílabas da conversa indistinta lhe avivaram a recordação de outras sílabas vagas, largadas por um moleque na rua. Acercou-se do sofá, interrompeu o discurso do velho e repetiu bem alto as palavras do moleque. Papai e mamãe estremeceram, tio Severino engoliu em seco, murmurou:

              Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Luciana teve um deslumbramento, o coraçãozinho saltou, uma alegria doida encheu-a. Sentiu-se feliz e necessitou desabafar com alguém. Esquecendo-se de que naquele momento era d. Henriqueta da Boa-Vista, cruzou a sala em passo natural, os calcanhares tocando o chão, desembestou no corredor e exibiu-se a Maria Júlia. Espalhou as revistas e as bonecas, pôs-se a dançar em cima delas. Como a outra caísse no choro, afligiu-se: consolou-a, achou-a miúda, tão miúda que não servia para confidente. Regressou, muito leve, boiando naquela claridade que a envolvia e penetrava.

              Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Tio Severino tinha feito uma revelação extraordinária, e Luciana devia comportar-se como pessoa que sabe onde o diabo dorme. Voltou a caminhar nas pontas dos pés, de uma parede a outra, simulando não ver o sofá e a poltrona. Estava sendo observada, notavam nela sinais esquisitos, sem dúvida.

              Foi tio Severino quem disse.

              Ah!

Papai e mamãe, silenciosos, refletindo na opinião rouca do parente grande, com certeza diziam “Ah!” por dentro e orgulhavam-se da filha sabida. Luciana estirou-se, ganhou pelo menos cinco centímetros. Moça, moça completa, inteiramente

d. Henriqueta da Boa-Vista. Piscou o olho para tio Severino, convenceu-se de que ele também piscava o olho e a considerava

d. Henriqueta, séria, vagarosa, aprumada. Encostou-se à parede, enrugou a testa, alongou o beiço inferior, descansou as mãos na barriga. Assim, adquiria muitos anos e inspirava respeito.

A cena da véspera atravessou-lhe o espírito e importunou-a. Sentada numa poça de água suja, gritara, enlameara-se toda. Naquele despropósito, não era d. Henriqueta da Boa-Vista, não era, evidentemente. Reagira aos chamados e às razões de mamãe e em consequência aguentara três palmadas. A recordação delas atenazou Luciana: as rugas da testa desfizeram-se, o beiço encolheu-se, os calcanhares desceram, os braços tombaram esmorecidos. D. Henriqueta da Boa-Vista não se sentaria numa barroca cheia de lama.

              Que vergonha!

Pouco a pouco a indignação transferiu-se e arrefeceu. A culpada era mamãe, que tivera a ideia infeliz de meter-se num caminho onde não havia paralelepípedos. Mundo bem estranho. Por que era que existiam lugares sem paralelepípedos? Este pensamento obliterou o castigo e a humilhação. Lugares diferentes da calçada tranquila, do quintal sombrio. Na esquina do quarteirão principiava o mistério: barulho de carros, gritos, cores, movimento, prédios altos demais. Talvez o diabo dormisse num deles. Em qual? Desanimada, confessou interiormente a sua ignorância. Não tinha notícia do que havia além das portas de vidro onde se expunham objetos inúteis. E relativamente ao diabo, só podia garantir, baseada nas informações da cozinheira, que ele era preto, possuía chifres e rabo. Chifres e rabo. Para quê? Admirou-se dessa extravagância. Que precisão tinha ele de chifres e de rabo? Preto, estava certo. No bairro moravam alguns pretos, sem chifres nem rabo. E se a cozinheira estivesse enganada? No espírito de Luciana, pouco inclinado a dúvidas, a pergunta esmoreceu, mas a indecisão momentânea descontentou-a: se privassem o diabo daqueles apêndices, ele ficaria reduzido, um brinquedo ordinário. Estremeceu maravilhada, num susto que encerrava prazer, uma visão patenteou-lhe a figura monstruosa. Certamente o diabo tinha gênio ruim, em horas de zanga batia nas pessoas com o rabo, espetava-as com os chifres. E retinto, da cor de seu Adão carroceiro. Mas seu Adão era bom, seu Adão era ótimo: quando via crianças chorando extraviadas, recolhia-as, contava histórias lindas, ria mostrando os dentes alvos. Procurou reconstituir uma das histórias, desviou-a lembrando-se do que lhe sucedia ao apear da carroça e apresentar-se a mamãe.

