A casa dos loucos, de Edgar Allan Poe
Tradução de 1928, com adaptação ortográfica de Iba Mendes (2016)
Quando
manifestei a meu amigo Loustan o desejo de visitar essa Casa de Saúde
particular, dedicada especialmente a loucos, ele não disfarçou um gesto de mau
humor.
—
Que ideia! Então você me convida para uma excursão de caça pelos Pireneus e agora
quer visitar um hospício? Nunca entrei nem nunca hei de entrar em uma casa desse
gênero. Tenho horror aos loucos... Por mais mansos que sejam, assustam-me.
—
Pois eu sempre tive grande desejo de observá-los de perto... Se não opusessem
sempre tão grandes dificuldades à entrada de leigos...
—
Essa não seja a dúvida disse Louston — Se você se empenha mesmo nisso... Eu
tenho boas relações com o sr. Maillard...
—
Quem é esse sr. Maillard?
—
É o diretor da Casa de Saúde. Se quer, eu o apresento... mas desde já o
previno, não passo da porta da rua. Vou até lá somente para lhe fazer a vontade.
E
assim se fez.
Vista
da pequena cidade mele nos havíamos instalado, a Casa de Saúde parecia muito próxima,
mas para chegar a ela tivemos que caminhar mais de uma hora, por estradas em ladeira
e nem sempre bem conservadas.
Quando,
afinal saltamos de nossos cavalos diante do portão, tive uma impressão desagradável
ao ver o edifício. Era um antigo castelo, com a fachada muito estragada pelo
tempo o de aspecto fantástico. Atravessamos um jardim, que parecia abandonado e
aproximando-nos da porta de entrada, vimos que ela estava entreaberta e o rosto
de um homem surgindo junto no umbral fitava-nos com ar desconfiado. Porém
Loustan saudou-o pelo nome e o sr. Maillard — pois era ele — veio a nosso
encontro com um sorriso amável.
Era
um homem de alta estatura, com maneiras de fidalgo e muito cortês, a despeito
da expressão grave e autoritária, que parecia ser-lhe habitual.
Meu
amigo apresentou-me, expôs-lhe meu desejo de visitar o estabelecimento e desde
que o sr. Maillard lhe assegurou que tudo me facilitaria de bom grado, alegou
um compromisso urgente e retirou-se.
Então
o diretor fez-me entrar para um vestíbulo exíguo, mas muito limpo e onde, entre
outros objetos denunciando gosto apurado, vi livros, quadros e instrumentos de música.
Quando entramos, uma moça de rara formosura estava sentada ao piano e tocava um
trecho de Belline. Ao ver-me, deteve-se e saldou-me com graça perfeita. Estava
vestida de luto e seu rosto pálido parecia marcado por um profundo desgosto.
Tinham-me
dito em Paris que essa Casa de Saúde fora uma das primeiras a adotar o tratamento
pela doçura. Toda a violência física fora banida e era mesmo raro que se
mantivessem os loucos presos em cubículos. Recordando essas informações,
examinei atentamente a linda moça. Seria ela uma das internadas? Havia em seus
olhos um fulgor tão singular!... Falei-lhe, tendo o cuidado de dizer apenas as
banalidades menos capazes de exaltar ou contrariar uma demente. Ela respondia-me
com palavras perfeitamente sensatas e mesmo com inteligência notável, mas eu já
havia lido bastante sobre loucos para saber que não nos devemos fiar nessas aparências.
Quando
um criado trouxe refrescos e a moça, com uma breve saudação retirou-se do
vestíbulo, dirigi ao sr. Maillard um olhar tão francamente interrogador que ele
protestou:
—
Não... não... essa moça é minha sobrinha .
—
Peço-lhe que me desculpe... como sei que os loucos, aqui, andam livremente...
—
Andavam corrigiu tristemente o sr. Maillard.
—
Como?! exclamei, sinceramente contristado. — Será possível que tenha renunciado
a seu método, que tanto ouvi elogiar...
—Sim...
infelizmente, fui forçado a isso, há já algumas semanas... A prática é, afinal
de contas, o melhor dos mestres e obrigou-me a voltar à velha rotina.
—
Que pena!
—
Eu o lamento ainda mais do que o senhor...
