3/15/2025

O Soldadinho de Chumbo (Hans Christian Andersen), por Monteiro Lobato

 

O SOLDADINHO DE CHUMBO

Era uma vez um batalhão de vinte e cinco soldadinhos de chumbo, todos irmãos, porque tinham sido feitos do mesmo pedaço de cano.

Traziam mosquetes ao ombro e conservavam-se perfeitamente esticadinhos no bonito uniforme vermelho e azul.

Logo que foram tirados da caixa de papelão ouviram um grito de surpresa de um menino que pulava de contente: "Soldadinhos de chumbo!" Eles haviam sido dados de presente a esse menino no dia dos seus anos e agora estavam perfilados em cima da mesa. Cada qual era exatamente semelhante aos demais, exceto um, que tinha uma perna só. Foi o último a ser fundido e faltou um bocadinho de chumbo. Apesar disso perfilava-se tão bem na perna só como os outros nas duas — e justa-mente por ser perneta tornou-se um personagem célebre.

A mesa estava cheia de outros brinquedos, entre os quais um lindo castelinho de papelão. Através das minúsculas janelas a gente podia espiar o interior das salas. Defronte havia um pequeno lago de espelho, com várias árvores em redor, dando a impressão de um verdadeiro lago de água. Cisnes de massa nadavam sobre o lago, refletindo-se na água. O mais apreciado de todos, porém, era uma pequenina dama de pé na entrada do castelo também recortada em papelão. Vestia vestido de musselina e trazia ao ombro xalinho azul preso com uma rosa de ouropel metálico, tão grande como a cara dela. Parecia uma dançarina pelo modo de ter as mãos à cintura e uma das pernas erguida — tão erguida que o soldadinho não a notou e julgou que também ela fosse perneta.

— Está ali uma boa mulher para mim, pensou o soldadinho; mas a maçada é que é rica e vive num grande castelo, ao passo que eu nada possuo e moro numa caixa de papelão com vinte e quatro companheiros. Não há nessa caixa lugar para uma tão notável dama. Não obstante isso vou travar relações com ela — e o soldadinho perneta, que havia caído de muito mau jeito junto à tampa da caixa, mesmo assim ficou a espiar amorosamente a dançarininha do castelo.

Quando anoiteceu os outros soldados foram postos dentro da caixa e todos da casa recolheram-se para dormir. Só ficou de fora o perneta, porque como houvesse caído não foi notado. Logo que todos se retiraram, os brinquedos de cima da mesa puseram-se a brincar, com grande desespero dos soldadinhos da caixa, que não podiam erguer a tampa. Mais coisas havia sobre a mesa — um quebra-nozes, que começou a dar pulos, e um lápis, que se equilibrou de pé na ponta com grande habilidade. O barulho foi tal que o canarinho da gaiola acordou em seu poleiro, pondo-se a falar — e em verso, como os canários gostam de fazer. Só não se moveram dos seus lugares a dançarina e o soldadinho perneta, que não tirava dela os olhos um só instante.

Nisto o relógio bateu as doze pancadas da meia-noite — e craque! uma caixinha de segredo, que também lá estava, abriu-se de repente, projetando para o ar um saci preto a fazer caretas.

— Soldadinho, disse o saci, cuidado com as coisas proibidas!

O soldadinho fingiu nada ouvir.

— Espere até amanhã, aconselhou o saci.

Na manhã seguinte, quando as crianças se levantaram, o soldadinho foi posto no peitoril da janela ; súbito, ou por artes do saci ou por algum golpe de vento, a vidraça abriu-se e lá caiu ele de ponta cabeça na rua, duma altura de três andares. Foi uma queda horrível. Ficou com a baioneta e a cabeça enterradas no chão e a perninha para o ar.

O menino e mais sua ama logo apareceram na rua em procura dele; mas não o encontraram, embora por um triz não o pisassem. Se Me pudesse gritar "Estou aqui!" teria sido achado, mas um soldado que está de sentinela não tem ordem de gritar coisa nenhuma que não seja do regulamento.

Depois começou a chover. Gotas caíam cada vez mais apressadas e grossas até que desabou um verdadeiro temporal.

Quando o aguaceiro amainou, dois meninos que vinham passando viram-no e gritaram: "Olhe o que está ali! Um soldadinho de chumbo. Bom para navegar numa barquinha de papel."

E fizeram uma barquinha de papel e botaram o soldadinho dentro e soltaram a pequena embarcação num enxurro vermelho que ainda corria pela beira da calçada, pondo-se a correr ao lado, batendo palmas. Que enxurro forte era aquele! Corria apressado, estreitando-se num ponto, alargando-se logo adiante — e levava a barquinha aos trancos, ora veloz, ora mais vagarosa nos remansos. Em certos lugares formava turbilhão e a nave de papel girava tão depressa que o soldadinho de chumbo tremia dentro dela; mas não perdia a compostura nem fazia caretas de medo, sempre firme com o mosquete ao ombro.

