9/19/2016

O Escaravelho de Ouro (Conto), de Edgar Allan Poe



O Escaravelho de Ouro, de Edgar Allan Poe

Tradução de 1929, com adaptação ortográfica de Iba Mendes


Havia já cinco ou seis anos que eu conhecia William Legrand. Ele descendia de uma velha família huguenote, que outrora fora muito rica; porém ficara arruinado por uma série de revezes. Para fugir às consequências dessa decadência, partiu de Nova Orleans e foi se instalar na ilha de Sullivan, próximo a Charleston, na Carolina cio Sul.

Essa ilha é singular; composta por um banco de areia com o comprimento de três milhas e um quarto de milha de largura, é separada do continente apenas por uma nesga de mar muito estreita. Teda a vegetação da ilha se limita a caniços, onde pululam galinhas d'água. Árvore nem uma. Na extremidade oeste, há, ali, forte Moultrie e algumas cabanas habitadas no verão por pessoas que fogem de Charleston, de sua poeira e de suas febres; no resto da ilha há somente arbustos ralos.

Legrand construíra na extrema ponta oriental dessa ilha uma pequena casa de tábuas, onde me habituei a visitá-lo, porque tomara por ele verdadeira amizade.

Depois que se arruinara, Legrand vivia ali tendo como únicas distrações a caça, a pesca, alguns livros e uma coleção de conchas e insetos, que iniciara, à falta de melhor ocupação. Tinha conto único companheiro um criado, o velho Júpiter, um preto que servira seu pai e era-lhe dedicado como um cão.

Nesse dia, chegando à ilha e encontrando a casa de Legrand vazia, instalei-me com a sem-cerimônia, que nossa intimidade me permitia, fazendo café e escolhendo um livro para matar o tempo. Meu amigo só chegou ao cair da noite em companhia de Júpiter, que trazia duas galinhas d'água para o jantar.

Ambos demonstraram alegria sincera ao ver-me e, como eu perguntasse por sua famosa coleção, Legrand exaltou-se logo, comunicando-me que capturara na véspera um exemplar raro, talvez único no mundo, um escaravelho enorme, colossal e tedo cor de ouro...

— Cor de ouro, não, senhor... ele é de ouro mesmo —  interveio Júpiter, com a familiaridade inocente de um criado que andou com o patrão ao colo. — Esse escaravelho é de ouro mesmo.

— Maluco! — disse Legrand, dando de ombros. — De fato esse animal é singularmente pesado... então, ele pensa que... Mas, imagine que, não podendo supor que o ia encontrar aqui, deixei o precioso inseto com o tenente do forte, que me pediu para fotografá-lo. Mas amanhã irei buscá-lo. Espere... vou desenhá-lo aqui, para que faças uma ideia.

Sentou-se diante de sua pequenina mesa e molhou a pena no tinteiro. Mas procurou em vão um pedaço de papel no meio dos livros atirados em desordem. Então pesquisou nas algibeiras e acabou por achar uma folha em branco, embora bastante suja.

— Ora! disse ele depois de hesitar um instante. — Isso mesmo serve.

Riscou rapidamente um desenho e estendeu-o. Quando, porém, eu o tomava entre os dedos, Júpiter abriu a porta do canil e Gog, o grande cão de Legrand, que era muito meu amigo, veio, aos saltos, fazer-me festas, com tal ímpeto que deixei cair o papel. Quando o apanhei afinal e lancei sobre ele o olhar, fiquei estupefato.

— Ora essa! — exclamei. Que demônio de escaravelho desenhou você aqui? Isso parece mais uma caveira!

— Como? — redarguiu Legrand. — Uma caveira?

Curvou-se para o desenho e, visivelmente surpreendido, deteve-se a fitá-lo. Houve então em seu rosto uma série de transformações rápidas. Corou, empalideceu... depois examinou atentamente o papel à luz da lâmpada e, sem uma palavra, foi se sentar em cima de uma mala, colocada no outro extremo da sala, como se se quisesse isolar com seus pensamentos.

Por fim tirou do bolso a carteira e guardou nela o papel com muito cuidado, como se fosse coisa das mais preciosas.

