9/15/2016

Berenice (Conto), de Edgar Allan Poe



Berenice”, de Edgar Allan Poe

Tradução anônima de 1927, com adaptação ortográfica de Iba Mendes (2016)

A desgraça neste mundo é variada; multiforme é a miséria. Dominando o vasto horizonte como o arco-íris, como ele as suas cores são diversas, distintas e todavia intimamente fundi-las.
Dominando o vasto horizonte o arco-íris! Como pode de um exemplo de beleza, tirar um tipo de fealdade? De um emblema de paz e aliança, tirar uma semelhança de dor? É que, assim como na ética o mal é a consequência do bem, assim, na realidade, é da alegria que nasce o desgosto: quer a lembrança da felicidade passada produza as amarguras de agora, quer as amarguras que existem, tirem a sua origem dos prazeres que podiam ter existido.
A história que vou contar, é por essência uma história de horror. De boa vontade a suprimiria, se não fosse mais uma crônica de sensações do que uma crônica de fatos.
O meu nome de batismo é Egaco; do nome de minha família guardarei segredo. Não há em todo o país um castelo mais carregado de anos e de glória do que o velho e melancólico solar de meus avôs. Desde tempo imemorial, chamavam à nossa família uma raça de visionários. De fato, em muitos pormenores notáveis, no tipo do nosso castelo, nas pinturas do enorme salão, nas tapeçarias dos aposentos, nas cinzeladuras das colunas da sala de armas; porém, mais especialmente, na galeria dos quadros antigos, na fisionomia da biblioteca e, enfim, na natureza muito particular do conteúdo dessa biblioteca, há de sobejo com que justificar essa denominação.
A recordação dos meus primeiros anos está intimamente ligada àquela sala e aos seus volumes, dos quais não falarei mais. Foi lá que morreu minha mãe. Foi ali que eu nasci (se é que não vivia antes; se é que a alma não tem uma existência anterior). Mas não discutamos este assunto. Estou convencido, não procuro convencer. Na minha memória há uma reminiscência de formas aéreas, de olhos intelectuais e expressivos, de vozes harmoniosas e melancólicas; uma reminiscência que não me quer deixar; uma espécie de lembrança semelhante a uma sombra vaga, variável, indefinida, vacilante. Sombra essencial, da qual não poderei separar-me enquanto no meu cérebro fulgir a luz da razão.
Foi naquele quarto que eu nasci. Emergindo assim das longas trevas, que pareciam ser, mas que não eram o nada, para cair subitamente num país maravilhoso, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensamento e da erudição monástica, não é para admirar que tenha lançado em torno de mim um olhar assustado e ardente, que tenha consumido a infância sobre os livros e empregado a juventude em devaneios. Mas o que é singular, (os anos tendo caminhado, e o vigor da vida tendo-me encontrado ainda no solar dos meus antepassados) o que é estranho, é a inércia que me paralisou os órgãos essenciais da vida; é a inversão completa que se operou no caráter dos meus pensamentos mais ordinários. As realidades do mundo não me impressionavam senão com visões, enquanto que as ideias loucas do país dos sonhos eram, não a preocupação da minha existência, mas positivamente a minha única, a minha verdadeira existência.
***
Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos na casa paterna. Mas crescemos diversamente. Eu, valetudinário e engolfado na minha melancolia: ela, ágil, graciosa e exuberante de atividade. Para ela os passeios pela colina; para mim os estudos do claustro. Eu, encerrado em mim próprio, dedicando-me de corpo e alma à mais intensa, à mais penosa meditação; ela, divagando descuidosa através da vida, sem pensar nas sombras do caminho, nem na fuga silenciosa das horas... Berenice! Berenice! Quando invoco o seu nome, mil lembranças tumultuosas surgem das ruínas sombrias da minha memória! Ah! vejo-a ainda risonha, diante de mim, como nos seus dias de felicidade e alegria! Oh! magnífica, porém fantástica beleza! Oh! silfo dos bosques de Arnheim! Oh! náiade das fontes! E depois... e depois tudo é mistério, terror! uma história que não quer ser contada.
