O Escaravelho de Ouro, de Edgar Allan Poe
Tradução de 1929, com adaptação
ortográfica de Iba Mendes
Havia já cinco ou seis anos que eu
conhecia William Legrand. Ele descendia de uma velha família huguenote, que
outrora fora muito rica; porém ficara arruinado por uma série de revezes. Para
fugir às consequências dessa decadência, partiu de Nova Orleans e foi se
instalar na ilha de Sullivan, próximo a Charleston, na Carolina cio Sul.
Essa ilha é singular; composta
por um banco de areia com o comprimento de três milhas e um quarto de milha de
largura, é separada do continente apenas por uma nesga de mar muito estreita.
Teda a vegetação da ilha se limita a caniços, onde pululam galinhas d'água.
Árvore nem uma. Na extremidade oeste, há, ali, forte Moultrie e algumas cabanas
habitadas no verão por pessoas que fogem de Charleston, de sua poeira e de suas
febres; no resto da ilha há somente arbustos ralos.
Legrand construíra na extrema
ponta oriental dessa ilha uma pequena casa de tábuas, onde me habituei a
visitá-lo, porque tomara por ele verdadeira amizade.
Depois que se arruinara, Legrand
vivia ali tendo como únicas distrações a caça, a pesca, alguns livros e uma
coleção de conchas e insetos, que iniciara, à falta de melhor ocupação. Tinha
conto único companheiro um criado, o velho Júpiter, um preto que servira seu
pai e era-lhe dedicado como um cão.
Nesse dia, chegando à ilha e
encontrando a casa de Legrand vazia, instalei-me com a sem-cerimônia, que nossa
intimidade me permitia, fazendo café e escolhendo um livro para matar o tempo.
Meu amigo só chegou ao cair da noite em companhia de Júpiter, que trazia duas
galinhas d'água para o jantar.
Ambos demonstraram alegria
sincera ao ver-me e, como eu perguntasse por sua famosa coleção, Legrand
exaltou-se logo, comunicando-me que capturara na véspera um exemplar raro,
talvez único no mundo, um escaravelho enorme, colossal e tedo cor de ouro...
— Cor de ouro, não, senhor... ele
é de ouro mesmo — interveio Júpiter, com
a familiaridade inocente de um criado que andou com o patrão ao colo. — Esse
escaravelho é de ouro mesmo.
— Maluco! — disse Legrand, dando
de ombros. — De fato esse animal é singularmente pesado... então, ele pensa
que... Mas, imagine que, não podendo supor que o ia encontrar aqui, deixei o
precioso inseto com o tenente do forte, que me pediu para fotografá-lo. Mas
amanhã irei buscá-lo. Espere... vou desenhá-lo aqui, para que faças uma ideia.
Sentou-se diante de sua pequenina
mesa e molhou a pena no tinteiro. Mas procurou em vão um pedaço de papel no
meio dos livros atirados em desordem. Então pesquisou nas algibeiras e acabou
por achar uma folha em branco, embora bastante suja.
— Ora! disse ele depois de
hesitar um instante. — Isso mesmo serve.
Riscou rapidamente um desenho e
estendeu-o. Quando, porém, eu o tomava entre os dedos, Júpiter abriu a porta do
canil e Gog, o grande cão de Legrand, que era muito meu amigo, veio, aos saltos,
fazer-me festas, com tal ímpeto que deixei cair o papel. Quando o apanhei
afinal e lancei sobre ele o olhar, fiquei estupefato.
— Ora essa! — exclamei. Que
demônio de escaravelho desenhou você aqui? Isso parece mais uma caveira!
— Como? — redarguiu Legrand. — Uma
caveira?
Curvou-se para o desenho e,
visivelmente surpreendido, deteve-se a fitá-lo. Houve então em seu rosto uma
série de transformações rápidas. Corou, empalideceu... depois examinou
atentamente o papel à luz da lâmpada e, sem uma palavra, foi se sentar em cima
de uma mala, colocada no outro extremo da sala, como se se quisesse isolar com
seus pensamentos.
Por fim tirou do bolso a carteira
e guardou nela o papel com muito cuidado, como se fosse coisa das mais
preciosas.