Tornou-se então mais calmo, mas pediu-me desculpas de sua abstração, com ar tão absorto, que me esquivei de interrogá-lo.

Todo o gênio expansivo de Legrand parecia ter desaparecido. Continuando a me tratar com a cordialidade do costume, estava distraído e, quanto mais os minutos corriam, mais ele se mergulhava numa preocupação absorvente e tirânica.

Tanto que, sem mais falar em nossos projetos para o dia seguinte, despedi-me e ele nada fez para me deter ali. Mas tive a impressão de que me abraçava com mais carinho e entusiasmo do que nunca.

***

Quase um mês se passou, depois disso, sem que eu tivesse notícias de Legrand, quando, um belo dia, tive a surpresa de ver o velho Júpiter aparecer em minha casa.

— Olá! Você por aqui? perguntei. — Que veio fazer em Charleston?

— Fazer compras e trazer uma carta para vosmicê — respondeu-me o bom preto, pousando no soalho, com esforço, um embrulho enorme, que tiniu como som de metal.

— E como está seu patrão? — continuei, abrindo a carta.

— Ah! meu senhor... — disse Júpiter, coçando a carapinha, com embaraço. —  Parece que não esta bom.

— Não está bom de quê?

— Da... da cabeça... vosmicê desculpe. E tudo por causa daquele maldito escaravelho.

— Que escaravelho... Ah!... o tal de ouro?... Mas que tem ele com a cabeça de Legrand? — interroguei, inquieto.

— Ah!... eu não sei, meu senhor; mas depois que achou aquele bicho maldito é que meu senhor deu pra viver calado, para passar a noite inteirinha escrevendo números... e passar dias inteiros fora de casa, sem que eu saiba onde ele anda.

—  Mas tudo por causa do escaravelho?...

— Pelo menos foi desde o dia em que ele apare... o excomungado! — afirmou o preto. — Vosmicê quer a prova? O escaravelho é de ouro... Pois agora meu senhor até deu para falar sozinho... e fala em ouro.

— Que me diz?

— Eu  ouvi,   meu  senhor,  eu  ouvi...

— Bom — disse eu, desanimando de compreender. — Vamos ver o que ele me manda dizer.

A   carta   estava   assim   redigida.

"Meu caro amigo.

Que fim levou você? Terá se zangado porque não  lhe   dediquei,   no outro dia, a   atenção que  me   merece? Não o acredito.

Por isso, se não está muito preso por seus trabalhos, venha com Júpiter. Preciso de sua presença esta noite, para um negócio muito sério.

Seu cordialmente

William Legrand."

Fiquei assombrado. Que negócio muito sério poderia ser esse, para o qual minha presença era indispen­sável? Pelo que Júpi­ter me dissera, eu co­meçava a recear que meu amigo estivesse de fato com as facul­dades mentais alte­radas.

— Que compras foram essas, que você vem fazer?

— Ah!... É outra coisa. Meu senhor mandou-me comprar foices, pás, enxadas... Para que será tudo isso, meu Deus! Nin­guém sabe...

Cada vez mais in­trigado, mas por isso mesmo incapaz de abandonar meu amigo, preparei-me rapidamente para seguir o velho Júpiter.

Chegamos por volta de três horas da tarde. Legrand, que parecia esperar-nos com impaciência, veio a nosso encontro, com uma vivacidade, que mais aumentou mi­nhas suspeitas. Mas, como só falava em generalidades, parecendo não saber como come­çar o que pretendia dizer-me, perguntei-lhe pelo escaravelho.

— Ah!.... — exclamou ele, com um estranho olhar. — Sabe que, afinal, quem tinha razão era Júpiter?

— Como?

— Esse animal  é  mesmo de ouro.

Pronunciou essas palavras com ar tão sério, que fiquei interdito e desolado.

— De ouro — repetiu Legrand, com um sorriso triunfante. — E ele vai fazer minha fortuna... Mas venha cá. Você ainda não o conhece...

