O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução: Venceslau de Queiroz (1885)
Tradução: Venceslau de Queiroz (1885)
Uma vez, pelas
desoras lúgubres da noite, enquanto, fraco e fatigado, eu meditava sobre velhos
e curiosos volumes de uma doutrina antiga, enquanto, quase adormecido,
toscanejava, subitamente ouvi uma pancada, como se batessem de leve à porta do
meu quarto. Alguém, talvez, que me procura, pensei, e que bate-me à porta,
talvez seja isso, e nada mais.
Ah! lembro-me
distintamente: corria o mês de Dezembro, frio e glacial, e cada acha de lenha,
acesa no fogão, desenhava no soalho um reflexo de agonia. Eu esperava a manhã,
ansiosamente; há muitas horas já, em vão, pedi aos livros um instantâneo
repouso à minha tristeza, essa tristeza nervosamente horrível que me acabrunha
desde que perdi Lenora, honesta e graciosa virgem que os anjos no céu hoje
chamam Lenora, e que no mundo ninguém mais poderá chamar, ai! nunca mais!
E o brando,
triste e vago ondular do reposteiro de púrpura impressionava-me, enchia-me de
terrores fantásticos, para mim desconhecidos até essa noite; afinal, para
abrandar a pulsação precípite do meu peito, levantei-me, repetindo: Alguém
talvez, que me procura, talvez algum retardado visitante que bate-me à porta;
sim, talvez seja isso, e nada mais.
Minha alma
nesse instante sentia-se mais forte. Não hesitei, pois, por mais tempo e falei,
supondo que fosse alguém que batesse: — Peço-vos desculpas, eu ia adormecendo,
quando vos ouvi bater-me à porta, tão docemente, tão brandamente, que fiquei
ainda incerto de vos ter ouvido. — E abri a porta, de par em par; só vi trevas,
e nada mais.
A perscrutar
profundamente essas trevas, ali fiquei por muito tempo, estarrecido de espanto,
de medo e de dúvida, sonhando coisas que no mundo ninguém ainda ousara sonhar;
mas e silêncio não foi perturbado, e tudo se conservou imóvel. A única palavra
que ouvi sibilaram-ma aos ouvidos: Lenora! Tinha sido eu mesmo quem a
balbuciara, e um eco por sua vez também repetira: Lenora. Fora isso, e nada
mais.
Ao entrar de
novo no quarto com a alma sobressaltada, ouvi logo uma pancada um pouco mais
forte que a primeira. Com certeza, pensei comigo, com certeza, há alguma coisa
entre as folhas da janela. Antes, porém, acalmemos o coração; talvez seja o
vento, e nada mais.
Abri então a
janela, e, com um tumultuoso batimento de asas, entrou um majestoso corvo, digno
dos primeiros dias da criação. Não me fez a menor reverência, não parou, não
hesitou um minuto; mas, com a sem-cerimônia de um lord ou de uma lady,
empoleirou-se num busto de Palas que encimava a porta do quarto; empoleirou-se,
instalou-se, e nada mais.
Esta ave de
ébano, pela gravidade de seu porte e severidade de sua fisionomia, induzia-me a
rir, e gracejei: — Lúgubre e velho corvo, viajor afastado das praias da Noite,
ainda que a tua cabeça esteja sem crista e sem cimeira, não és certamente
nenhum poltrão. Dize-me o teu nome senhorial nas caliginosas praias das regiões
infernais. — O corvo respondeu: Nunca, mais!
Fiquei
maravilhado. Este hediondo volátil facilmente entendera a minha pergunta, se
bem que a sua resposta não tivesse um sentido perfeito e me não desse grande
explicação; mas devemos convir que a homem algum jamais foi dado ver uma ave ou
animal qualquer, pousado num busto esculpido em cima da porta de seu quarto,
chamar-se — Nunca mais.
E o corvo
empoleirado, salientemente negro e solitário, no busto branco e imóvel,
proferiu essas únicas palavras, como se nelas espalhasse sua alma toda. Nada
mais pronunciou, nem agitou uma pena sequer, até que eu murmurasse comigo
mesmo: Há muito tempo que me abandonaram outros amigos; ele deixar-me-á também
ao alvorecer do dia, como as minhas esperanças de outrora... A ave repetiu
ainda: Nunca mais!
