O gato preto, de Edgar Allan Poe
Tradução de 1943, com adaptação ortográfica de Iba Mendes (2016)
Não pretendo
nem quero que se dê crédito à estranha, embora verídica, história que vou
contar. De fato, seria uma loucura pensar que me acreditariam, posto que meus
sentidos recusam seu próprio testemunho. No entanto, não estou louco, e
seguramente não sonho. Mas amanhã vou morrer e hoje quero descarregar minha
consciência. Por isso me proponho contar ao mundo, clara e sucintamente, sem
comentários de nenhuma espécie, uma série de simples acontecimentos domésticos
que por suas consequências me aterraram, martirizaram e aniquilaram. Apesar
disso, não procurarei elucidá-los, pois a mim me inspiraram terror, unicamente,
embora para outras pessoas eles pareçam ser apenas "extravagantes" e
não terríveis. Talvez surja uma inteligência mais clara que a minha e reconduza
minha fantasia a uma vulgaridade, algum espírito mais sereno, mas lógico e
muito menos excitável que o meu, que não veja nos fatos referidos por mim como
terror, mas simplesmente uma sucessão ordinária de causas e efeitos muitos
naturais.
Desde criança
chamei a atenção por minha docilidade e humanitários sentimentos e até era tão
esquisita a ternura de meu coração, que acabei por servir de brincadeira de
meus companheiros. Minha afeição e carinho pelos animais não tinham limites, e
meus pais me tinham permitido conservar muitas espécies favoritas; de modo que
passava o tempo com umas e outras, e nunca cria tão feliz como quando lhes dava
de comer e os acariciava. Esta particularidade de meu caráter se desenvolveu à
medida que ia crescendo e quando cheguei a ser homem foi a fonte principal de
minhas diversões. Não necessito explicar-lhes a natureza e intensidade dos
fatos que isso possa trazer aos que se acamaradam com um cachorro fiel e nobre.
No amor desinteressado de um animal, em sacrifício de si mesmo, há algo que vai
diretamente ao coração daquele que teve com frequência ocasiões de apreciar o
valor só por amor ao mal, foi o que me impulsionou a prosseguir, e, por último,
a consumar o suplício a que submeti o animal inofensivo. Certa manhã lhe pus um
nó corredio ao pescoço, com o maior sangue frio, e o prendi ao galho de uma
árvore. Meus olhos estavam cheios de lágrimas e meu coração de amargos
remorsos. Mas enforquei Plutão "porque" sabia que me estimara e
"porque" estava persuadido de que jamais me dera motivos de
aborrecimento. E enforquei-o "porque" ao fazer isso cometia um
pecado, um pecado mortal, que comprometia minha alma até pô-la fora da
misericórdia infinita de Deus Muito Misericordioso e Muito Temível.
Na noite
seguinte ao dia que cometi este ato cruel, acordei aos gritos de "Fogo!
Fogo!" As cortinas de meu leito estavam ardendo. O incêndio se havia
propagado por toda casa e com grande dificuldade pudemos escapar, minha esposa,
um criado e eu. A destruição foi completa. Toda minha fortuna se perdeu e desde
então entreguei-me ao mais espantoso desespero.
Não intento
aqui estabelecer uma relação de causa e efeito entre a atrocidade e o desastre,
porque me faço superior a semelhante debilidade. Mas relato uma série de fatos
e não quero omitir um só elo da cadeia. Ao dia seguinte do incêndio visitei as
ruínas. As paredes tinham caído, exceto um tabique interior, pouco grosso,
situado quase no centro da casa, e contra o qual se apoiava a cabeceira de
minha cama; essa parte resistira à ação do fogo. E atribuí o fato à
circunstância de ser a parede nova. Diante daquele tabique havia-se reunido uma
multidão considerável e algumas pessoas pareciam examinar certa parte com
minuciosa e viva atenção. As palavras: "que estranho, que singular!" e
outras semelhantes, excitaram minha curiosidade. Acerquei-me e vi esculpido na
parede, a fogo, a figura de um "gato" gigantesco: a imagem estava
representada com uma exatidão maravilhosa e o animal tinha uma corda ao redor
do pescoço.
