12/27/2023

Um ladrão (Conto), de Graciliano Ramos


UM LADRÃO

O que o desgraçou por toda a vida foi a felicidade que o acompanhou durante um mês ou dois. Coisa estranha: sem nenhuma preparação, um tipo se aventura, anda para bem dizer de olhos fechados, comete erros, entra nas casas sem examinar os arredores, pisa como se estivesse na rua — e tudo corre bem. Pisa como se estivesse na rua. É aí que principia a dificuldade. Convém saber mexer-se rapidamente e sem rumor, como um gato: o corpo não pesa, ondula, parece querer voar, mal se firma nas pernas, que adquirem elasticidade de borracha. Se não fosse assim, as juntas estalariam a cada instante, o homem gastaria uma eternidade para deslocar-se, o trabalho se tornaria impossível. Mas ninguém caminha desse jeito sem aprendizagem, e a aprendizagem não se realizaria se as primeiras tentativas fossem descobertas. Deve haver uma divindade protetora para as criaturas estouvadas e de articulações perras. No começo usam sapatos de corda — e ninguém desconfia delas: conseguem não dar nas vistas, porque são como toda a gente. Nenhum polícia iria acompanhá-las. Se não batessem nos móveis e não dirigissem a luz para os olhos das pessoas adormecidas, não cairiam na prisão, onde ganham os modos necessários ao ofício. Aí apuram o ouvido e habituam-se a deslizar. Cá fora não precisarão sapatos de banho ou de tênis: mover-se-ão como se fossem máquinas de molas bem azeitadas rolando sobre pneumáticos silenciosos.

O indivíduo a que me refiro ainda não tinha alcançado essa andadura indispensável e prejudicial: indispensável no interior das casas, à noite; prejudicial na rua, porque denuncia de longe o transeunte. Sem dúvida o homem suspeito não tem só isso para marcá-lo ao olho do tira: certamente possui outras pintas, mas é esse modo furtivo de esquivar-se como quem não toca no chão que logo o caracteriza. O sujeito não sabia, pois, andar assim, e passaria despercebido na multidão. Por enquanto nenhuma esperança de se acomodar àquele ingrato meio de vida. E Gaúcho, o amigo que o iniciara, havia sido franco: era bom que ele escolhesse ocupação menos arriscada. Mas o rapaz tinha cabeça dura: animado por três ou quatro experiências felizes, estava ali, rondando o portão, como um técnico.

Entrara na casa, fingindo-se consertador de fogões, e atentara na disposição das peças do andar térreo. Arrependeu-se de não ter estudado melhor o local: devia ter-se empregado lá como criado uma semana. Era o conselho de Gaúcho, que tinha prática. Não o escutara, procedera mal. Nem sabia de que lado da sala de jantar ficava a porta da copa.

Afastou-se, receoso de que alguém o observasse. Desceu a rua, entrou no café da esquina, espiou as horas e teve desejo de tomar uma bebida. Não tinha dinheiro. Doidice beber álcool em semelhante situação. Procurou um níquel no bolso, estremeceu. As mãos estavam frias e molhadas.

Tem de ser.

Tornou a olhar o relógio. Não é que se havia esquecido das horas? Passava de meia-noite. Felizmente a rua topava o morro e tinha uma entrada. À exceção dos moradores, pouca gente devia ir ali.

Afinal aquilo não tinha importância. Agora temia encontrar um conhecido. O que mais o aperreava era o diabo da tremura nas mãos. Estava quase certo de que o garçom lhe estranhava a palidez. Saiu para a calçada e ficou indeciso, olhando o morro, enxugando no lenço os dedos molhados, dizendo pela segunda vez que aquilo não tinha importância. Como? Sacudiu a cabeça, aflito. Que é que não tinha importância?

Seria bom recolher-se. Sorriu com uma careta e subiu a ladeira, colando-se às paredes. Como recolher-se? Vivia na rua. À medida que avançava a frase repetida voltou e logo surgiu o sentido dela. Bem. A perturbação diminuía. O que não tinha importância era saber se a porta da copa ficava à direita ou à esquerda da sala de jantar. Ia levar talheres? Hem? Ia correr perigo por causa de talheres? Mas pensou num queijo visto sobre a geladeira e sentiu água na boca.