Teria
tanto prazer em mostrar-lhe como aplicava meu método, que, a princípio, parecia
produzir o melhores resultados. Como deve saber, o que caracteriza em geral, os
loucos, é uma ideia fixa, uma mania... Pois bem e em vez de contrariar essas
manias, eu fingia aceitá-las por mais absurdas que fossem.
Por
exemplo, um de nossos doentes tinha a ideia fixa de que era um galo. Que fazia
eu? Servia-lhe os alimentos numa lata, colocada no chão no galinheiro e
chamava-o assim:
—
Pi... pi... pi... pi... Venha cá. Aqui está seu milho.
—
E isso era bastante para acalmá-los e... curá-los?...
—
Não. Mas juntávamos a essa aquiescência, distrações, variadas: — música, dança,
ginástica, jogos... As vezes encarregava um louco de vigiar outro, fingindo ter
inteira confiança em sua habilidade... Isso dava resultados maravilhosos!
—
E não os prendia?
—
Muito raramente. Apenas nos casos de acesso de fúria. Então era preciso isolá-lo
para que os outros não fossem contagiados. De resto; em regra, não aceitamos
aqui loucos furiosos.
Mas,
como lhe disse, acabei por ter tão dolorosas provas de que esse sistema era
perigoso...
—
Pois estou surpreendido — atalhei com sincera tristeza. — Tinham-me dito exatamente
o contrário.
—
Ah! meu amigo — suspirou o sr. Maillard — O senhor é ainda muito moço. Ainda
acredita em tudo quanto lhe dizem. Mas vamos jantar. Depois eu o farei visitar
todo o estabelecimento e explicar-lhe-ei o novo sistema.
—
Ah!... então adotou um sistema novo?
—
E de resultados prodigiosos, o mais eficaz dos sistemas até hoje imaginados.
***
Pouco
depois, entrávamos na sala de jantar onde tive a surpresa de encontrar vinte e
cinco ou trinta pessoas já sentadas à mesa. Meu espanto ainda foi maior quando
notei que todas essas pessoas estavam vestidas com grande luxo mas com roupas antigas.
Principalmente as senhoras, que constituíam a maioria da assembleia, exibiam
vestidos de há vinte, trinta e até de há cem anos. A própria moça, que o sr. Maillard
me apresentara no vestuário, dizendo-me ser sua sobrinha apresentava-se agora
com um vestido de cestinhas e anquinhas, grande demais para ela e que
a tornava lamentavelmente ridícula. E cada qual ostentava os adornos mais
variados numa tal confusão de épocas e modas que comecei a desconfiar de que o sr.
Maillard me enganara, para melhor apreciar minhas impressões e que aqueles eram
os asilados, os loucos, que, de acordo com o método de doçura, tinham a
liberdade de se vestir como bem entendessem.
A
mesa era soberba, com prataria maciça e iguarias perfeitas mas excessivas. Os
convivas eram trinta no máximo e havia ali jantar para mais de cem pessoas. Havia
também exagero de luzes. Em suma, tudo aquilo era tão estranho que eu não sabia
o que pensar; mas sentado ao lado do diretor do estabelecimento tratei de
saborear o que me serviam.
Em
toda a mesa a conversação se generalizou com animação, porém o que mais me
impressionou foi que o assunto predileto de todos era a loucura, suas várias
modalidades e os casos mais característicos dessa triste enfermidade.
—
Tivemos aqui... — dizia um homenzinho magro, sentado a minha esquerda —... um sujeito
que tinha a mania de pensar que era um bule. O mais curioso é que essa ideia
tão estranha é muito comum entre os loucos. Raro é o hospício em que não há um
homem-bule. O homem de quem falo, acreditava-se bule de metal branco, e todas
as manhãs esfrega-se cuidadosamente com uma flanela untada de pasta contra a
ferrugem.
—
Conheci outro disse um homem alto e gordo, do outro lado da mesa — que
julgava-se um burro.
—
Mais extraordinário ainda era outro, que eu conheci e que afirmava ser um
queijo... e andava de faca em punho, pedindo a toda gente que provasse um
pedacinho de sua perna e de -seu braço.
—
Isso é uma fantasia inocente — gritou o homem gordo — O que se imaginava um
burro era mais perigoso porque dava coices para todos os lados... assim...
—
Oh!... sr. de Koch!... Contenha-se! exclamou uma senhora idosa, alcançada pela
mímica exuberante do homem gordo. — Está sujando e rasgando meu vestido.