Levou-me até uma pequena mesa de mármore onde o escaravelho estava preso sob uma tampa de vidro. Era de fato um animal soberbo, de um amarelo positivamente cor de ouro, com duas manchas negras nas costas e outra na cabeça.

— Mandei chamá-lo — disse Legrand, depois de me deixar examinar atentamente o inseto — mandei chamá-lo, para que me ajude a realizar os desígnios da Providência e do escaravelho.

Disse isto num  tom enfático,  solene.

Não podendo mais conter meu espanto, tomei-o por um braço e disse-lhe ao ouvido:

— William... você está nervoso... um pouco exaltado... Por que não se deita para descansar uma hora ou duas?

Ele desatou a rir, com ar jocoso e houve em seu olhar um lampejo de inteligência tão vivaz, que não me atrevi a prosseguir. Então ele pousou as mãos sobre meus ombros e, fitando-me bem nos olhos, disse:

— Tranquilize-se, camarada. Eu estou perfei­tamente são de corpo e de espírito; apenas um pouco vibrante à ideia da pequena expedição, que vamos empreender às colinas do litoral. Como precisava, para levá-la a êxito, de um companheiro em quem pudesse confiar absolutamente, lembrei-me de você. Fiz mal?

— Absolutamente não, respondi num ímpeto de amizade sincera.

— Então não percamos tempo — continuou Legrand. — Mesmo partindo já, temos que passar toda a noite fora e só poderemos estar de volta ao amanhecer.

— Mas não me dirá?... — balbuciei.

— Pergunte ao escaravelho. Ele sabe — respondeu-me Legrand com um sorriso indefinível, que me deixou ainda mais perplexo.

Como conciliar os disparates, que meu amigo dizia, com a lucidez de seu olhar? Em todo caso, acompanhei-o, com o coração opresso. O velho Júpiter ia adiante, carregando as foices e enxadas; o cão seguia-nos, aos saltos. Eu levava duas lanternas; quanto a Legrand, limitava-se a levar o famoso escaravelho preso a um rolo de barbante, fazendo-o voltear no ar. Pelo caminho, por duas ou três vezes, tentei esclarecer o intento de nossa expedição. Ele se limitava a dizer:

— O escaravelho sabe.

Atravessamos o estreito braço de mar em um bote e, subindo a escarpa do litoral, seguimos em direção ao noroeste, através de uma região absolutamente selvagem, onde não havia o menor vestígio de criaturas humanas.

Ao fim de duas horas de marcha, Legrand, fazendo-me subir a uma elevação do terreno, murmurou:

— E dizer-se que todo esse território já foi o apanágio de minha família! Olhe, ali está arruinada, mas ainda sólida e imponente, a casa que meu avô construiu.

Olhei na direção que ele me indicava e vi um edifício de aspecto senhorial, mas que parecia abandonado no campo deserto.

Depois caminhamos mais meia hora e entramos em uma região de aspecto ainda mais desolado e lúgubre. Era um platô situado no alto de uma colina quase inacessível, coberto por um bosque espesso desde a base até o cume e cheio de rochedos enormes, espalhados ao acaso pelo solo. Frestas imensas abertas em várias direções, acabavam de dar a essa colina um caráter sinistro.

Compreendi então a necessidade das foices, que meu amigo mandara comprar em Charleston; sem elas não teríamos pedido abrir caminho pelas encostas dessa colina, tão intensa e desordenada era a vegetação ali.

Obedecendo às indicações de seu patrão, Júpiter abriu uma vereda em direção a uma árvore gigantesca, que se erguia ali, no meio de outras, mas passando muito acima de todas.

Quando chegamos junto a essa árvore, Legrand ordenou ao preto que subisse por ela até o início dos galhos.

— Quando chegar aí, eu lhe direi o que terá a fazer. Mas olhe, leve o escaravelho consigo.

— Eu, meu senhor? — exclamou o velho criado, recuando, com visível temor.

— Oh! Júpiter... Não seja tolo. Então você tem medo de um bicho tão pequeno? Leve-o seguro pelo barbante...

— Mas para quê? — perguntei eu.

— Porque é preciso — disse Legrand, sem outras explicações.