Aproximou-se do morro, as pernas bambas, tremendo como uma criança. Provavelmente a copa era à direita de quem entrava na sala de jantar, perto da escada.

Tem de ser.

Foi até o fim da calçada e, margeando a casa do fundo, passou para o outro lado. Parou junto ao portão, encostou-se a ele, receando que o vissem. Se estirasse o pescoço, talvez o guarda, lá embaixo, lhe percebesse os manejos. O coração bateu com desespero, a vista se turvou. Não conseguiria enxergar a esquina e o guarda.

Encolheu-se mais, olhou a janela do prédio fronteiro, imaginou que por detrás da janela alguém o espreitava, talvez o dono da loja de fazenda que o examinara com ferocidade, através dos óculos, quando ele estacionara junto do balcão. Tentou libertar-se do pensamento importuno. Por que haveriam de estar ali, àquela hora, os mesmos olhos que o tinham imobilizado na véspera?

De repente sentiu grande medo, pareceu-lhe que o observavam pela frente e pela retaguarda, achou-se impelido para dentro e para fora do jardim, a rua encheu-se de emboscadas. A janela escureceu, os óculos do homem da loja sumiram-se. Pôs-se a


tremer, as ideias confundiram-se, o projeto que armara surgiu-lhe como fato realizado. Encostou-se mais ao portão.

Durante minutos lembrou-se da escola do subúrbio e viu-se menino, triste, enfezado. A professora interrogava-o pouco, indiferente. O vizinho mal-encarado, que o espetava com pontas de alfinetes, mais tarde virara soldado. A menina de tranças era linda, falava apertando as pálpebras, escondendo os olhos verdes.

Um estremecimento dispersou essas recordações meio apagadas. Quis fumar, temeu acender um cigarro. Levantou a cabeça, distraiu-se vendo um bonde rodar longe, na boca da rua.

Sim, não, sim, não. Duas ideias voltaram: o homem que se ocultava por detrás da janela estava aquecido e tranquilo, a menina das tranças escondia os olhos verdes e tinha um sorriso tranquilo. Os dentes bateram castanholas, e isto alarmou-o: talvez alguém ouvisse aquele barulho esquisito de porco zangado. Mordeu a manga do paletó, o som esmoreceu.

Sim, não, sim, não. Havia um relógio na sala de jantar, estava quase certo de que escutava as pancadas do pêndulo. Os dentes calaram-se, felizmente já não havia precisão de mastigar o tecido.

Mudou de posição, espreguiçou-se, os receios esfriaram. Agora se mexia como se não houvesse nenhum perigo. Segurou-se aos ferros da grade, uma energia súbita lançou-o no jardim. Pisando os canteiros, subiu a calçada, arriou no sofá do alpendre. Se o descobrissem ali, diria que tinha entrado antes de se fechar o portão e pegara no sono. Era o que diria, embora isto não lhe servisse.

Para que pensar em desgraças? Levantou-se, chegou-se à porta, meteu a caneta na fechadura. O tremor das mãos havia desaparecido. A lingueta correu macia, uma folha da porta se descerrou. Estacou surpreendido: como nunca havia trabalhado só, imaginara que a fechadura emperrasse, que fosse preciso trepar no sofá e cortar com diamante um pedaço de vidraça. Deitaria por baixo da porta um jornal aberto, enrolaria a mão no lenço e daria um murro no vidro, que iria cair sem ruído em cima do papel. Agarrar-se-ia ao caixilho com as pontas dos dedos, suspender-se-ia, entraria na casa, a cabeça para baixo, as mãos procurando o chão. Ficaria pendurado algum tempo, feito um macaco, os dedos dos pés curvos à borda da abertura, como ganchos. Era quase certo não se sair bem nesse pulo arriscado. Falharia, sempre falhava.

Procurou a vidraça, inutilmente: não existia vidraça. Nem existia jornal. Estupidez fantasiar dificuldades.