—
Mil perdões, Mlle... — disse o sr. de Koch, curvando-se e beijando a própria
mão, com uma reverência das usadas no outro século.
Não
tendo mais dúvidas, voltei-me para o sr. Maillard e ia gracejar sobre o modo
como tentara enganar-me. Porém, justamente nesse instante, ele tomou um ar misterioso
para me dizer em voz baixa:
—
Quando acabarmos de jantar eu o levarei câmara-forte onde estão os meus doentes.
Não quis mostrar-lhe os antes da refeição com receio de que a emoção lhe
cortasse o apetite.
—
Como? — exclamei atônito. — Então os loucos....
—
Estão lá em baixo, em lugar seguro, onde podem ser submetidos ao regímen de que
lhe falei...
Não
pude continuar. Pouco além, um homem muito vermelho, para contar que conhecera
um louco, que se julgava uma garrafa de Champanhe, meteu um dedo na boca e
retirou-o subitamente com tal habilidade que imitou perfeitamente o espocar de uma
rolha de vinho espumante; em seguida franzindo os lábios começou a imitar o
silvo do Champanhe, que transborda da garrafa.
—
Sr. Boulard! — disse severamente o diretor. — Ficar-lhe-ia muito obrigado se se
mantivesse com mais comedimento.
O
sr. Boulard calou-se imediatamente e ficou ainda mais vermelho, visivelmente
mortificado pelo vexame de ser assim chamado à ordem. Mas depois de refletir um
instante, resolveu protestar e, erguem dose com ar de grande dignidade começou...
—
Sr. diretor... Sr. diretor... Tenha paciência mas eu não admito...
Não
pude ouvir o resto da frase. Sua voz foi subitamente abafada por uma série de
gritos agudos, verdadeiros uivos, que vinham não sei de onde.
Confesso
que senti os nervos profundamente abalados por essas vociferações. Porém ainda
maior foi a impressão sobre os convivas do Dr. Maillard. Nunca tive ante meus
olhos uma coleção de fisionomias tão transtornadas pelo terror.
Todos
ficaram lívidos como mortos; encolheram-se em suas cadeiras e ficaram trêmulos
e gaguejantes de pavor como se esperassem o recomeçar dos tétricos clamores.
De
fato, eles não tardaram a recomeçar, mais fortes e mais próximos; depois uma
terceira e uma quarta vez, que foi a mais atenuada.
Quando
tudo passou, afinal, os convivas recobraram o domínio de si mesmos e
recomeçaram a tagarelar animadamente... sempre contando anedotas sobre loucos.
Arrisquei-me
então a perguntar ao sr. Maillard a causa do estranho alarido...
—
Coisa atoa — disse o diretor serenamente. — São os loucos, que, às vezes, dão
para gritar, todos juntos. Como geralmente isso acontece quando eles tentam
fugir, isso assusta um pouco as pessoas que aqui estão...
—
E... são muitos? — indaguei.
—
Não. Agora tenho aqui somente uns dez.
—
Mulheres em sua maioria, aposto.
—
Não, senhor... todos homens e latagões robustos, perigosos.
—
É curioso. Sempre ouvi dizer que as mulheres eram mais numerosas do que os
homens nos hospícios.
—
Geralmente, assim é; mas minha casa de saúde constitui uma exceção talvez única
Antigamente eu tinha aqui... ora, vejamos... quantos?... Uns vinte e sete
loucos entre os quais as mulheres eram dezoito. Depois a situação mudou... Ah!...
mudou por completo.
—
Por completo... por completo! gritaram todos os convivas com entusiasmo.
—
Calem-se! — gritou o sr. Maillard, vermelho
de cólera.
Toda
a assistência aquietou-se e durante um minuto, pelo menos, guardou o mais
absoluto silêncio.
Então
não me contive mais. Baixando a voz, cheguei-me para o sr. Maillard e perguntei:
—
E o senhor está certo de que entre as pessoas presentes não há também algumas
que...
—
...quê?... quê? repetiu o diretor, com ar de imenso espanto. — Que quer o senhor
dizer?...
—
Quero dizer que... não me engano... alguns desses senhores e senhoras estão talvez
um pouco... doentes.
—
Ora qual! exclamou o diretor, com um sorriso indulgente. — Que ideia! Conheço-os
todos há muito tempo. Têm talvez algumas excentricidades... mas afirmo-lhe que
são todos perfeitos de espírito. São meus amigos e meus auxiliares.