Tornou-se então mais calmo, mas
pediu-me desculpas de sua abstração, com ar tão absorto, que me esquivei de
interrogá-lo.
Todo o gênio expansivo de Legrand
parecia ter desaparecido. Continuando a me tratar com a cordialidade do
costume, estava distraído e, quanto mais os minutos corriam, mais ele se
mergulhava numa preocupação absorvente e tirânica.
Tanto que, sem mais falar em
nossos projetos para o dia seguinte, despedi-me e ele nada fez para me deter
ali. Mas tive a impressão de que me abraçava com mais carinho e entusiasmo do
que nunca.
***
Quase um mês se passou, depois
disso, sem que eu tivesse notícias de Legrand, quando, um belo dia, tive a
surpresa de ver o velho Júpiter aparecer em minha casa.
— Olá! Você por aqui? perguntei.
— Que veio fazer em Charleston?
— Fazer compras e trazer uma
carta para vosmicê — respondeu-me o bom preto, pousando no soalho, com esforço,
um embrulho enorme, que tiniu como som de metal.
— E como está seu patrão? —
continuei, abrindo a carta.
— Ah! meu senhor... — disse
Júpiter, coçando a carapinha, com embaraço. —
Parece que não esta bom.
— Não está bom de quê?
— Da... da cabeça... vosmicê
desculpe. E tudo por causa daquele maldito escaravelho.
— Que escaravelho... Ah!... o tal
de ouro?... Mas que tem ele com a cabeça de Legrand? — interroguei, inquieto.
— Ah!... eu não sei, meu senhor;
mas depois que achou aquele bicho maldito é que meu senhor deu pra viver
calado, para passar a noite inteirinha escrevendo números... e passar dias
inteiros fora de casa, sem que eu saiba onde ele anda.
—
Mas tudo por causa do escaravelho?...
— Pelo menos foi desde o dia em
que ele apare... o excomungado! — afirmou o preto. — Vosmicê quer a prova? O
escaravelho é de ouro... Pois agora meu senhor até deu para falar sozinho... e
fala em ouro.
— Que me diz?
— Eu ouvi,
meu senhor, eu
ouvi...
— Bom — disse eu, desanimando de
compreender. — Vamos ver o que ele me
manda dizer.
A carta
estava assim redigida.
"Meu caro amigo.
Que fim levou você? Terá se
zangado porque não lhe dediquei,
no outro dia, a atenção que me
merece? Não o acredito.
Por isso, se não está muito preso
por seus trabalhos, venha com Júpiter. Preciso de sua presença esta noite, para
um negócio muito sério.
Seu cordialmente
William Legrand."
Fiquei assombrado. Que negócio
muito sério poderia ser esse, para o qual minha presença era indispensável?
Pelo que Júpiter me dissera, eu começava a recear que meu amigo estivesse de
fato com as faculdades mentais alteradas.
— Que compras foram essas, que
você vem fazer?
— Ah!... É outra coisa. Meu
senhor mandou-me comprar foices, pás, enxadas... Para que será tudo isso, meu
Deus! Ninguém sabe...
Cada vez mais intrigado, mas por
isso mesmo incapaz de abandonar meu amigo, preparei-me rapidamente para seguir
o velho Júpiter.
Chegamos por volta de três horas
da tarde. Legrand, que parecia esperar-nos com impaciência, veio a nosso
encontro, com uma vivacidade, que mais aumentou minhas suspeitas. Mas, como só
falava em generalidades, parecendo não saber como começar o que pretendia
dizer-me, perguntei-lhe pelo escaravelho.
— Ah!.... — exclamou ele, com um
estranho olhar. — Sabe que, afinal, quem tinha razão era Júpiter?
— Como?
— Esse animal é
mesmo de ouro.
Pronunciou essas palavras com ar
tão sério, que fiquei interdito e desolado.
— De ouro — repetiu Legrand, com
um sorriso triunfante. — E ele vai fazer minha fortuna... Mas venha cá. Você ainda
não o conhece...
Levou-me até uma pequena mesa de
mármore onde o escaravelho estava preso sob uma tampa de vidro. Era de fato um
animal soberbo, de um amarelo positivamente cor de ouro, com duas manchas
negras nas costas e outra na cabeça.