Entreabriu a porta, mergulhou na faixa de luz que passou pela fresta, correu o trinco devagarinho. Avançou, temendo esbarrar nos móveis. Acostumando a vista, começou a distinguir manchas: cadeiras baixas e enormes que atravancavam a saleta. Escorregou para uma delas, o coração aos baques, o fôlego curto. Afundou no assento gasto. As rótulas estalaram, as molas do traste rangeram levemente. Ergueu-se precipitado, encostou-se à parede, com receio de vergar os joelhos. Se as juntas continuassem a fazer barulho, os moradores iriam acordar, prendê-lo. Achou-se fraco, sem coragem para fugir ou defender-se. Acendeu a lâmpada e logo se arrependeu. O círculo de luz passeou no soalho, subiu uma cadeira e sumiu-se. A escuridão voltou. Temeridade acender a lâmpada.

Penetrou na sala de jantar, escancarando muito os olhos. Agora os objetos estavam quase visíveis. Uma sombra alvacenta descia pela escada, havia luz no andar de cima.

Bem. A porta da copa, um buraco negro, ficava à direita, como ele tinha suposto. Vira um queijo sobre a geladeira dois dias antes. Chegou-se à escada, apoiou-se ao corrimão, voltado para a copa. Realmente não tinha fome. Sentia uma ferida no estômago, mas a boca estava seca. Encolheu os ombros. Estupidez arriscar-se tanto por um pedaço de queijo.

Subiu um degrau, parou arfando, subiu outros, experimentando uma sensação de enjoo. A casa mexia-se, a escada mexia-se. A secura da boca desapareceu. Dilatou as bochechas para conter a saliva e pensou no queijo, nauseado. Adiantou-se uns passos, engoliu o cuspo, repugnado, entortando o pescoço.

Tem de ser.

Repetiu a frase para não recuar. Apesar de ter alcançado o meio da escada, achava difícil continuar a viagem. E se alguém estivesse a observá-lo no escuro? Lembrou-se do sujeito da loja de fazenda. Talvez ele fosse o dono da casa, estivesse ali perto, vigiando como um gato. Pensou de novo na menina da escola primária, no sorriso dela, nas pálpebras que se baixavam, escondendo olhos verdes, de gato. Desgostou-se por estar vacilando, perdendo tempo com miudezas.

Chegou ao fim da escada, parou escutando, enfiou por um corredor onde vários quartos desembocavam. Fugiu de uma porta iluminada e encaminhou-se à sala, com a esperança de encontrá-la deserta. O medo foi contrabalançado por um sentimento infantil de orgulho. Realizara uma proeza, sim senhor, só queria ouvir a opinião de Gaúcho. Se não acontecesse uma desgraça, procuraria Gaúcho no dia seguinte. Se não acontecesse uma desgraça. Benzeu-se arrepiado. Deus não havia de permitir infelicidade. Tolice pensar em coisas ruins. Contaria a história no dia seguinte, sem falar no medo, e Gaúcho aprovaria tudo, sem dúvida.

Torceu a maçaneta, devagarinho: felizmente a porta não estava fechada com chave. Aterrorizou-se novamente, mas surgiu- lhe de supetão a ideia singular de que o perigo estava nos quartos, e na sala poderia esconder-se. Entrou, cerrou a porta, fez um gesto cansado, respirou profundamente, afirmou que estava em segurança. A tontura devia ser por causa da fome. Também um desgraçado como ele meter-se em semelhante empresa! Tinha capacidade para aquilo? Não tinha. Um ventanista. Que é que sabia fazer? Saltar janelas. Um ventanista, apenas. A vaidade infantil murchou de repente. Se o descobrissem, nem saberia fugir, nem acertaria com a saída. O que o preocupava naquele momento, porém, era menos o receio de ser preso que a convicção da própria insuficiência, a certeza de que ia falhar. As mãos tremeriam, as juntas estalariam, movimentos irrefletidos derrubariam móveis.

Apertou as mãos, subitamente resolvido a acabar depressa com aquilo, fixou a atenção na cama enorme, onde um casal de velhos dormia. Baixou-se, alarmado: se uma das pessoas acordasse, vê-lo-ia parado, como estátua. Avançou, de cócoras, foi esconder-se por detrás da cabeceira da cama, permaneceu encolhido, até sentir cãibras nas pernas. As janelas estavam abertas, a luz da rua banhava a sala.

