9/16/2016

O coração denunciador (Conto), de Edgar Allan Poe



O coração denunciador, de Edgar Allan Poe

Tradução de 1917, com adaptação ortográfica de Iba Mendes (2016)


Sim!... nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Sempre o tenho sido e ainda o sou! Mas, por que teimais dizer que estou louco? O sofrimento aguçou o meu sistema nervoso, mas não o suprimiu, nem embotou. O Ouvido, principalmente, e o tinha sobremodo exercitado. Ouvia tudo, tudo o que se pode ouvir no céu como na terra; ouvi muitas coisas que vinham do inferno. Então, como poder a eu estar louco? Ouvi! E observai de que maneira lógica e ponderada vou narrar a história do princípio ao fim.
Não saberia dizer-vos como a ideia penetrou, a princípio, no meu cérebro; mas, desde que foi concebida, não mais deixou de importunar-me dia e noite. Motivo não havia. A paixão absolutamente não estava em jogo. Eu o estimava àquele velho! Nunca me fizera nenhum mal. Nunca me ofendera. O seu dinheiro? Eu nunca o desejara. Creio que era um dos seus olhos. Sim, era isto! Um dos seus olhos era igual ao do abutre, um olho duma cor azul-claro. Toda vez que aquele olho se fixava mim, o meu sangue se congelava. E eis que, gradativamente, sim, gradativamente, entrou no meu espírito a ideia de tirar-lhe a vida àquele velho livrando-me, assim, para sempre, daquele olho.
Agora, eis a questão. Pensais que estou louco. Mas os loucos não sabem nada! Ah! era preciso ver-me, a mim era preciso ver como fui prudente no correr daquela questão... com que circunspecção, —  com que previdência, — com que dissimulação cheguei à execução daquela ideia. Com o pobre velho eu nunca me mostrara tão afetuoso como naquela semana anterior ao assassinato. E todas as noites, quando batia meia-noite, eu virava o trinco da sua porta e abria, — oh! com toda a suavidade! E então, quando a abertura era suficiente para deixar passar a minha cabeça, eu fazia penetrar a minha lanterna, e depois metia a cabeça no quarto. Oh! teríeis rido, ao ver com que astúcia eu introduzia a cabeça, para não interromper o sono do velho. Levava às vezes, uma hora, nesse trabalho! Ah! como poderia um louco ser tão precavido? E então, quando a minha cabeça estava bem no interior do quarto, eu abria a lanterna, — com precaução, oh! com tanta precaução, tanta precaução, porque as dobradiças rangiam, — eu a entreabria, só o bastante para dar passagem a um fino raio de luz, que projetava no olho de abutre. E isto, eu recomecei durante sete longas noites, — e sempre à meia-noite exatamente. Mas encontrava o olho sempre fechado; e não poda alcançar os meus fins, pois o que me irritava, não era o -velho, mas o seu horrível olho. E todas as manhãs, quando chegava o dia eu penetrava resolutamente no seu quarto, e lhe falava corajosamente, chamando-o pelo seu nome, num tom cordial, e indagando como passara a noite. De modo que, como logo se vê, seria preciso que o velho fosse dotado de uma estranha perspicácia para suspeitar que todas as noites, justamente à meia-noite, eu o via dormir.
Na oitava noite, usei ainda de maior cuidado para abrir a porta. O ponteiro maior dum relógio caminha mais depressa do que a minha mão, naquele momento. Nunca como naquela noite, eu me sentira tão senhor de todas as minhas faculdades, de toda a minha sagacidade. A custo dominava os meus sentimentos de satisfação. Pensar que eu estava ali, que abria aquela porta, a pouco e pouco, e que ele nem sequer podia supor os atos ou os pensamentos que eu dissimulava. Lembrando-me disso, não pude reter em mim uma leve risada, e ele provavelmente me ouviu, porque se moveu, de repente, no leito, como se estremecesse. Então pensais certamente que eu fugi, — mas, de modo algum. As trevas eram tão densas que faziam o quarto negro como carvão, pois os postigos estavam solidamente cerrados de medo dos ladrões. Certo de que ele não podia distinguir o lento mover da porta, continuei a empurrá-la, pausadamente, pausadamente. 
Já estava com a cabeça dentro do quarto, e ia abrir a lanterna, quando o meu dedo resvalou sobre o fecho que era de lata, e o velho deu um salto no leito, gritando: — Quem está aí?
Fiquei numa imobilidade absoluta, e não disse palavra. Durante uma hora, os meus músculos não fizeram o menor movimento, e passou-se todo esse tempo sem que eu ouvisse o velho tornar a deitar-se. Permanecia sentado no leito, e escutava, escutava...
Finalmente, ouvi uma leve lamentação, e compreendi que era uma lamentação de mortal espanto. Não era uma queixa de sofrimento ou de aflição, — Oh! não! era a nota baixa e velada que se eleva do fundo duma alma oprimida pela angústia.