Estremeci ao
ouvir esta resposta, dada com tanta justeza, e exclamei: Sem dúvida, o que esta
ave pronuncia é toda a bagagem de seu saber, que recebera em casa de qualquer
desamparado da fortuna, que a implacável Desgraça, persistentemente, sem
tréguas, perseguira, até que as suas canções não tivessem mais que um só
estribilho, até que o De profundis da
sua esperança tomasse este melancólico estribilho: Nunca mais.
Mas, sempre
interessado e curioso, rolei imediatamente a minha poltrona para perto da ave,
do busto e da porta; e; enterrando a cabeça no espaldar aveludado, esforcei-me
por encadear as ideias, indagando a razão porque esta hedionda, triste, magra e
sinistra ave, digna dos primeiros dias da criação, fazia-me ouvir, crocitando,
estas palavras: Nunca mais.
Assim me
conservei, sonhando, conjecturando, mas não dizia uma sílaba sequer a essa ave,
cujo olhar, ardendo como um clarão do inferno, queimava-me profundamente os
refolhos do coração. Procurei por muito tempo atinar com a razão disto e de
mais algum mistério, repousando a cabeça, negligentemente, no veludo do
espaldar, que a luz da lâmpada acariciava, este veludo roxo sobre o qual, ao
morno clarão dessa mesma lâmpada, tantas vezes ela repousara a cabeça de anjo,
e agora... nunca mais!
Pareceu-me
então que se toldava o ar, embalsamado por um turíbulo invisível que os
serafins agitavam e cujas asas apenas esfrolavam o tapete do quarto.
Desgraçado! bradei contra mim mesmo, o Deus de tua crença, por intermédio de
seus anjos, envia-te repouso e esquecimento às saudades e angústias que te
ralam o seio... Embriaga-te, pois, neste ar saturado dos perfumes do céu, e
esquece para o todo sempre a tua morta Lenora. O corvo grasnou: Nunca mais!
Profeta! —
exclamei, núncio de desgraças! ave ou demônio, mas sempre profeta! ainda que
sejas um mensageiro do Arcanjo tenebroso, ou que a tempestade te açoitasse e te
fizesse naufragar, corajoso sempre, sobre esta terra deserta, povoada de
fantasmas, sobre esta habitação continuamente abalroada pelo Horror, — dize-me,
sinceramente, eu to suplico; existe, existe ainda, no mundo, algum bálsamo da
Judeia para as minhas dores? Responde-me; eu to suplico. O corvo respondeu: Nunca
mais!
Profeta! —
bradei ainda, — núncio da desgraça! ave ou demônio, mas sempre profeta! por
este céu arqueado sobre nossas cabeças, por este Deus que ambos nós adoramos,
responde à minha alma, sobrecarregada de dor, se, no paraíso longínquo, ela
poderá algum dia abraçar uma virgem santa que os anjos no céu chamam Lenora, uma bela e honesta virgem que me
abandonou no mundo para cantar no céu entre as coreias místicas dos anjos.... O
corvo respondeu: Nunca mais!
Ave ou demônio, esta resposta é o sinal da nossa eterna separação. —
Engolfa-te, pois, na tempestade, volta às caliginosas praias
das regiões infernais; não deixes cair aqui uma pena sequer como lembrança da
mentira que proferiste; abandona esta inviolada solidão, deixa este busto,
arranca o teu bico e as tuas garras de meu coração e precipitas-te para longe
desta morada. O corvo respondeu: Nunca mais!
E o corvo,
imóvel, instalou-se, para todo o sempre, sobre o lívido busto de Palas, que
encimava a porta do meu quarto; e os seus olhos, cortados de quando em quando
por um sinistro clarão do inferno, semelham-se aos olhos de um demônio que
sonha; a luz da lâmpada, esbatendo sobre ele, projeta-lhe a sombra no soalho e,
para fora do círculo desta sombra, que jaz flutuante sobre o soalho, nunca mais
poderá erguer-se minha alma, nunca mais!
Adaptação ortográfica: Iba Mendes
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