Um mal, um mal funesto soprou potente, como o vento quente da África, sobre a sua constituição; de um momento para o outro, passou sobre ela o espírito da metamorfose e arrebatou-a, penetrando-lhe o espírito, os hábitos, o caráter e, do modo mais subtil e mais terrível, perturbando-a, metamorfoseando-a radicalmente! Ai! o destruidor vinha e tornava a ir-se; mas a vítima, a verdadeira Berenice, que era feito dela? Aquela não era a mesma; pelo menos eu não a reconhecia já por Berenice.
Entre a numerosa série de males, carreados pelo ataque principal, que operara uma revolução tão horrorosa no ser físico e moral de minha prima, é preciso mencionar, como o mais aflitivo é o mais teimoso, uma espécie de epilepsia que muitas vezes terminava em catalepsia perfeitamente semelhante à morte, da qual dia despertava quase sempre de um modo brusco e repentino.
Ao mesmo tempo, a minha própria doença aumentava rapidamente, e agravando-se os seus sintomas pelo uso imoderado do ópio, tomou finalmente o caráter de uma monomania inteiramente nova e extraordinária. De hora para hora, de minuto para minuto, ganhava forças, até que chegou a adquirir sobre mim um domínio singular e incompreensível. Aquela monomania (se devo servir-me deste termo) consistia numa irritabilidade mórbida das faculdades do espírito que a língua filosófica denomina: faculdades de atenção. É muito provável que não me compreendam; e temo deverás que me seja absolutamente impossível dar ao comum dos leitores a ideia exata da nervosa intensidade de interesse, com a qual a minha faculdade meditativa (para evitar a linguagem técnica) se aplicava e se absorvia na contemplação dos objetos mais vulgares do mundo.
Meditar infatigavelmente horas e horas esquecidas, sobre qualquer citação pueril escrita à margem ou no texto de um livro; ficar absorto, à maior pare do dia, na contemplação de uma sombra estranha projetando-se obliquamente ao longo do sobrado ou da tapeçaria; esquecer-me uma noite inteira, a observar a chama da lâmpada ou as brasas do fogão; sonhar dias inteiros com o perfume de uma flor; repetir, sem variação, alguma palavra vulgar, até que, à força de repetida, deixar-se de representar ao espírito a menor ideia; perder inteirada existência física, para cair numa quietação absoluta, obstinadamente prolongada tais eram as mais comuns e as menos perniciosas aberrações das minhas faculdades mentais; aberrações que não são absolutamente sem exemplo, mas que não tem por certo explicação nem análise.
Para ser bem explícito, devo dizer ainda que aquela atenção intensa e mórbida, assim excitada pelos objetos mais frívolos, era de uma natureza essencialmente diversa da tendência que toda a humanidade tem pela meditação, e à qual se entregam sobretudo as imaginações ardentes. Não só não era, como podia parecer à primeira vista, um termo excessivo e uma exageração dessa tendência, mas era completamente e por sua natureza diferente dela. No primeiro caso, o pensador, o homem imaginativo, interessando-se por um objeto (geralmente não frívolo) perde-o de vista, pouco a pouco, através da imensidade de deduções e de sugestões que ele lhe inspira, a ponto de, quando chega ao fim de um desses sonhos, muitas vezes cheios de voluptuosidade, ter completamente posto de parte e esquecido o incitantentum ou causa primária das suas reflexões. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, posto que revestido pela minha imaginação doentia de uma importância fantástica e refrativa. Fazia poucas ou nenhumas reflexões; e quando as fazia, todas voltavam obstinadamente ao objeto primitivo, como a um centro. As meditações não me eram nunca agradáveis, e no fim do meu sonho, a causa primária, bem longe de estar esquecida, tinha atingido o interesse sobrenaturalmente exagerado, que era feição dominante do meu mal. Numa palavra, a faculdade de espírito mais particularmente excitada em mim era como já disse, a faculdade da atenção, enquanto que no pensador ordinário, a faculdade mais desenvolvida é a da meditação...