Entretanto, com a docilidade habitual, Júpiter enrolou o barbante ao cinto e começou a subir pelo tronco, com agilidade admirável. Chegando ao primeiro galho horizontal, que ficava talvez a uns vinte metros de altura, instalou-se para descansar.

— Muito bem — gritou Legrand, cá de baixo. — Agora siga pelo galho principal... esse que está aí à direita.

O preto, obedecendo, desapareceu entre a folhagem.

— Onde está Você? — gritou meu amigo, após alguns instantes.

— Alto, muito alto — respondeu a voz abafada de Júpiter.

— Quantos galhos secundários você já passou?...

— Cinco.

— Vá até o sexto e siga por ele — gritou Legrand, visivelmente nervoso, exaltado.

Esperou um minuto talvez... e ouviu-se um grito de pavor do velho criado...

— Oooh... meu Deus... misericórdia!

— Que é? — perguntou com um riso triunfante.

— Uma caveira. Há aqui uma caveira presa ao tronco por um grande prego... Que horror!...

— Muito bem. Isso não tem importância. Alguém esqueceu a cabeça ali e prendeu-a para não cair. Ouça! Preste atenção para fazer bem direitinho o que eu vou dizer. Está ouvindo?

— Estou, sim senhor.

—  Enfie o escaravelho pelo olho direito da caveira e deixe o barbante correr até o fim.

Esperamos um instante e vimos o barbante surgir abaixo da folhagem com o escaravelho cintilando na ponta. Imediatamente, Legrand apoderou-se de uma foice e começou a limpar a terra em um círculo de duas ou três jardas de diâmetro, exatamente por baixo do lugar de onde o inseto pendia. Feito isso, ordenou a Júpiter que deixasse cair o inseto e descesse da árvore. Depois marcou com um pedaço de pau o lugar onde o escaravelho caíra, tirou do bolso uma trena, amarrou-lhe a ponta ao tronco da árvore e desenrolou-a, tomando como rumo a marca de pau, até uma distância de dez metros; aí, espetou um novo pedaço de pau e traçando em torno um círculo de um metro de diâmetro, pediu-nos que o auxiliássemos e começou a cavar com verdadeira fúria. Auxiliei-o, mas de mau humor. Além de não me agradar semelhante serviço, cansado como estava da caminhada, eu estava irritado com as maneiras de Legrand e não tinha mais dúvida sobre seu desequilíbrio mental. Se pudesse contar com o auxílio de Júpiter, em vez de me prestar àquele trabalho imbecil, teria posto termo àquela comédia estúpida, levando-o para casa e obrigando-o a se meter na cama.

Mas não podendo fazer outra coisa, entrei a manejar a enxada à luz das lanternas que acendi, porque era já noite quase fechada.

Trabalhamos assim penosamente, durante cerca de duas horas, sem uma palavra, e isso era o que mais me aborrecia. Estávamos já a mais de um metro de profundidade, sem encontrar coisa alguma. Era evidente que meu amigo, impressionado com o encontro do escaravelho, que parecia de ouro, metera-se em cabeça a mania de encontrar algum tesouro oculto.

Em certo momento, detive-me e fitei-o como quem diz: "Você não vê que estamos perdendo nosso tempo?" Porém ele limitou-se a enxugar a fronte com ar preocupado e recomeçou a escavação alargando o diâmetro um ou dois palmos.

Mas, ao fim de mais meia hora de esforços, ele próprio desanimou. Saiu do buraco, vestiu o casaco, evidentemente disposto a abandonar a tentativa. De súbito, porém, bateu na fronte e, voltando-se para nós com ar furioso, disse:

— Foi este preto imbecil, que estragou tudo... Aposto que ele não deixou o barbante escorrer pelo olho direito da caveira...

— Eu... eu... — balbuciou o velho Júpiter.

— Você é um animal — berrou Legrand, sapateando de raiva. E explicou-me: —Esse idiota é canhoto... por isso, erra sempre que se trata de determinar o direito ou o esquerdo. E eu sou outro asno, porque não me lembrei disso.