— Mandei chamá-lo — disse
Legrand, depois de me deixar examinar atentamente o inseto — mandei chamá-lo,
para que me ajude a realizar os desígnios da Providência e do escaravelho.
Disse isto num tom enfático,
solene.
Não podendo mais conter meu
espanto, tomei-o por um braço e disse-lhe ao ouvido:
— William... você está nervoso...
um pouco exaltado... Por que não se deita para descansar uma hora ou duas?
Ele desatou a rir, com ar jocoso
e houve em seu olhar um lampejo de inteligência tão vivaz, que não me atrevi a
prosseguir. Então ele pousou as mãos sobre meus ombros e, fitando-me bem nos
olhos, disse:
— Tranquilize-se, camarada. Eu
estou perfeitamente são de corpo e de espírito; apenas um pouco vibrante à
ideia da pequena expedição, que vamos empreender às colinas do litoral. Como
precisava, para levá-la a êxito, de um companheiro em quem pudesse confiar
absolutamente, lembrei-me de você. Fiz mal?
— Absolutamente não, respondi num
ímpeto de amizade sincera.
— Então não percamos tempo —
continuou Legrand. — Mesmo partindo já, temos que passar toda a noite fora e só
poderemos estar de volta ao amanhecer.
— Mas não me dirá?... —
balbuciei.
— Pergunte ao escaravelho. Ele
sabe — respondeu-me Legrand com um sorriso indefinível, que me deixou ainda
mais perplexo.
Como conciliar os disparates, que
meu amigo dizia, com a lucidez de seu olhar? Em todo caso, acompanhei-o, com o
coração opresso. O velho Júpiter ia adiante, carregando as foices e enxadas; o
cão seguia-nos, aos saltos. Eu levava duas lanternas; quanto a Legrand,
limitava-se a levar o famoso escaravelho preso a um rolo de barbante, fazendo-o
voltear no ar. Pelo caminho, por duas ou três vezes, tentei esclarecer o
intento de nossa expedição. Ele se limitava a dizer:
— O escaravelho sabe.
Atravessamos o estreito braço de
mar em um bote e, subindo a escarpa do litoral, seguimos em direção ao noroeste,
através de uma região absolutamente selvagem, onde não havia o menor vestígio
de criaturas humanas.
Ao fim de duas horas de marcha,
Legrand, fazendo-me subir a uma elevação do terreno, murmurou:
— E dizer-se que todo esse
território já foi o apanágio de minha família! Olhe, ali está arruinada, mas
ainda sólida e imponente, a casa que meu avô construiu.
Olhei na direção que ele me
indicava e vi um edifício de aspecto senhorial, mas que parecia abandonado no
campo deserto.
Depois caminhamos mais meia hora
e entramos em uma região de aspecto ainda mais desolado e lúgubre. Era um platô
situado no alto de uma colina quase inacessível, coberto por um bosque espesso
desde a base até o cume e cheio de rochedos enormes, espalhados ao acaso pelo
solo. Frestas imensas abertas em várias direções, acabavam de dar a essa colina
um caráter sinistro.
Compreendi então a necessidade
das foices, que meu amigo mandara comprar em Charleston; sem elas não teríamos
pedido abrir caminho pelas encostas dessa colina, tão intensa e desordenada era
a vegetação ali.
Obedecendo às indicações de seu
patrão, Júpiter abriu uma vereda em direção a uma árvore gigantesca, que se
erguia ali, no meio de outras, mas passando muito acima de todas.
Quando chegamos junto a essa
árvore, Legrand ordenou ao preto que subisse por ela até o início dos galhos.
— Quando chegar aí, eu lhe direi
o que terá a fazer. Mas olhe, leve o escaravelho consigo.
— Eu, meu senhor? — exclamou o
velho criado, recuando, com visível temor.
— Oh! Júpiter... Não seja tolo.
Então você tem medo de um bicho tão pequeno? Leve-o seguro pelo barbante...
— Mas para quê? — perguntei eu.
— Porque é preciso — disse
Legrand, sem outras explicações.