Virando o rosto, viu-se no espelho do guarda-vestidos e achou-se ridículo, agachado, em posição torcida. Voltou-se, livrou- se da visão desagradável, avistou um braço caído fora da cama. Braço de velha, braço de velha rica, de uma gordura nojenta. A mão era papuda e curta, anéis enfeitavam os dedos grossos. Pensou em tirar os anéis com agulhas, mas afastou a ideia. Trazia no bolso as agulhas, porque Gaúcho lhe ensinara o uso delas. Não se arriscaria a utilizá-las. Gaúcho tinha nervos de ferro. Tirar anéis da mão de uma pessoa adormecida! Que homem! Anos de prática, diversas entradas na casa de detenção.

Engatinhando, aproximou-se do guarda-vestidos, abriu-o e começou a revistar a roupa. Descobriu uma carteira e guardou-a sem reparar no que havia dentro dela. Interrompeu a busca, afastou-se, mergulhou no corredor, parou à porta do quarto iluminado. Examinou a carteira, achou várias notas. Tentou calcular o ganho mas a luz do corredor era insuficiente. Escondeu o dinheiro, soltou um longo suspiro.

Devia retirar-se. Deu alguns passos, recuou vexado, receoso das pilhérias que Gaúcho iria jogar-lhe quando soubesse que ele tinha deixado uma casa sem percorrê-la. O terror desaparecera: estava cheio de espanto por haver escapado àquele imenso perigo. Realmente não tinha escapado, mas julgava-se quase livre.

Abriu uma porta a ferro, acendeu a lâmpada, viu um oratório. Desejou apoderar-se dos resplendores das imagens e do bordão de S. José, de ouro, pesado. Afastou-se, com medo da tentação. Não cometeria semelhante sacrilégio.

Andou noutras peças, arrecadou objetos miúdos. Queria penetrar no quarto iluminado, mas não conseguia saber o que o empurrava para lá. Boiavam-lhe no espírito dois esboços de projetos: contar o dinheiro, coisa que não poderia fazer no corredor, e descrever a Gaúcho a aventura.

Destrancou a porta, entrou, esquivou-se para trás de um armário. Havia no quarto uma cama estreita, mas nem reparou na pessoa que estava deitada nela. Tirou do bolso a carteira, ficou algum tempo olhando, como um idiota, papéis e dinheiro. Principiou uma soma, que se interrompeu muitas vezes: os dedos tremiam, os números atrapalhavam-se. Impossível saber quanto havia ali. Machucou as notas na algibeira da calça. Bem, contaria depois a grana, quando estivesse calmo. Abandonaria o morro e iria viver num subúrbio distante, onde ninguém o conhe-cesse, largaria aquela profissão, para que não tinha jeito. Nenhum jeito. Não diria nada a Gaúcho, evitaria indivíduos assim comprometedores. Ia endireitar, criar vergonha, virar pessoa decente, arranjar um negócio qualquer longe de Gaúcho. Sim senhor. Apalpou o rolo de notas através do pano, meteu o botão na casa da algibeira. Criar vergonha, sim senhor, o que tinha ali dava para criar vergonha.

Olhou a cama, julgou a princípio que estava uma criança, mas viu um seio e estremeceu. Voltou-se, não devia arriscar-se à toa. Deu uns passos em direção à porta, deteve-se, curvou-se, observou a moça. Achou nela traços da menina de olhos verdes. O coração bateu-lhe demais no peito magro, pareceu querer sair pela boca.

Estupidez.

Aprumou-se e desviou a cara. Estupidez. Tentou pensar em coisas corriqueiras, encheu os pulmões, contou até dez. A tatuagem da perna de Gaúcho era medonha, uma tatuagem indecente; àquela hora o café da esquina devia estar fechado. Tornou a contar até dez, esvaziando os pulmões. Um acesso de tosse interrompeu-lhe o exercício.