O preto, acabrunhado, sacudia uma e outra mão, alternadamente, tão perturbado, que não se atrevia a dizer coisa alguma.

— Vê? exclamou. — Ele nem sabe qual é a mão direita.

— A mão eu sei... mas caveira não tem mão — alegou o preto, em tom lamentoso.

— Temos que recomeçar disse meu amigo, trêmulo de furor. Correu à árvore. Apanhou a marca de pau, colocou-a uns vinte centímetros para um lado, tornou a desenrolar a trena e mediu de novo dez metros na nova direção, que o levou a várias jardas do buraco que havíamos feito. Nesse ponto, traçou um círculo maior do que o primeiro e começou a cavar com o vigor duplicado pela cólera.

Não se atreveu a me pedir auxílio; mas, embora terrivelmente fatigado, imitei-o.

Estava certo de que tudo aquilo era uma enorme tolice, mas não tinha coragem para abandonar Legrand. Tinha medo de exaltá-lo ainda mais... provocar-lhe talvez um acesso furioso.

De repente, o cão, que havia já alguns momentos começado a rosnar de modo singular, saltou para a escavação e começou também a arranhar a terra com as patas.

Legrand precipitou os movimentos e sua enxada não tardou a pôr a descoberto ossos, muitos ossos humanos, formando pelo menos dois esqueletos.

Meu amigo recolheu e colocou de parte, respeitosamente, esses tristes despojos e continuou a cavar.

Apareceram então, sucessivamente, uma grande faca espanhola, duas pistolas muito enferrujadas, três ou quatro moedas de ouro e, por fim, uma grande caixa de madeira chapeada de ferro.

Fiquei mudo de espanto. Júpiter juntava as mãos e benzia-se. Legrand exultou:

— Hein! Eu não te dizia que o escaravelho era mesmo de ouro e ia fazer minha fortuna? Mas não percamos tempo. É preciso que essa caixa esteja em minha casa, antes do romper do dia.

Não foi fácil esse trabalho. A caixa — um verdadeiro cofre de marinheiro do tempo antigo tinha três argolas de ferro de cada lado; porém, puxando todos três ao mesmo tempo, não conseguimos sequer movê-lo do lugar. Felizmente seus fechos estavam tão enferrujados que Legrand não teve dificuldade em rebentá-los com a enxada.

O que vimos, então, encheu-nos de assombro e delírio. A caixa estava cheia, literalmente cheia de moedas de ouro, joias e pedras preciosas, em quantidade tamanha que, para aliviar o peso, tivemos que tirar dela dois terços de sua carga, que escondemos em um maciço de arbustos ali perto.

Então começamos por transportar a caixa; depois o resto do tesouro, em sacos. Terminamos esse serviço já dia claro, tão extenuados que, quando voltamos da última viagem, comemos rapidamente alguns biscoitos, bebemos água e deitamo-nos a dormir.

***

Só despertei ao meio dia. Júpiter continuava mergulhado no sono, porém meu amigo já estava de pé e começava metodicamente o inventário do tesouro.

Era ainda mais considerável do que eu imaginara a princípio, porque tudo quanto se continha na caixa fora escolhido.

Em moedas, todas de ouro, do século XVII e anteriores, espanholas, francesas e alemãs, havia ali quatrocentos e cinquenta mil dólares. As joias (com exceção de relógios, que eram oitenta e seis, todos cravejados de gemas) tinham sido amassadas a martelo, mas o valor do ouro ia a mais de duzentos mil dólares. Porém o mais valioso na caixa era a coleção de pedras preciosas — diamantes, rubis, esmeraldas, todos de grande tamanho, constituindo uma riqueza que não podíamos avaliar no momento.

Depois de tudo contado e separado, depois de uma farta refeição, Legrand acendeu o cachimbo e resolveu afinal explicar-me como chegara àquele prodigioso descobrimento.

— Você se lembra da noite em que desenhei o escaravelho para lhe mostrar? — começou ele. —  Não encontrando um pedaço de papel em cima da mesa, procurei nas algibeiras e acabei por achar um muito sujo...