—
Todos? As senhoras também?
—
Pois claro! As mulheres são as melhores enfermeiras para loucos. Sabem como vinguem
aplicar o meu novo sistema.
—
Ah! sim... é verdade. O senhor prometeu-me explicar-me esse sistema, que é, ao
que parece, de uma grande severidade.
—
Nem tanto assim... Apenas exige reclusão absoluta... mas o tratamento,
propriamente a terapêutica, deve até ser agradável aos doentes...
—
Deveras?
—
Sim... Devo dizer-lhe que não foi eu quem inventou o método... apenas o
aperfeiçoei e completei. Por que descobri o seguinte... Exatamente quando os
loucos se mostram mais calmos e mais lúcidos é quando são mais perigosos É
preciso metê-los imediatamente em camisolas de força. Olhe, aqui mesmo e não há muito tempo produziu-se um estranho
acontecimento. O sistema da doçura, como o senhor diz, produziu um caso estranho
e sintomático. Os loucos andavam livremente pela casa e portavam-se com tranquilidade
exemplar; tão notável que qualquer pessoa de bom senso teria logo compreendido
que um plano diabólico se tramava entre eles. De repente, os guardas e
enfermeiros foram atacados de improviso, amarrados dos pés à cabeça, metidos na
câmara-forte e vigiados pelos loucos com a severidade, que não lhes tinha sido
aplicada.
—
Santo Deus! exclamei assombrado. — Um caso assim é absolutamente sem precedentes.
—
Mas ocorreu aqui — disse o diretor com o mesmo ar grave. — Tudo por culpa de um
imbecil, um louco, que imaginou haver inventado um método de direção melhor do
que todos até hoje conhecidos. Para experimentar esse método, arregimentou os
outros loucos...
—
E conseguiu dominar os guardas?
—
Por completo. Houve então uma troca geral dos papéis. Os guardas passaram a
ficar sob a guarda dos loucos.
—
Mas isso certamente não durou muito tempo... Os camponeses da vizinhança, os
fornecedores decerto, não tardaram a denunciar essa situação.
—
Qual! O chefe do movimento era mais esperto do que o senhor imagina. Desde esse
dia não deixou entrar aqui nenhum estranho, com exceção única de um rapaz. É
verdade... não sei mesmo por que deixou ele esse rapaz entrar aqui!...
—
Então isso durou muito tempo?
—
Muito. Um mês pelo menos. Durante esse tempo, os loucos divertiram-se à vontade;
comeram e beberam do melhor, vestiram-se como lhes deu na telha e o melhor foi
que...
Não
pôde prosseguir; sua voz foi abafada pelos gritos furiosos, que recomeçavam
ainda mais fortes do que há pouco e, desta vez, parecendo aproximar-se
rapidamente.
—
Céus! — exclamei assustado — É de se jurar que os loucos fugiram.
—
Também me parece disse o diretor, muito pálido.
De
fato, as vociferações ouviam-se agora do lado de fora e as portas e janelas
foram sacudidas como se várias pessoas singularmente fortes pretendessem penetrar
na sala...
Seguiu-se
uma indescritível confusão. Com grande surpresa para mim, o sr. Maillard
abandonou sua cadeira e meteu-se debaixo do aparador. Os demais convivas
corriam assustados ou mantinham-se petrificados pelo terror.
E
como ninguém pensava em resistir, as portas não tardaram a ceder aos impulsos colossais
a que estavam sendo submetidas. Vários homens seminus, com as vestes em
farrapos, mas robustos e resolutos penetravam na sala onde, rapidamente amarraram
todos os presentes.
Só
depois disso puderam explicar-me o que havia ocorrido.
O
sr. Maillard, contando-me a história de um louco que excitara os companheiros à
revolta, não fizera mais do que relatar as próprias proezas. Esse homem fora,
de fato, diretor daquele estabelecimento; mas enlouquecera por sua vez e passara
categoria de internado. Esse detalhe era ignorado pelo companheiro de viagem,
que trouxera até ali. Os guardas, surpreendidos pela revolta preparada com
grande discrição, estavam presos havia trinta dias, sujeitos a alimentação
irregular e impetuosas jorros de água, que os loucos lhes aplicavam através das
grades.
Felizmente
para mim, exatamente nesse dia, um dos guardas conseguira fugir e libertar os
demais companheiros.
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