Entretanto, com a docilidade
habitual, Júpiter enrolou o barbante ao cinto e começou a subir pelo tronco,
com agilidade admirável. Chegando ao primeiro galho horizontal, que ficava
talvez a uns vinte metros de altura, instalou-se para descansar.
— Muito bem — gritou Legrand, cá
de baixo. — Agora siga pelo galho principal... esse que está aí à direita.
O preto, obedecendo, desapareceu
entre a folhagem.
— Onde está Você? — gritou meu
amigo, após alguns instantes.
— Alto, muito alto — respondeu a
voz abafada de Júpiter.
— Quantos galhos secundários você
já passou?...
— Cinco.
— Vá até o sexto e siga por ele —
gritou Legrand, visivelmente nervoso, exaltado.
Esperou um minuto talvez... e
ouviu-se um grito de pavor do velho criado...
— Oooh... meu Deus...
misericórdia!
— Que é? — perguntou com um riso
triunfante.
— Uma caveira. Há aqui uma
caveira presa ao tronco por um grande prego... Que horror!...
— Muito bem. Isso não tem
importância. Alguém esqueceu a cabeça ali e prendeu-a para não cair. Ouça!
Preste atenção para fazer bem direitinho o que eu vou dizer. Está ouvindo?
— Estou, sim senhor.
—
Enfie o escaravelho pelo olho direito da caveira e deixe o barbante
correr até o fim.
Esperamos um instante e vimos o
barbante surgir abaixo da folhagem com o escaravelho cintilando na ponta.
Imediatamente, Legrand apoderou-se de uma foice e começou a limpar a terra em
um círculo de duas ou três jardas de diâmetro, exatamente por baixo do lugar de
onde o inseto pendia. Feito isso, ordenou a Júpiter que deixasse cair o inseto e
descesse da árvore. Depois marcou com um pedaço de pau o lugar onde o
escaravelho caíra, tirou do bolso uma trena, amarrou-lhe a ponta ao tronco da
árvore e desenrolou-a, tomando como rumo a marca de pau, até uma distância de
dez metros; aí, espetou um novo pedaço de pau e traçando em torno um círculo de
um metro de diâmetro, pediu-nos que o auxiliássemos e começou a cavar com
verdadeira fúria. Auxiliei-o, mas de mau humor. Além de não me agradar
semelhante serviço, cansado como estava da caminhada, eu estava irritado com as
maneiras de Legrand e não tinha mais dúvida sobre seu desequilíbrio mental. Se
pudesse contar com o auxílio de Júpiter, em vez de me prestar àquele trabalho
imbecil, teria posto termo àquela comédia estúpida, levando-o para casa e obrigando-o
a se meter na cama.
Mas não podendo fazer outra
coisa, entrei a manejar a enxada à luz das lanternas que acendi, porque era já
noite quase fechada.
Trabalhamos assim penosamente,
durante cerca de duas horas, sem uma palavra, e isso era o que mais me
aborrecia. Estávamos já a mais de um metro de profundidade, sem encontrar coisa
alguma. Era evidente que meu amigo, impressionado com o encontro do
escaravelho, que parecia de ouro, metera-se em cabeça a mania de encontrar
algum tesouro oculto.
Em certo momento, detive-me e
fitei-o como quem diz: "Você não vê que estamos perdendo nosso
tempo?" Porém ele limitou-se a enxugar a fronte com ar preocupado e
recomeçou a escavação alargando o diâmetro um ou dois palmos.
Mas, ao fim de mais meia hora de
esforços, ele próprio desanimou. Saiu do buraco, vestiu o casaco, evidentemente
disposto a abandonar a tentativa. De súbito, porém, bateu na fronte e,
voltando-se para nós com ar furioso, disse:
— Foi este preto imbecil, que
estragou tudo... Aposto que ele não deixou o barbante escorrer pelo olho
direito da caveira...
— Eu... eu... — balbuciou o velho
Júpiter.
— Você é um animal — berrou
Legrand, sapateando de raiva. E explicou-me: —Esse idiota é canhoto... por
isso, erra sempre que se trata de determinar o direito ou o esquerdo. E eu sou
outro asno, porque não me lembrei disso.