              Tenha paciência, dona, pedia o negro.

Mexia na carapinha, sorria inquieto, afastava-se levando a afirmação de que a pequena amiga não seria punida. Mamãe não cumpria a palavra.

              Está direito, seu Adão. Muito obrigada. Logo que ele dava as costas, enfurecia-se:

              Esta menina tem parte com o diabo.

E puxava as orelhas de Luciana. Por quê? Certamente o diabo também fugia de casa. Lisonjeada e medrosa com a terrível associação, Luciana persistia na desobediência, os puxões de orelhas não a livravam da curiosidade. Interrogara seu Adão a respeito dos hábitos da obscura personagem, mas como dispunha de vocabulário escasso, não se explicara bem e obtivera respostas ambíguas. Seu Adão, apesar de negro, não tinha parte com o diabo, provavelmente um sujeito sisudo, triste, como tio Severino. O beiço franzido e o olho duro de tio Severino. Que olho! Entrava-lhe na carne, um espeto, e as mãos dela esfriavam. Naquele dia, porém, o velho não lhe inspirava receio. Maiores que os dele eram os poderes do diabo, com quem Luciana se julgava de alguma forma ligada.

              Esta menina tem parte com o diabo.

A fala ranzinza feria-lhe os ouvidos, dedos finos e nervosos agarravam-na. Um susto, a impressão de ter perdido qualquer coisa e achar-se em risco. Findo o sobressalto, imaginara-se protegida por entidades vigorosas e imortais. Agora a frase de tio Severino firmava-lhe a convicção.

Ergueu-se de novo nas pontas dos pés, atirou na sala as suas longas pernadas sacudidas de ave. D. Henriqueta da Boa-Vista pôs-se a dialogar mentalmente, comentando a voz fanhosa, os óculos, as maçarocas que enfeitavam as bochechas de tio Severino. Realmente ele se equivocava: d. Henriqueta da Boa-Vista reconhecia a própria insuficiência. Cócegas arranhavam a garganta de Luciana, um riso agudo agitou-a. Alegrava-a o pensamento de que os outros se iludiam, considerou-se atilada, capaz de provocar a admiração de criaturas experientes. Com certeza possuía as qualidades necessárias para instruir-se e confirmar o juízo de tio Severino. Por que era que ele não se referira a Maria Júlia? Coitada. Encolhida e bamba, Maria Júlia manejava bonecas, sossegadinha, no corredor e na sala de jantar. D. Henriqueta da Boa-Vista era um azougue: tinha jeito de quem sabe onde o diabo dorme. Ainda não sabia, mas haveria de saber. E cantava no íntimo. As solas dos sapatos mal tocavam o chão, o corpo magro balançava, indo e vindo, movendo as asas. Descobriria o lugar onde o diabo dorme, começaria a busca no dia seguinte. Não alcançava o ferrolho da porta, mas quando mamãe se distraísse, arrastaria de manso uma cadeira, subiria à janela e saltaria à calçada, sem rumor, como de ordinário. Maria Júlia, recortando folhas de revistas, não perceberia a fuga. E d. Henriqueta da Boa-Vista se largaria pelo mundo, importante, os calcanhares erguidos, em companhia de seres enigmáticos que lhe ensinariam a residência do diabo. Dobraria a esquina, perder-se-ia na multidão, olharia os objetos arrumados por detrás dos vidros. Mais tarde seu Adão a embarcaria na carroça: — “Foi um dia uma princesa bonita que tinha uma estrela na testa.” Luciana recusava as princesas e as estrelas. Seu Adão coçaria o pixaim, encolheria os ombros. Levá-la-ia para a gaiola. Mamãe recebê-la-ia zangadíssima. E daria, quando seu Adão se retirasse, várias chineladas em d. Henriqueta da Boa-Vista. Sem dúvida. Mas isso ainda estava muito longe e Luciana aborrecia tristezas.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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