Retirou-se precipitado, fazendo esforço enorme para se conservar em silêncio. Faltou-lhe o ar, as lágrimas saltaram-lhe, as veias do pescoço endureceram como cordas esticadas. Atravessou o corredor desembestadamente, desceu a escada, meio doido, sacudindo-se desengonçado, a mão na boca. Sentou-se no último degrau e esteve minutos agitado por pequenas contrações, um som abafado morrendo-lhe na garganta, asmático e penoso, resfolegar de cachorro novo. Pôs-se a arquejar baixinho, extenuado, procurando livrar-se de um pigarro teimoso que lhe arranhava a goela. Enxugou um fio de baba, pouco a pouco se recompôs. Certamente as pessoas do andar de cima tinham despertado quando ele fugira correndo.

Virou a cabeça, puxou a orelha, agoniado. Tinha a ilusão de perceber o trabalho das traças que roíam pano lá em cima, nos armários.

Devia ter trazido alguma roupa para vender ao intrujão.

Um apito na rua deu-lhe suores frios, um galo cantou perto. Depois tudo sossegou, avultaram no silêncio rumores indeterminados: provavelmente pés de baratas se moviam na parede.

Ergueu-se, com fome, libertou-se de terrores, procurou orientar-se. As cócegas na garganta desapareceram. Tolice prestar atenção à marcha das baratas na parede e ao apito do guarda, na rua. Nada daquilo era com ele, estava livre de perigo. Livre de perigo. Se a tosse voltasse, abafá-la-ia mordendo a manga. Temperou a garganta, baixinho. Tranquilo. Tranquilo e com fome. Voltou-se para um lado e para outro, hesitou entre a saleta e a copa. O pigarro sumiu-se completamente, a boca encheu- se de saliva. Aguçou ainda o ouvido: nem apito nem canto de galo, as pernas das baratas se tinham imobilizado. Desejava entrar na copa, comer um bocado. Agora que a sufocação e a secura da boca haviam desaparecido, bem que precisava mastigar qualquer coisa.

Apertou o botão da lâmpada, a luz fraca lambeu a cristaleira, subiu a mesa, dividiu-a pelo meio. Descansou a lâmpada na toalha. Bambeando, amolecido, retirou da algibeira as notas machucadas, tentou novamente contá-las, aproximando-as muito do pequeno foco elétrico. Recomeçou a contagem várias vezes, afinal julgou acertar, convenceu-se de que havia ali dinheiro suficiente para um botequim no subúrbio. Alisou as cédulas, dobrou-as, guardou-as, abotoou-se. Um capital. Sentia frio e fome. O guarda devia estar cochilando lá embaixo, à esquina do café. Levantou a gola. Um capital. Estabelecer-se-ia com um café no subúrbio, longe de Gaúcho e daqueles perigos. Café modesto, com rádio, os fregueses, pessoas de ordem, discutindo futebol. Tinha jeito para isso. Ouviria as conversas sem tomar partido, não descontentaria ninguém e fiscalizaria os empregados rigorosamente. Um patrão, sim senhor, fiscalizaria os empregados rigorosamente. E Gaúcho nem o reconheceria se o visse, gordo, sério, bulindo na caixa registradora. Naturalmente. Apalpou a carteira, sentiu-se forte. Bem. Contanto que não fossem fuxicar política no café. Esportes, coisas inofensivas, perfeitamente; mas cochichos, papéis escondidos, isso não. Tudo na lei, nada de complicações com a polícia.

Aprumou-se, esqueceu o lugar onde estava. Uma dorzinha fina picou-lhe o estômago. Tomou a lâmpada, encaminhou-se à copa, firme como um proprietário. O medo se havia sumido. Para bem dizer, era quase um dono de botequim no subúrbio.

De repente assaltou-o um desejo besta de rir, riu baixo, temendo engasgar-se e tossir de novo. Sacolejou-se muito tempo, e a sombra dele dançava na luz que se espalhava no soalho. Tinha chegado fazendo tolices, nem acertava com as portas, um doido. Largara-se pela escada abaixo, aos saltos. E ninguém acordara, parecia que os moradores da casa estavam mortos. Então para que todos os cuidados, todas as precauções? Gaúcho fazia trabalho direito, tirava anéis das pessoas adormecidas, com agulhas. Homem de merecimento. E, apesar de tudo, mais de vinte entradas na casa de detenção, viagens à colônia correcional, fugas arriscadas. Inútil a ciência de Gaúcho. Quando Deus quer, as pessoas não acordam.