De repente a barquinha meteu-se por debaixo duma ponte sob a qual passava o enxurro.

— Para onde irei indo eu? pensou o soldadinho ao entrar naquele escuro. Se a mocinha do castelo estivesse aqui ao meu lado não seria nada...

Nisto apareceu uma ratazana, dessas que moram nos esgotos.

— Tem passe? disse ela. Se tem, mostre-o.

Mas o soldadinho não murmurou uma só palavra de resposta e segurou ainda mais firme o seu mosquete. A barquinha continuou a deslizar e a ratazana seguiu-a, furiosa, arreganhando os dentes e gritando para os cavacos e ciscos que também boiavam na água: Prendam-no! Ele não pagou passagem nem mostrou nenhum passe.

Ninguém o prendeu e a barquinha seguiu caminho, sempre veloz, até que a luz do dia se mostrou de novo do outro lado da ponte. Nesse momento o soldadinho ouviu um grande rumor capaz de meter medo a outro que fosse menos valente. Era o barulho das águas que depois de acabada a ponte se precipitavam num grande bueiro de esgoto. Perigo enorme, o mesmo que ameaçaria um bote de gente grande ao ser arrastado para uma grande cachoeira.

E a barquinha precipitou-se no abismo, com o soldadinho tão firme como sempre. Ele nem piscava. A frágil embarcação não pôde resistir; encheu-se d’água e foi afundando, com o papel encharcado a desfazer-se. A água já dava pelo pescoço do soldadinho; depois cobriu-o inteiro. Nesse momento ele pensou na dançarininha que seus olhos nunca mais veriam e veio-lhe à memória o estribilho duma velha canção:

Por entre lanças e espadas
Lá vai o heróico soldado,
Pois cair na dura luta
Sempre foi seu triste fado.

Mas a barquinha não resistia mais; abriu-se em dois pedaços — e o soldadinho começou a ir para o fundo; foi caindo, caindo, até que um grande peixe — nhoque! engoliu. Que escuridão terrível dentro do peixe! Muito mais que debaixo da ponte. E não havia espaço tudo apertadinho. Apesar disso o nosso para mexer-se herói não perdeu a compostura; continuou firme, sempre de mosquete ao ombro como se estivesse de guarda.

O peixe nadou, nadou, e deu depois saltos e pinotes de louco; por fim sossegou; algum tempo mais tarde o soldadinho viu novamente a luz do dia ir rompendo aquela escuridão parada, ao mesmo tempo que uma voz dizia com surpresa: "O soldadinho de chumbo!" É que o peixe tinha sido pescado, levado à feira, vendido e fora aberto por um cozinheiro. Da cozinha o soldadinho foi levado para a sala, onde todos se reuniram para ver o grande herói que tinha viajado na barriga dum peixe. Ele, porém, não se mostrou orgulhoso da façanha; mostrou-se apenas espantado de verificar que estava na mesma sala, sobre a mesma mesa, rodeado das mesmas crianças e dos mesmos brinquedos que já conhecia. A distância viu o castelinho com a dançarininha à porta, sempre na mesma atitude. Continuava de pé erguido como ele a deixara. Isso comoveu tanto o nosso soldadinho que quase o fez chorar lágrimas de chumbo — mas como um soldado não chora, ele não chorou. Olhou para ela e ela olhou para ele, sem pronunciarem uma só palavra.

Súbito um dos meninos agarrou-o e jogou-o no fogão da sala, sem haver o menor motivo para isso. "Artes do saci da caixa", pensou o soldadinho ao ser envolvido pelas chamas. Sentiu logo um calor tremendo, que não pôde saber se era das chamas do fogão ou das chamas do amor que o consumiam. As cores do seu uniforme desapareceram, torradas. Ficou negrinho, como negro de tristeza estava o seu coração. A dançarininha olhava para ele, e ele olhava para ela, mas sem mexer-se, firme no posto como bom soldado que era.

Nisto a porta abriu-se e uma rajada de vento varreu a mesa dos brinquedos. A dançarina, o mais leve de todos, foi lançada para dentro do fogão, caindo bem rente ao soldadinho — e o fogo a consumiu num momento. Logo após o bravo militar começou a sentir a derreter-se, e derreteu-se todinho, o corpo mole — ficando reduzido a uns pingos líquidos no fundo de brasas.

No outro dia, quando a criada veio fazer a limpeza, encontrou entre as cinzas um pedacinho de chumbo em forma de coração. Da dançarina só restava a rosa ouropel, mas já sem cor, torrada pelo fogo.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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