Quando você me disse que, em vez de um inseto, eu desenhara uma caveira, fiquei muito surpreendido...

Examinando, por minha vez o desenho, verifiquei duas coisas que me impressionaram profundamente: 1° — que a caveira estava do outro lado, nas costas da figura que eu traçara; 2° — que aquilo não era um papel, mas uma folha de pergaminho muito fina e, portanto, de excelente qualidade.

Uma multidão de ideias disparatadas mas cheias de esperanças tumultuaram em meu cérebro. Geralmente os pergaminhos são utilizados para a conservação de documentos importantes... a caveira foi sempre o emblema de piratas... Ora, eu sempre ouvira falar na tradição de que o famoso pirata Kidd enterrara um tesouro nos terrenos de nossa propriedade, esses por onde andamos na noite passada... E como encontrara o pergaminho justamente na ponta extrema da península formada por esse terreno...

Lembrava-me bem. Eu andava em busca de insetos raros, quando descobri o escaravelho de ouro. Receoso de segurá-lo com a mão, apanhara aquele suposto papel, cuja ponta surgia de entre dois rochedos próximos. Depois, ao que parece, metera-o no bolso, distraidamente.

Naquela noite, no primeiro momento, uma tal multiplicidade de hipóteses loucas se erguia em meu espírito que nada lhe quis dizer e deixei que se retirasse sem uma palavra. Ficando a sós com Júpiter, dediquei-me a esclarecer aquele mistério. Lavado cuidadosamente, o pergaminho deixou ver outros vestígios de desenhos e letras.

Tudo muito confuso, mal escrito... Foi por isso que eu despendi cerca de um mês para ter a certeza da existência de um tesouro oculto em meus terrenos e compreender as indicações. Sabe Deus com que esforço, mas acabei por decifrar tudo. Pelo menos tive a convicção de que entendera as indicações muito vagas em linguagem hiperbólica e infantil.

Evidentemente, o pergaminho fora desenhado e escrito pelo próprio capitão Kidd ou por algum de seus assistentes. Além do desenho da caveira havia ali uma árvore, e os dizeres eram os seguintes:

Um bom copo na casa do bispo e na cadeira do demônio — quarenta graus e treze minutos nordeste e quatro de norte — galho principal do sétimo tronco lado leste — deixe cair a sonda pelo olho esquerdo do morto e através da direção dez metros ao largo.

— Que complicação! — exclamei. — Eu nunca teria decifrado semelhante enigma.

— E eu  com grandes esforços. A primeira coisa que me preocupou, foi essa história de casa do bispo. No tempo de Kidd não havia bispo algum na América. Mas à força de pesquisas, soube que a casa reedificada por meu pai pertencera primitivamente a um aventureiro chamado Bessop, que foi um dos primeiros habitantes da região. Ora bispo em inglês é bishop. Casa do bishop podia muito bem ser casa de Bessop. Mas cadeira do demônio?... Para ver se descobria o que poderia ser, fui até nossa antiga residência e, colocando-me à porta, vi aproximadamente a dois quilômetros uma rocha negra, muito grande e de forma singular... dando perfeita impressão de uma poltrona. Não era muita coincidência? Pois bem, ouça... No prolongamento da linha formada pela casa e essa rocha havia uma árvore enorme, a maior da floresta que aí começa. Diante disso, não tive mais dúvidas. Mandei Júpiter comprar a ferramentas necessárias à expedição, mandei chamá-lo e... aí está.

— Aí está... aí está... — repeti eu, ainda com um resto de mau humor. — Mas você podia me ter dita isso logo, em vez de nos assustar com palavras e atitudes extravagantes.  Eu e Júpiter chegamos julgá-lo doido varrido.

Legrand riu... meio zombeteiro, meio vexado.  — Ora... eu nada queria dizer antes da prova com medo de um fracasso...  Quanto a me servir do escaravelho como instrumento de sondagem e dizer algumas tolices... Ora, meu amigo... qualquer outro em meu lugar, entrevendo uma perspectiva inesperada de passar subitamente da miséria à riqueza, havia de ficar um tanto exaltado...

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