Os meus livros, naquela época, não se contribuíam positivamente para irritar o mal, participavam em grande abundância, pela sua natureza imaginativa e irracional, das qualidades características da própria doença. Lembro-me muito bem, entre outros, do tratado do nobre italiano, Coelius Secundos Curio: De amplItudine Beati de Dei; da grande obra de Santo Agostinho: A Cidade de Deus, e do Carne Christi de Tertuliano, cujo estranho pensamento: Mortuus est Dei Filhes; credibile est quia ineptum est; et sepultus resurrexit; certum est quia impossibile est, absorveu exclusivamente toda a minha existência, durante muitas semanas de laboriosas e infrutíferas investigações.
A minha razão, assim desequilibrada por coisas insignificantes, fazia lembrar aquela rocha marítima de que fala Ptolomeu Hephaestion, a qual resistia imutável a todos os ataques dos homens, e até ao furor dos ventos e das tempestades, mas que tremia só ao contato da flor chamada asfódelo. A um pensador desatento, parecerá evidente que a alteração terrível produzida no estado moral de Berenice pela sua doença deplorável, devesse fornecer-me um grande assunto para exercer a meditação anormal, cuja natureza acabo de explicar. Pois bem! Pão aconteceu assim. Nos intervalos lúcidos da minha enfermidade, a desgraça de Berenice causava-me realmente mágoa. Enternecia-me profundamente a ruína total da sua vida alegre e doce. Meditava muitas vezes e com amargura sobre as causas terrivelmente misteriosas que tinham podido produzir uma revolução tão estranha e repentina. Mas essas reflexões, tais como se teriam apresentado em circunstâncias análogas à massa ordinária dos homens, não participava da idiossincrasia do meu mal. Durante os acessos, a minha monomania, fiel ao seu caráter frívolo, só se reocupava com as mudanças menos importantes, porém mais notáveis, que se manifestavam no sistema físico de Berenice; na singular e horrorosa alteração da sua identidade pessoal.
Nunca amara minha prima nos seus dias mais brilhantes de beleza incomparável; mesmo porque, na estranha anomalia da minha existência, os sentimentos me vinham mais do espírito que do coração. Muitas vezes, através das nuvens do crepúsculo, e ao meio-dia, por entre as sombras da floresta; ou de noite, na minha biblioteca, vendo-a passar diante de mim, contemplava-a; não como a Berenice viva e palpável, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser terrestre, carnal, mas como abstração da realidade; não como uma criatura para admirar, mas como uma coisa para analisar; não como um objeto de amor, mas como tema de uma meditação tão obscura como irregular. E agora, tremia na sua presença, empalidecia à sua aproximação. Contudo, lamentando amargamente a sua deplorável decadência, lembrei-me de que me amara durante muito tempo, e uma vez falei-lhe de casamento.
Aproximava-se a época do nosso noivado. Uma tarde de inverno, calma, enevoada, intempestivamente quente, assentei-me no gabinete da biblioteca. Julgava estar só; mas, levantando os olhos, vi Berenice, em pé, diante de mim.
Foi a minha imaginação exaltada, ou a influência nevoenta da atmosfera, ou o crepúsculo incerto do aposento, ou o vestido negro que trajava, que lhe prestou aquela forma trêmula indefinida? Não sei dizê-lo. Ela não proferiu uma palavra, e eu, naquele momento, por coisa nenhuma deste mundo teria pronunciado uma sílaba. Percorreu-me o corpo um tremor gélido. Senti-me oprimido por uma sensação de agonia insuportável, e a minha alma foi subitamente invadida por uma curiosidade devoradora. Contudo, fiquei imóvel e recostado à poltrona, sem fala nem respiração, com os olhos cravados nela. Ai! a sua magreza era especial! Nem um vestígio do ser primitivo, nem um só dos seus contornos tinha sobrevivido! O meu olhar ardente caiu sobre o seu rosto.
Tinha a fronte erguida, muito pálida e sobrenaturalmente plácida. Os cabelos, outrora negros como o azeviche, caíam-lhe sobre as fontes encovadas em anéis de um louro ardente, cujo caráter fantástico discordas cruelmente com a tristeza dominante da sua fisionomia. Os olhos, sem vida nem brilho, pareciam não ter pupilas. Desviei involuntariamente a vista da sua fixidez envidraçada para contemplar os lábios afilados e contraídos. Esses lábios entreabriram-se num sorriso significativo, e os dentes da nova Berenice revelaram-se lentamente à minha vista. Prouvera a Deus que nunca os houvesse visto, ou que, ao vê-los, tivesse morrido!
