Há poucos meses, em Belo Horizonte, falando a
homens de letras de Minas, procurei evocar, em poucas linhas, numa
reminiscência, a figura de Afonso Arinos, homem e artista:
Conheci-o, a princípio, em Ouro Preto, na austera
Vila Rica; ali vivi com ele, no silêncio e na poeira dos arquivos; e ali
comecei a admirar o profundo brasileirismo orgânico, que forrava o seu
espírito. Conheci-o depois, e melhor na Europa, no tumulto de Paris, e em
longas viagens, romarias a catedrais e a castelos, passeios por cidades e
campos. Na Europa, Afonso Arinos era ainda mais brasileiro do que no Brasil.
Alto, robusto, elegante, de uma estatura e um ar de gigante amável, em que se
aluavam a energia e a graça, conservando no olhar e na alma o nosso céu e o
nosso sol, ele era como uma das árvores das nossas matas, exilada nas frias
terras do velho continente. Nos boulevards,
nos salões, nos teatros, e ainda nas geladas galerias de Rambouillet e de Versalhes,
onde erravam os espectros de Francisco I e Luís XIV, — Afonso Arinos mantinha,
sob a polidez das suas maneiras de fidalgo, o andar firme, um pouco pesado, e o
jeito reservado, um pouco tímido, e o falar comedido, um pouco hesitante, de um
sertanejo forte, andeiro e cavaleiro, caçador e escoteiro, simples e ousado...
Ainda hoje o vejo, e me vejo, claramente, num dia de fevereiro de 1909, quando
visitamos juntos a Catedral de Chartres. Era duro o inverno. Quando chegamos à
velhíssima cidade episcopal, caía neve. De pé, insensíveis às lufadas cortantes
dos flocos brancos, quedamos na praça, admirando a maravilhosa fábrica do
templo, a sua caprichosa ossatura de contrafortes e botaréus, diante da
fachada, a um tempo leve e severa, com a graciosa majestade da primeira fase da
arquitetura ogival: as três portas baixas sobrecarregadas de estátuas, a grande
rosaça fulgurando em cores múltiplas, e as duas torres, uma lisa, a outra
rendada, esguias e longas, preces de pedra num surto para o céu... Dentro, na misteriosa
cripta, na ressoante nave, nas capelas cheias de sombra, passamos duas horas,
esmagados pela grandeza da catedral anciã de sete séculos, em que vivem, numa
vida muda, mais de dez mil pinturas e esculturas, entes de sonho e terror,
santos, apóstolos, bispos, anjos, demônios, animais e monstros fabulosos,
grifos, dragões e quimeras. Ao cabo da longa conversação, em que nos haviam
preocupado tantos aspectos da história e da arte do Cristianismo, houve um
momento, em que, por não sei que vaga associação de ideias, Afonso entrou a
dizer-me episódios de uma das suas recentes caçadas no Distrito Diamantino, nas
cercanias do Serro. Estávamos no centro do cruzeiro, entre o coro e as naves
colaterais. Do ponto em que estávamos, o nosso olhar abrangia um trecho
fantástico da sombria floresta de pedra: as colunas, em duas filas,
rodeavam-nos, como esbeltos estipes de palmeiras, misturando em cima, na
abobada, as suas palmas em leques, entre lianas, entre folhas e flores, lódão e
vinha, hera e nenúfar. E milagre da palavra... A voz de Afonso animava-se,
exaltava-se e sacudia a catedral. Dizia os atalhos, as escarpas, os voltados, a
mata, e os relinchos dos cavalos, e os estampidos dos tiros, e a alegria dos
caçadores, e as cantigas dos camaradas, —
e o sol mineiro... E a floresta gótica transformava-se em floresta natural: a
pedra negra verdecia, a abóbada frondejava e sussurrava, a treva alagava-se de
luz ofuscante, e um verão brasileiro incendiava o inverno europeu. Já não
estávamos em Chartres: estávamos no Brasil...
Fica bem esta evocação no limiar do volume, em que
se enfeixam as conferências de Afonso Arinos sobre histórias e lendas do
Brasil. Estas conferências, e a lição, que ele professou, em Belo Horizonte, em
1915, sobre “A Unidade da Pátria”, são digno remate de uma obra literária, que
foi perfeita pela consciência e pela beleza com que foi concebida e executada.
