O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução: Américo Lobo (1882)
Quando
eu exausto e quase adormecido,
Da
meia-noite na tristeza infinda,
Sobre
in-fólio de traças carcomido,
Cabeceando,
meditara ainda.
Súbito
ouvi ruído semelhante
Ao
de leve pancada nos umbrais;
"A
minha porta bate um visitante".
Balbuciei,
"é isto e nada mais".
Ah!
bem me lembro! Era a invernia brava:
Cada
faísca que no lar morria,
Sobre
o chão uma sombra projetava.
Eu
suspirava pela lua do dia:
Nem
pelo estudo mitigada fora
A
saudade das graças virginais
De
quem se chama lá no céu Leonora,
E
cá na terra não tem nome mais.
O
leve e triste movimento incerto
Das
cortinas da alcova me infundia
Fantásticos
terrores que de certo
Eu
nunca dantes pressentido havia:
Meu
coração pulsar ansioso vendo.
Eu
fiquei repetindo: "Em meus umbrais
Alguém
que se atrasou está batendo
E
quer entrar: é isto e nada mais".
Estando
já robustecida a mente,
Disse
sem custo: "Oh dama, ou cavalheiro.
Mil
desculpas vos peço reverente
Por
não ter acudido mais ligeiro:
Eu
cochilava, e vós com tal enleio
Batestes
tão de manso nos umbrais
Que
não cuidei ouvir-vos". Patenteio
A
porta: vejo a sombra e nada mais!
Fito
o negrume e pasmo ali me quedo,
Temendo,
duvidando e até sonhando
O
que dantes ninguém sonhara a medo;
Era
o silêncio intacto, não traçando
Riscas
a escuridão: ali se ouvia
Um
nome, um nome, que se diz jamais.
"Leonora!"
suspirei e respondia
"Leonora!"
o eco ao longe e nada mais.
Voltei
para o meu quarto, onde sentindo
Minh'alma
triste se abrasar inteira,
Outra
pancada fui de novo ouvindo,
Algum
tanto mais forte que a primeira;
Disse:
"Talvez alguma cousa exista
À
janela, por fora dos vitrais;
Deixa,
meu coração, que eu deite a vista
Nesse
mistério; é o vento o nada mais!"
Abro
a janela; dum só jato entrando,
Batendo
as asas com um grã ruído,
Diviso
um nobre corvo venerando.
Aos
de imêmores eras parecido:
Nem
me saudou sequer, ante mim posto.
Porém
com ar e tons senhoriais.
No
alto busto de Palas sobreposto
À
porta, empoleirou-se, e nada mais.
Aquele
aspecto e austera compostura,
Um
riso me bailou no pensamento;
Disse
mais distraído à ave escura:
"Sem
crista, embora, feio a macilento,
Não
és covarde, oh corvo vagabundo.
Que
fugiste das sombras infernais:
Dize,
como te chamas noutro mundo?"
"Nunca"
responde o corvo: "Nunca mais".
Maravilhou-me
assaz ter entendido
Minha
linguagem o pássaro imperfeito.
Ainda
que me houvesse respondido
De
modo obscuro e sem nem um conceito:
Parece
incrível que sob seu telhado
Veja
o vivente em cima dos umbrais,
Sobre
marmóreo busto empoleirado.
Pássaro
que se chame "Nunca mais!"
Porém
o corvo solitário, fito
Sobre
o busto de Palas mais não disse
—
Penas imóveis — com se num dito
Su'alma
em fuga para além saísse.
"De
amigos," murmurei, "guardo lembranças
Mortos
tão cedo! Aos raios matinais
Este
me deixa como as esperanças
D'outrora!"
Disse o corvo "Nunca mais".
Estremeci
ouvindo a frase d'ouro
Ressoar
no silêncio, após falando:
Talvez
o que ele diz seja um tesouro
Colhido
d'algum mestre miserando.
A
quem sem tréguas perseguisse a sorte,
Até
que de seus hinos festivais
Só
ficasse por cântico de morte
Da
esperança, este moto: ''Nunca mais".
Novo
sorriso me bailou à mente;
E
rodando a poltrona acolchoada.
Sobre
o veludo me sentei, em frente
D'ave,
do busto e do portal d'entrada.
Comigo
só pensando e refletindo
No
mistério, com que a desoras tais
O
tredo corvo, do passado vindo,
Grasnava
tão somente: "Nunca mais!"
No
enigma eu atentava, e no entretanto
Nada
dizia ao pássaro agoureiro,
Cujos
olhos de fogo ardiam tanto
Dentro
em meu coração: por derradeiro,
A
cabeça descanso aonde chora
A
lâmpada seus brilhos siderais,
Neste
roxo veludo onde Lenora
Não
há de reclinar-se nunca mais!
Cuidei
que se tornava o ar mais denso,
E
que uns anjos, roçando meu tapete,
Turificavam
misterioso incenso.
"Desgraçado!"
exclamei, "como um joguete
Teu
Deus te há enviado ao sofrimento;
Sente
saudades menos lagrimais
Dessa
Lenora! Bebe o esquecimento!
"Nunca"
responde o corvo: "Nunca mais!"
"Mudo
profeta! réprobo!" lh'eu disse:
"Ave
ou demônio! quer tentado foras.
Quer
uma tempestade te cuspisse
Sozinho,
mas intrépido, a desoras.
Sobre
a terra maldita, lar do pranto.
Dize,
dize-me em frases naturais:
Neste
mundo haverá balsamo santo?"
"Nunca"
responde o corvo, "Nunca mais".
"Mudo
profeta! réprobo". Lh'eu disse:
"Ave
ou demônio! pelo céu que olhamos,
Curvado
sobre a terra com meiguice,
E
por esse Deus que ambos nós amamos,
Dize-me
se minh'alma pesarosa
Se
há de unir lá nos tálamos astrais
À
rara e pura virgem radiosa
Que
se chama Lenora?" — "Nunca mais".
"Seja
o teu dito o signo da partida,
Ave
ou demônio?" soerguido brado:
"Volta
para o tormento da outra vida!
Sequer
me deixes negra pluma ao lado
Por
testemunho de teu dito horrendo!
Deixa-me,
e sai do busto e dos umbrais!
Tira-me
as garras com que estás comendo
Meu
coração desfeito!" — "Nunca mais!"
Calado,
o corvo solitariamente
Sobre
o busto de Palas permanece:
Dum
demônio que sonha, o olhar se sente,
E a
luz da lâmpada que resplandece
Ante
ele, sabre o pavimento lança
Sombras,
de cujas ondas sepulcrais
Minh'alma
em sua mor desesperança
Não
há de levantar-se nunca mais!
Adaptação ortográfica: Iba Mendes (2016)
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