***
De repente, ouvi o ruído de uma porta a fechar-te e, levantando os olhos, vi que minha prima tinha deixado o aposento. Mas o espectro terrível dos seus dentes brancos tinha ficado no meu cérebro desordenado, não queria de lá sair. Não havia uma depressão na sua superfície, uma de diferençazinha no seu esmalte, um bico nas suas arestas, que aquele sorriso passageiro não me tivesse imprimido na memória.
Via-os agora ainda mais distintamente que os vira primeiro. Os dentes! os dentes! Estavam ali, acolá, por toda a parte, visíveis, palpáveis, diante de mim; compridos, estreitos e excessivamente brancos, circundados pelos lábios pálidos e horrorosamente dilatados.
Então chegou a fúria da minha monomania. Em vão lutei contra a sua influência estranha e irresistível. No número infinito dos objetos do mundo exterior, só os dentes me preocupavam. Desejava-os freneticamente! Todos os outros assuntos, todos os interesses diversos foram suplantados por aquela única contemplação. Eles, só eles estavam presentes aos olhos do meu espírito, e a sua individualidade exclusiva tornou-se a essência da minha vida intelectual. Via-os a todas as horas e a todos os instantes. Estudava-lhes o caráter. Observava-lhes os sinais particulares. Meditava sobre a sua conformação. Refletia na alteração da sua natureza. Estremecia, atribuindo-lhes na imaginação uma faculdade de sentimento, de sensação e uma propriedade de expressão moral, mesmo sem o auxílio dos lábios. Dizia-se, com razão, de Mlle. de Sallé, que todos os seus passos eram sentimentos. De Berenice cria eu intimamente que todos os dentes eram ideias. Ideias! Ah! eis o pensamento absurdo que me per deu. Ideias! ah! aí está a razão pela qual eu os invejava tão loucamente! Sentia que só a sua posse me podia restituir a paz e a razão.
E a noite desceu assim sobre mim! Vieram as trevas, instalaram-se, e tornaram a fugir! E um dia novo apareceu! E em redor de mim amontoaram-se as sombras de uma segunda noite; e eu sempre imóvel naquele quarto solitário, sempre assentado, sempre engolfado na minha meditação! E o fantasma dos dentes mantinha sempre a sua influência terrível, a ponto de flutuar incessantemente aqui e acolá, com a mais espantosa nitidez, ora através da luz, ora através das trevas do aposento. Enfim, no meio dos meus sonhos, retumbou espantoso um grito de horror, ao qual sucedeu, depois de uma pausa, um ruído de vozes desoladas, entrecortadas de gemados surdos, de suspiros, de luto e de dor. Levantei-me e, abrindo uma das portas da biblioteca, encontrei na antecâmara uma criada, toda em lágrimas, que me disse que Berenice deixara de existir! De manhã fora atacada de epilepsia. E agora, ao cair da tarde, o túmulo esperava a sua futura habitante; todos os preparativos do enterro estavam terminados!
***
Aflito e gelado de terror, dirigi-me com repugnância para o quarto da morta. O quarto era vasto e muito escuro. Os meus pés esbarravam a cada passo com os aprestos da sepultura. Sob as cortinas do leito (disse-me um criado) estava o caixão, e naquele caixão (ajuntou em voz baixa), jaziam os restos de Berenice.
Quem me perguntou se não queria ver o corpo? Não vi que nenhuns lábios se movessem; contudo, a pergunta havia sido feita. O eco das últimas sílabas ressoava ainda pelo aposento. Era impossível recusar. Com um sentimento de terrível opressão, caminhei para o leito. Levantei lentamente os cortinados, mas deixando-os cair, fiquei por dentro deles, separado do mundo vivo, na mais íntima comunidade com a morta!