Quando, enfeitiçado pela palavra ardente do meu
companheiro, vi o teto da catedral de Chartres mudar-se em cúpula de brenha
tropical, era porque ele, nas suas peregrinações pelo velho mundo, levava
consigo, num ambiente próprio, como a sua verdadeira atmosfera moral, a
paisagem da terra que amava. E ninguém mais do que ele sentiu e definiu o
influxo da visão natal: a alma da paisagem, para onde quer que andemos longe,
nos segue de perto e acompanha, e chama-se a saudade; ela nos soa aos ouvidos
em misteriosas melodias, onde flutuam, com o refrão de velhas canções, ladridos
de vento no coqueiral, gorjeios de pássaros familiares; ela se debruça, à
calada da noite, sobre os nossos leitos, para murmurar-nos as suas confidências
em forma de recordações do passado, e acender no nosso ânimo as esperanças do
porvir...
E com estas lembranças e esperanças o espírito da
pátria dava ao espírito do pensador sobressaltos e, às vezes, desesperações. Na
“Unidade da Pátria”, que foi de fato o primeiro grito de alarme e o primeiro
gesto fecundo da campanha de regeneração em que estamos empenhados, Afonso
Arinos resumiu, com precisão cruel, os males que nos adoecem e envergonham: a
dispersão dos bons esforços; o desamparo do povo do interior, dócil e
resignado, roído de epidemias e de impostos; a falta do ensino; a
desorganização administrativa; a incompetência econômica; a insuficiência, e
muitas vezes os criminosos desvios da justiça; a ignorância petulante e egoísta
dos que governam este imenso território, em que ainda não existe nação.
Mas o amor e a força do artista achavam remédio
para o desânimo e salvação para a descrença: a sua alma ancorava-se na alma
popular, e banhava-se na verdadeira fonte da energia dos povos, — as tradições,
as lendas, a boa poesia, em que se espelham as virtudes da gente simples,
seiva, sangue, fluido nervoso, que conservam a sua pureza e o seu vigor,
enquanto a doença assola o organismo social, e bastam para sarar, no momento
dado, todas as devastações.
Este livro é o efeito desta crença. Afonso Arinos
nunca descreu da grandeza moral do Brasil. Conhecendo o seu povo, ele sabia que
ele é o verdadeiro operário da sua nação. O valor e a bondade do povo hão de
anular a fraqueza e a maldade dos que o exploram; e um dia os fracos e os maus
desaparecerão, e os fortes e os bons, saídos da massa anônima, já livre e
Instruída, serão os definitivos governadores.
Edouard Schurè, no prefácio da sua “Histoire du
Lied”, escreveu estas linhas admiráveis: “O povo, muito tempo desprezado, sonha
e canta, e tem a sua poesia e o seu ideal; opera-se nele um grande e surdo
trabalho. Muitas vezes, este trabalho instintivo passa-se para a literatura, e
os verdadeiros autores da obra ficam desconhecidos. Os homens da imprensa e das
classes cultas não percebem isto; mas a imaginação popular continua a agitar
se, subterrânea, múltipla, criadora, incessante, como a vegetação do coral, que
lentamente se levanta do fundo do mar em ramificações infinitas, acabando por
abrolhar em ilhas encantadoras que deslumbram os navegadores.”
Palavras que sempre devem ser meditadas por nós,
homens de pensamento e de palavra. Os poetas, quando jovens pensam, no inocente
orgulho da sua mocidade, e no natural engano do seu talento, que são eles que
dão ao povo ideias e sentimentos; e ignoram que são apenas instrumentos de uma
força estranha, que os inspira e exalta, emanações insensíveis da sua terra,
eflúvios invisíveis da sua gente. O tempo e a reflexão, que dão modéstia,
esfriam esse entusiasmo. Depois de certa idade, sabemos que os melhores poemas
são os que nascem sem artifício, independentes do uso das métricas e dos
léxicos, — os que saem do seio da natureza, frescos e límpidos, como a água
salta das rochas. São os poemas melhores, e os mais duradouros. Os nossos
livros, concebidos e dados à luz na ansiedade e na tortura, viverão menos do
que esses contos singelos, essas lendas infantis, essas trovas ingênuas, que o
povo ideou e criou, sem esforço, em sorrisos, entre o amanho da terra e a
contemplação do céu.
Afonso Arinos conheceu bem, de perto, esse claro e
eterno manancial da nossa poesia. Viajadorda nossa terra, familiar do sertão e
dos sertanejos, ele teve o dom de tratar os homens de alma simples, sabendo
falar-lhes e sabendo ouvi-los, e enternecendo-se com o seu sonho rústico.
Este enternecimento perfumou a sua vida, e adoçou
a sua morte.
Olavo
Bilac, 1917.
Adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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