De súbito, ante
aquela aparição, pois assim podia considerá-la, aumentaram meu assombro e meu
terror. Mas a reflexão veio enfim em meu auxílio. Recordei ter enforcado o gato
num jardim próximo à casa, jardim que foi invadido pela multidão ao ouvir os
gritos de alerta. Alguém com corte desatou o animal da árvore para jogá-lo a
meu quarto, por uma janela, sem dúvida com o objetivo de acordar-me; as outras
paredes comprimiram, ao cair, a vítima de minha crueldade na capa de gesso
recentemente aplicado, e a cal do tabique, combinada com as chamas e o amoníaco
do cadáver, produziu, com certeza, a imagem tal como se via.
Tranquilizado
assim no espírito, já que não de todo em minha consciência, quanto ao fato
surpreendente que acabo de expor, não deixou de produzir, no entanto, em meu
ânimo uma impressão profunda. Durante alguns meses não se apartou de minha
imaginação o fantasma do gato e agitava-se em minha alma algo que parecia ser
um remorso, mas que não o era. Cheguei a deplorar a perda do animal e a buscar
em meu redor, nas desprezíveis tabernas, outro favorito da mesma espécie que se
parecesse ao defunto.
Certa noite,
achando-me sentado e meio embriagado em uma imunda tasca, chamou-me a atenção,
de súbito, um objeto negro, que repousava em um dos imensos tonéis de genebra
ou de rum que constituíam quase todo o mobiliário da sala. E como fazia alguns
minutos que olhava naquela direção, surpreendeu-me não ter reparado antes no
citado objeto. Acerquei-me e o acariciei com a mão: era um gato preto, muito
grande, pelo menos tanto como Plutão e se parecia muito com ele, exceto que o
defunto não tinha um só pelo branco em todo o corpo, enquanto que este
apresentava uma mancha branca, embora de forma indecisa, que cobria quase toda
a região do peito.
Apenas eu lhe
toquei, ele se enrijeceu produzindo uma espécie de ronquido particular que nos
gatos indica a satisfação; esfregou-se contra minha mão e pareceu muito
contente com minhas carícias. Aquele era o animal que eu procurava e, portanto,
quis comprá-lo do dono; mas este me disse que ele não lhe pertencia nem nunca o
tinha visto em sua casa. Continuei acariciando o animal e quando me dispunha a
voltar para casa o gato pareceu disposto a seguir-me; permiti-lhe que me
acompanhasse e de vez em quando detinha-me para fazer-lhe uma carícia. Quando
chegamos em casa entrou como se fosse a sua e logo se acamaradou com minha
esposa.
E quanto a mim,
muito logo experimentei uma acentuada antipatia contra o animal, quer dizer, ao
contrário do que eu esperava. Não sei explicar direito, mas a evidente ternura
do gato me desgostava, produzindo-me quase fadiga. Pouco a pouco, este
sentimento de desgosto e aborrecimento se transformou em amargura e em ódio;
afastava-me sempre do animal, embora uma espécie de vergonha e recordação do
meu primeiro ato de crueldade me impedisse de maltratá-lo durante algumas
semanas. Mas gradual e insensivelmente cheguei a olhá-lo com indizível horror e
evitava silenciosamente sua odiosa presença, como se ele fosse uma peste.
O que mais
contribuiu, sem dúvida, para aumentar meu ódio contra o gato foi a constatação,
na manhã seguinte ao dia em que o levei para casa, que, assim como Plutão, lhe
faltava um olho. Só por isso minha mulher lhe teve mais carinho, pois, segundo
disse, possuía em alto grau essa ternura de sentimentos, característica em mim
em outra época, e fonte de meus recreios mais simples e puros.
Coisa rara! O
afeto do gato parecia ir aumentando à medida que minha aversão se fazia maior:
seguia meus passos com uma tenacidade que dificilmente imaginaria o leitor. Se
me sentava, colocava-se debaixo da cadeira, ou saltava sobre os joelhos,
ofertando-me suas carícias espantosas; e, se me levantava para andar,
introduzia-se entre minhas pernas, expondo-me a uma queda ou me cravava suas
longas e afiadas unhas na roupa, trepando até meu peito. Em tais instantes, e,
embora desejando matá-lo de um golpe, era impedido, em parte, pela lembrança de
meu primeiro crime, mais ainda, devo confessá-lo de uma vez, o verdadeiro
"terror" que o animal me inspirava.