Toda a atmosfera do quarto exalava a morte, mas o ar circunjacente do ataúde sufocava-me; parecia que um cheiro deletério sabia já do cadáver. Naquele momento, teria dado mundos para poder fugir à influência perniciosa da mortalidade, para respirar ainda uma vez o ar puro dos céus ternos. Mas os meus movimentos estavam paralisados, vacilavam-me os joelhos, os meus pés pareciam ter criado raízes no solo, e os olhos não queriam despregar-se daquele cadáver rígido, estendido ao comprido, no caixão aberto.
Justo céu! É possível! Foi alucinação do meu cérebro, ou moveu-se realmente o dedo da defunta dentro da tela que o envolvia? Trêmulo de inexprimível terror, volvi os olhos para a fisionomia do cadáver. O lenço que lhe tinham amarrado aos queixos, desatara-se não sei como. Os lábios lívidos torciam-se numa espécie de sorriso, e, através da sua moldura lúgubre, os dentes de Berenice, brancos, luzidios, terríveis, olhavam-me ainda com uma realidade viva! Desviei-me convulsivamente do leito, e, sem pronunciar uma palavra, sair correndo como um maníaco daquele quarto de mistério, de horror e de morte!
***
Achei-me outra vez na biblioteca, sentado, só. Era meia noite. Parecia-me ter saído de um sonho confuso e agitado. Sabia que Berenice fora enterrada depois do sol posto; mas não guardava nenhuma lembrança positiva ou definida do que se havia passado durante aquele intervalo lúgubre. Todavia, a minha memória regurgitava de terror ambíguo e vago, e por isso mais terrível. Era como uma página horrorosa do registo da minha existência, escrita em caracteres obscuros, medonhos e inteligíveis, que em vão me esforçava por decifrar. De vez em quando, contudo, semelhante ao eco de um som esvaecido, vibrava-me aos ouvidos um grito fraco e agudo, uma voz de mulher. Que tinha eu feito? perguntava a mim mesmo em voz alta. E os ecos do aposento murmuravam-me em forma de reposta: Que tinha eu feito?
Em cima da mesa, ao meu lado, ardia uma lâmpada; junto dela estava uma caixinha de ébano. Aquela caixa não apresentava nada de notável; eu tinha-a visto muitas vezes, porque pertencia ao médico da casa. Mas como tinha ela vindo para ali, para cima da mesa? E por que tremia eu ao contemplá-la? Não valia a pena pensar nisso. Entretanto, os meus olhos, encontrando as páginas de um livro aberto, fixaram-se sobre uma frase sublinhada. Eram as palavras singulares, mas muito simples, do poeta Ebn Zaiat: Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitarem, curas meas aliquanlutum fore levatas. — Por que, ao lê-as, se me arrepiaram os cabelos? Por que se me gelou o sangue nas veias?
De repente, bateram de manso à porta da biblioteca e um criado, pálido como um habitante do túmulo, entrou nos bicos dos pés. Trazia os olhos esgazeados pelo terror, e a sua voz trêmula e abafada falou-me num tom quase imperceptível. Que me disse? — Não ouvi senão algumas frases truncadas. Contou-me, creio eu, que um grito horroroso havia perturbado o silencio da noite; que todos os criados tinham corrido na direção do som. Por fim, a sua voz baixa, tornou-se horrivelmente distinta, ao falar da violação de uma sepultura, de um corpo desfigurado, despojado da mortalha, mas respirando ainda, palpitando ainda, ainda vivo!
Então olhou para o meu traje: e o meu traje estava manchado de sangue! Sem dizer uma palavra, pegou-me na mão: e a minha mão tinha o estigma de unhadas humanas! Depois apontou para um objeto que estava encostado à parede; era uma enxada!
Soltando um grito medonho, precipitei-me sobre a mesa e agarrei a caixa de ébano. Mas as minhas mãos trêmulas não tiveram força para segurá-la. A caixa caiu por terra, entornando, com um tinir de ferragens, alguns instrumentos de cirurgia dentária, e, juntamente, trinta e duas coisinhas, brancas como o marfim, se espalharam por aqui e por acolá, no solo do aposento.

O Malho, 21 de maio de 1927.


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