O preto, acabrunhado, sacudia uma
e outra mão, alternadamente, tão perturbado, que não se atrevia a dizer coisa
alguma.
— Vê? exclamou. — Ele nem sabe
qual é a mão direita.
— A mão eu sei... mas caveira não
tem mão — alegou o preto, em tom lamentoso.
— Temos que recomeçar disse meu
amigo, trêmulo de furor. Correu à árvore. Apanhou a marca de pau, colocou-a uns
vinte centímetros para um lado, tornou a desenrolar a trena e mediu de novo dez
metros na nova direção, que o levou a várias jardas do buraco que havíamos
feito. Nesse ponto, traçou um círculo maior do que o primeiro e começou a cavar
com o vigor duplicado pela cólera.
Não se atreveu a me pedir
auxílio; mas, embora terrivelmente fatigado, imitei-o.
Estava certo de que tudo aquilo
era uma enorme tolice, mas não tinha coragem para abandonar Legrand. Tinha medo
de exaltá-lo ainda mais... provocar-lhe talvez um acesso furioso.
De repente, o cão, que havia já
alguns momentos começado a rosnar de modo singular, saltou para a escavação e
começou também a arranhar a terra com as patas.
Legrand precipitou os movimentos
e sua enxada não tardou a pôr a descoberto ossos, muitos ossos humanos,
formando pelo menos dois esqueletos.
Meu amigo recolheu e colocou de
parte, respeitosamente, esses tristes despojos e continuou a cavar.
Apareceram então, sucessivamente,
uma grande faca espanhola, duas pistolas muito enferrujadas, três ou quatro
moedas de ouro e, por fim, uma grande caixa de madeira chapeada de ferro.
Fiquei mudo de espanto. Júpiter
juntava as mãos e benzia-se. Legrand exultou:
— Hein! Eu não te dizia que o
escaravelho era mesmo de ouro e ia fazer minha fortuna? Mas não percamos tempo.
É preciso que essa caixa esteja em minha casa, antes do romper do dia.
Não foi fácil esse trabalho. A
caixa — um verdadeiro cofre de marinheiro do tempo antigo tinha três argolas de
ferro de cada lado; porém, puxando todos três ao mesmo tempo, não conseguimos
sequer movê-lo do lugar. Felizmente seus fechos estavam tão enferrujados que
Legrand não teve dificuldade em rebentá-los com a enxada.
O que vimos, então, encheu-nos de
assombro e delírio. A caixa estava cheia, literalmente cheia de moedas de ouro,
joias e pedras preciosas, em quantidade tamanha que, para aliviar o peso,
tivemos que tirar dela dois terços de sua carga, que escondemos em um maciço de
arbustos ali perto.
Então começamos por transportar a
caixa; depois o resto do tesouro, em sacos. Terminamos esse serviço já dia
claro, tão extenuados que, quando voltamos da última viagem, comemos
rapidamente alguns biscoitos, bebemos água e deitamo-nos a dormir.
***
Só despertei ao meio dia. Júpiter
continuava mergulhado no sono, porém meu amigo já estava de pé e começava
metodicamente o inventário do tesouro.
Era ainda mais considerável do
que eu imaginara a princípio, porque tudo quanto se continha na caixa fora escolhido.
Em moedas, todas de ouro, do
século XVII e anteriores, espanholas, francesas e alemãs, havia ali
quatrocentos e cinquenta mil dólares. As joias (com exceção de relógios, que
eram oitenta e seis, todos cravejados de gemas) tinham sido amassadas a martelo,
mas o valor do ouro ia a mais de duzentos mil dólares. Porém o mais valioso na
caixa era a coleção de pedras preciosas — diamantes, rubis, esmeraldas, todos
de grande tamanho, constituindo uma riqueza que não podíamos avaliar no
momento.
Depois de tudo contado e
separado, depois de uma farta refeição, Legrand acendeu o cachimbo e resolveu
afinal explicar-me como chegara àquele prodigioso descobrimento.
— Você se lembra da noite em que
desenhei o escaravelho para lhe mostrar? — começou ele. — Não encontrando um pedaço de papel em cima da
mesa, procurei nas algibeiras e acabei por achar um muito sujo...