Onde estaria o queijo que na antevéspera se achava em cima da geladeira? Procurou-o debalde. Entrou na cozinha, mexeu nas caçarolas, encontrou pedaços de carne, que devorou quase sem mastigar. Lambeu os dedos sujos de gordura, abriu devagarinho a torneira da pia, lavou as mãos, enxugou-as ao paletó. Respirou, consolado. A tontura desapareceu.

Recordou os disparates que praticara. Santa Maria! Desastrado. Se falasse a Gaúcho com franqueza, ouviria um sermão.

Mas não falaria, não queria mais relações com Gaúcho, ia abrir um café no arrabalde.

Voltou à sala de jantar e apagou a lâmpada. Aquela gente em cima tinha um sono de pedra.

Veio-lhe a ideia extravagante de subir de novo a escada e tornar a descê-la, convencer-se de que não era tão desazado como parecia. E lembrou-se da menina dos olhos verdes, que lhe surgiu na memória com um seio descoberto. Absurdo. Quem estava com o seio à mostra era a moça que dormia no andar de cima. Como seriam os olhos dela?

Duas pancadas encheram a casa. E um tique-taque de relógio começou a aperreá-lo. Pouco antes havia silêncio, mas agora o tique-taque martelava-lhe o interior.

Dirigiu-se à saleta, voltou com a tentação de entrar nos quartos, trazer de lá alguns objetos para vender ao intrujão. Parecia- lhe que, recomeçando o trabalho em conformidade com as regras ensinadas por Gaúcho, de alguma forma se reabilitaria. O maço de notas, adquirido facilmente, nem lhe dava prazer.

Pisou a escada e estremeceu. As razões que o impeliam sumiram-se, ficou o peito descoberto. Esforçou-se por imaginar o botequim do arrabalde. Inutilmente. Subiu, parou à entrada do corredor.

Que doidice!

Foi até a porta do quarto iluminado, empurrou-a, certificou-se de que a mulher continuava a dormir.

E daí em diante, até o desfecho medonho, não soube o que fez. No dia seguinte, já perdido, lembrou-se de ter ficado muito tempo junto à cama, contemplando a moça, mas achou difícil ter praticado a maluqueira que o desgraçou. Como se tinha dado aquilo? Nem sabia. A princípio foi um deslumbramento, a casa girando, a cama girando, ele também girando em torno da mulher, transformado em mosca. Girando, aproximando-se e afastando-se, mosca. E a necessidade de pousar, de se livrar dos giros vertiginosos. A figura de Gaúcho esboçou-se e logo se dissipou, os óculos do homem da loja e os vidros da casa fronteira confundiram-se um instante e esmoreceram. Novas pancadas de relógio, novos apitos e cantos de galos, chegaram-lhe aos ouvidos, mas deixaram-no indiferente, voando. E aconteceu o desastre. Uma loucura, a maior das loucuras: baixou-se e espremeu um beijo na boca da moça.

O resto se narra nos papéis da polícia, mas ele, zonzo, moído, conseguiu dar informações incompletas e contraditórias. É em vão que o interrogam e machucam. Sabe que ouviu um grito de terror e barulho nos outros quartos. Lembra-se de ter atravessado o corredor e pisado o primeiro degrau da escada. Acordou aí, mas adormeceu de novo, na queda que o lançou no andar térreo. Teve um sonho rápido na viagem: viu cubículos sujos povoados de percevejos, esteiras no chão úmido, caras horríveis, levas de infelizes transportando vigas pesadas na colônia correcional. Insultavam-no, choviam-lhe pancadas nas costas cobertas de pano listrado. Mas os insultos apagaram-se, as pancadas findaram. E houve um longo silêncio.

Despertou agarrado por muitas mãos. De uma brecha aberta na testa corria sangue, que lhe molhava os olhos, tingia de vermelho as coisas e as pessoas. Um velho empacotado em cobertores gesticulava no meio da escada, seguro ao corrimão. E um grito de mulher vinha de cima, provavelmente a continuação do mesmo grito que lhe tinha estragado a vida.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024. 

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