E este pavor
não era produzido exatamente por um mal físico, embora me custaria muito
defini-lo de outro modo. Quase me envergonho de confessar que o terror e o
horror que o gato me causava tinham ido aumentando por uma das mais estranhas
quimeras que se pudesse conceber. Minha esposa me havia chamado mais de uma vez
a atenção sobre o caráter da mancha branca da qual já falei, e que constituía a
única diferença visível entre o novo gato e o que eu matara. O leitor
recordará, sem dúvida, que aquela mancha, embora grande, era primeiramente vaga
em sua forma: mas lentamente, por graus imperceptíveis, que minha razão se
esforçou longo tempo em considerar como imaginários, adquiriu por último
contornos muito precisos, chegando a ser a imagem de um objeto que não posso
nomear sem estremecimentos. Isso era o que me fazia olhar o gato com horror e
desgosto, e o que me impulsionara a livrar-me dele "se tivesse
coragem"; porque aquela mancha era a imagem de uma coisa repulsiva,
sinistra: a imagem de uma "forca". Oh, lúgubre e terrível máquina,
máquina de Horror e de Crime, de Agonia e de Morte!
E desde aquele
instante, considerei-me mais miserável que quanto pudesse sê-lo toda a
humanidade, e já não conhecia a paz nem o repouso de dia nem de noite. Durante
o dia o animal não me deixava um só momento, e de noite, quando despertava de
meus sonhos, agitados por indefinível angústia, sentia a cada momento em meu
rosto o hálito tíbio do gato e seu enorme peso. Era a encarnação de um pesadelo
que em minha impotência não podia sacudir, e que estava eternamente enraizado
em meu "coração".
Sob a pressão de semelhantes tormentos,
desapareceu o pouco da bondade que ainda restava em mim; e meus pensamentos
foram maus; os mais sombrios e piores que se pode imaginar. A tristeza de meu
caráter habitual degenerou em ódio a todas as coisas e a toda a humanidade, e
minha esposa, que não se queixava nunca, ai de mim!, sofria os efeitos de minha
crueldade e era a mais paciente vítima das frequentes e indomáveis erupções da
fúria louca que desde então me dominou.
Um dia acompanhou-me
por motivo de certa ocupação doméstica ao sótão da horrível casa onde nossa
pobreza me obrigava a morar. O gato me seguiu descendo depois de mim pela
escada, e como tropeçasse com ele, faltou-me pouco para cair. Isso me exasperou
até a loucura; levantei a acha de lenha que tinha nas mãos e esquecendo em
minha cólera o temor pueril que até então me detivera o braço dei no animal um
golpe que teria sido mortal se lhe alcançasse como queria. Minha esposa me
deteve o braço, mas esta intervenção excitou ainda mais minha raiva infernal:
desenvincilhei-me e bati com o pedaço de madeira em seu crânio. A pobre mulher
caiu morta instantaneamente, sem exalar nem proferir uma só queixa.
Consumado este
horrível crime, a primeira coisa que me ocorreu foi pensar na melhor maneira de
ocultar seu cadáver, ante a impossibilidade de poder tirá-lo de casa, nem de
noite nem de dia, sem expor-me a ser visto pelos vizinhos. Tive vários
projetos. Por um momento ocorreu-me a ideia de cortar o corpo em pedaços e
destruí-los por meio do fogo; depois resolvia abrir uma fossa no solo do mesmo
sótão. Logo me pareceu melhor atirá-lo ao poço do pátio. Achei mais
conveniente, no entanto, encerrá-lo em uma caixa à guisa de mercadoria na forma
acostumada e encarregar a um moço que o levasse a um ponto qualquer. Por
último, adotei um plano que me pareceu o melhor de todos: emparedar o cadáver,
eu mesmo, como o faziam com suas vítimas os monges da Idade Média.
O sótão possuía
boas condições para levar a cabo meu projeto: as paredes levantadas
grosseiramente, tinham sido cobertas recentemente em toda sua extensão com uma
camada de cimento que por causa da umidade do ambiente não se havia endurecido.
E numa delas via-se uma saliência formada por uma espécie de falsa chaminé.