Quando você me disse que, em vez
de um inseto, eu desenhara uma caveira, fiquei muito surpreendido...
Examinando, por minha vez o
desenho, verifiquei duas coisas que me impressionaram profundamente: 1° — que a
caveira estava do outro lado, nas costas da figura que eu traçara; 2° — que
aquilo não era um papel, mas uma folha de pergaminho muito fina e, portanto, de
excelente qualidade.
Uma multidão de ideias
disparatadas mas cheias de esperanças tumultuaram em meu cérebro. Geralmente os
pergaminhos são utilizados para a conservação de documentos importantes... a
caveira foi sempre o emblema de piratas... Ora, eu sempre ouvira falar na
tradição de que o famoso pirata Kidd enterrara um tesouro nos terrenos de nossa
propriedade, esses por onde andamos na noite passada... E como encontrara o
pergaminho justamente na ponta extrema da península formada por esse terreno...
Lembrava-me bem. Eu andava em
busca de insetos raros, quando descobri o escaravelho de ouro. Receoso de
segurá-lo com a mão, apanhara aquele suposto papel, cuja ponta surgia de entre
dois rochedos próximos. Depois, ao que parece, metera-o no bolso,
distraidamente.
Naquela noite, no primeiro
momento, uma tal multiplicidade de hipóteses loucas se erguia em meu espírito
que nada lhe quis dizer e deixei que se retirasse sem uma palavra. Ficando a
sós com Júpiter, dediquei-me a esclarecer aquele mistério. Lavado
cuidadosamente, o pergaminho deixou ver outros vestígios de desenhos e letras.
Tudo muito confuso, mal
escrito... Foi por isso que eu despendi cerca de um mês para ter a certeza da
existência de um tesouro oculto em meus terrenos e compreender as indicações.
Sabe Deus com que esforço, mas acabei por decifrar tudo. Pelo menos tive a
convicção de que entendera as indicações muito vagas em linguagem hiperbólica e
infantil.
Evidentemente, o pergaminho fora
desenhado e escrito pelo próprio capitão Kidd ou por algum de seus assistentes.
Além do desenho da caveira havia ali uma árvore, e os dizeres eram os
seguintes:
Um bom copo na casa do bispo e na
cadeira do demônio — quarenta graus e treze minutos nordeste e quatro de norte
— galho principal do sétimo tronco lado leste — deixe cair a sonda pelo olho
esquerdo do morto e através da direção dez metros ao largo.
— Que complicação! — exclamei. —
Eu nunca teria decifrado semelhante enigma.
— E eu com grandes esforços. A primeira coisa que me
preocupou, foi essa história de casa do bispo. No tempo de Kidd não havia bispo
algum na América. Mas à força de pesquisas, soube que a casa reedificada por
meu pai pertencera primitivamente a um aventureiro chamado Bessop, que foi um
dos primeiros habitantes da região. Ora bispo em inglês é bishop. Casa do
bishop podia muito bem ser casa de Bessop. Mas cadeira do demônio?... Para ver
se descobria o que poderia ser, fui até nossa antiga residência e, colocando-me
à porta, vi aproximadamente a dois quilômetros uma rocha negra, muito grande e
de forma singular... dando perfeita impressão de uma poltrona. Não era muita
coincidência? Pois bem, ouça... No prolongamento da linha formada pela casa e
essa rocha havia uma árvore enorme, a maior da floresta que aí começa. Diante
disso, não tive mais dúvidas. Mandei Júpiter comprar a ferramentas necessárias
à expedição, mandei chamá-lo e... aí está.
— Aí está... aí está... — repeti
eu, ainda com um resto de mau humor. — Mas você podia me ter dita isso logo, em
vez de nos assustar com palavras e atitudes extravagantes. Eu e Júpiter chegamos julgá-lo doido varrido.
Legrand riu... meio zombeteiro,
meio vexado. — Ora... eu nada queria
dizer antes da prova com medo de um fracasso...
Quanto a me servir do escaravelho como instrumento de sondagem e dizer
algumas tolices... Ora, meu amigo... qualquer outro em meu lugar, entrevendo
uma perspectiva inesperada de passar subitamente da miséria à riqueza, havia de
ficar um tanto exaltado...
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