Supus que seria mais fácil retirar os ladrilhos naquela parte, introduzir o
cadáver e tampá-lo, de modo que não pudesse infundir suspeitas, e não me
enganei no cálculo: com o auxílio de um instrumento de metal tirei prontamente
os ladrilhos e depois busquei areia e com todas as precauções imanáveis
preparei uma argamassa semelhante à outra e cobri escrupulosamente os ladrilhos
com uma camada dela. Quando terminei, vi com satisfação que a obra era
perfeita: a parede não apresentava o menor sinal da operação. Recolhi todos os restos
cuidadosamente e depois, olhando entorno, pensei: "Aqui, pelo menos, não
se perdeu inutilmente o meu trabalho". Em seguida procurei o gato, causa
daquela terrível desgraça, porque estava resolvido a matá-lo. Se o tivesse
encontrado naquele momento, nada o salvaria. Mas o astuto animal, assustado sem
dúvida por minha recente cólera, parecia ter sumido. Difícil me seria dar ideia
da profunda sensação de alívio que a ausência do ódio animal produziu em meu
coração. Não se deixou ver em toda a noite
e assim é que esta foi a primeira vez que passei tranquilo desde que o
gato estava em casa. Dormi profundamente. Sim, "dormi" com o peso do
crime sobre minha alma! Transcorreram o segundo e terceiro dias, sem que viesse
o meu verdugo e uma vez mais respirei como um homem livre. O monstro, possuído
sem dúvida de terror, havia abandonado a casa para sempre: já não o veria nunca
mais! Minha felicidade era completa.
Quanto ao meu
tenebroso crime, inquietava-me muito pouco. Certo que se fizeram diligência. E
embora fosse dada ordem para praticar aquela investigação, naturalmente não se
pôde descobrir nada. Assim é que considerei segura minha felicidade.
Quatro dias
depois do assassinato, um pelotão de agentes de polícia se apresentou de
improviso na casa para proceder a um detido exame de todas suas dependências.
Mas confiado no impenetrável do meu esconderijo, não experimentei a menor
inquietude. Os oficiais me obrigaram a acompanhar em suas pesquisas e não
deixaram nenhum sítio por revistar, descendo por fim pela terceira ou quarta
vez ao sótão. Nem um só dos meus músculos me atraiçoou. Meu coração batia
tranquilamente e, como um homem que confia em sua inocência, percorri o sótão
de um lado a outro. Com os braços cruzados sobre os peito andei solto, sem
qualquer sentimento de culpa e com a
maior indiferença. Satisfeita de todo a polícia dispunha-se a retirar e foi tão
grande a alegria de meu coração que não pude resistir ao vivo desejo de dizer
ao menos uma palavra, embora uma só, à maneira de triunfo, para convencer
àqueles homens de minha inocência.
— Senhores — disse por fim, quando subiam a
escada, felicito-me de ter desfeito suas suspeitas e desejo a todos completa
saúde, assim como um pouco mais de cortesia. E embora isso não venha em conta,
cavalheiros... eis aqui uma casa bem construída (em meu insaciável desejo de
dizer alguma coisa frívola, apenas sabia o que falava); posso assegurar-lhes
que é uma casa admiravelmente construída. Essas paredes são da mais sólida
construção.
E ao dizer
isso, permiti-me uma bravata frenética, bati com um bastão precisamente nos
ladrilhos que ocultavam o cadáver da esposa de meu coração.
Ai! Deus me
proteja e me livre ao menos das garras do demônio! Apenas sumiu o som da
pancada, uma voz respondeu do fundo da tumba; era uma queixa entrecortada ao
princípio, como um soluço de uma criança; mas que se converteu ao fim em um
grito prolongado, sonoro e contínuo; completamente anormal e inumano, um
alarido que expressava ao mesmo tempo o horror e o triunfo, e que só podia vir
do inferno, som espantoso que devia ser produzido pela garganta dos condenados,
em meio de seus tormentos e pelos demônios.
Loucura fora
tentar descrever meus pensamentos. Pareceu-me desfalecer e vacilei, apoiando-me
na parede oposta. Por um momento, os soldados permaneceram nas escadas imóveis,
mudos de terror. Mas um instante depois, dez ou doze braços robustos golpearam
vitoriosamente o muro, que caiu todo inteiro. O cadáver, já muito desfigurado e
cheio de sangue coagulado, se mantinha rígido; sobre sua cabeça, com sua boca
dilatada e seu único olho lançando fogo, vi o hediondo gato, cuja astúcia me
induzira ao crime, e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia
emparedado o monstro na tumba!
A Noite, 19 de janeiro de 1943.
Fantástico
ResponderExcluirVi que essas ilustrações são de Iba Mendes mas de quem é a tradução ?
ResponderExcluirCaro Alef,
ExcluirNão foi identificado o nome do tradutor, que no antigo periódico foi omitido.