Depois de uma interminável espera, dando prova duma paciência real, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi entreabrir um pouco a lanterna — mas muito pouco, oh! muito pouco! Entreabri-a, furtivamente, até que, afinal, um único e lívido raio de luz, como um fio de aranha, caísse do orifício sobre o olho de abutre.
Estava aberto o olho, — completamente, totalmente aberto; — aquela visão bastou para deixar-me furioso. Vi-o, de um modo perfeitamente distinto, — todo azul, de um azul apagado, e senti congelar-se a medula dos meus ossos. Mas eu não podia ver o resto tio semblante do velho, ou da sua pessoa. Porque, por uma espécie de instinto eu dirigira o raio de luz justamente sobre lugar maldito. E naquele momento, — (já não vos disse que onde vedes loucura, não há na realidade senão uma hiperestesia dos meus sentidos?) —  naquele momento, digo, eis que um ruído vem bater-me ao ouvido, um ruído surdo, amortecido, rápido, como o de um relógio envolto em veludo. Este som, eu o conhecia. Era o coração do velho que batia. Como o rumor dos tambores estimula a coragem do soldado, aquele som não fez senão aumentar o meu furor.
Mas, contive-me ainda, e continuei imóvel. Apenas respirava. Com que obstinação, eu me esforçava por manter o raio da lanterna sobre o olho! E, durante este empo, o coração acelerava a sua alvorada infernal. Tornava-se cada vez mais rápido, cada vez mais distinto... Compreendes bem? Já vos declarei que era nervoso: na realidade, eu o sou. E eis que, naquela hora fúnebre da noite, no meio do formidável silêncio daquela casa velha, era tão estranho aquele som que me encheu de um terror incoercível. Entretanto, por alguns minutos ainda, contive-me, e não fiz o menor movimento. Mas tic-tac acentuava-se sempre, sempre. Pensei que aquele coração ia estalar. E, então, uma nova angústia se apoderou de mim: se algum vizinho ouvisse aquele ruído! A hora do velho soara.
Com um urro formidável, abri de todo a lanterna, e saltei no quarto. Ele não deu senão um grito, um só. Num instante, atire-o ao chão, e esmaguei-o, lançando sobre ele todo o peso do leito. Então, tive um sorriso de bom humor, vendo a obra tão bem começada. Mas por alguns momentos, o coração continuou a bater, com um som abafado. Aquilo já não me dava cuidado: era impossível que o ouvissem através da parede. Afinal, parou.
Coloquei o leito como estava, e considerei o cadáver. Pus a mão do lado dei coração. Já não batia. O velho estava mesmo morto. O seu olho de abutre já não atormentaria mais, afinal!
Se teimais em considerar-me louco, essa ideia se dissipará quando eu vos tiver descrito as prudentes disposições que tomei para fazer desaparecer o cadáver. A noite escoava-se, e tive de trabalhar depressa, sem ruído. Antes de mais nada, desmembrei o cadáver. Cortei a cabeça, os braços, as pernas. Retirei logo três tábuas do soalho, e meti-o o todo para baixo dele. Depois, coloquei de novo as tábuas no seu lugar, tão metodicamente que nenhum olhar humano, — nem mesmo o seu, nada descobrira de anormal. Não tinha nada a lavar, nem a menor mancha de sangue. Tomara muito bem as minhas precauções. Quando aquela tarefa ficou terminada, eram quatro horas, e estava tão escuro como à meia-noite.
Exatamente quando o relógio dava essa hora, bateram à porta da rua. Desci para abrir, o coração leve, pois que poderia temer para o futuro? Entraram três homens que se apresentaram com toda a cortesia, como oficiais da polícia. Um vizinho ouvira um grito durante a noite. E havia-se logo suspeitado do de algum crime; avisado o posto policial, ali estavam eles para inquérito no   próprio local.
Sorri, pois, ainda uma vez que podia temer? Cumprimentei delicadamente aqueles senhores. O grito, declarei eu é que o dera, sonhando. Quanto ao velho, continuei, estava no campo. Guiei os meus visitantes por todos os recantos da casa. Solicitei-lhes que investigassem  cuidadosamente. Levei-os, por fim, ao meu próprio quarto. Mostrei-lhes o dinheiro do velho, no qual ninguém tocara. No calor da minha confiança, convidei-os a repousar, oferecendo-lhes cadeiras. E eu mesmo com a extravagante temeridade que me inspirava um êxito tão completo, coloquei a minha cadeira sobre o próprio lugar em que jazia o cadáver da minha vítima.
Os agentes estavam satisfeitos. Os meus modos haviam causado excelente efeito. Sentia-me perfeitamente à vontade. Entramos a conversar sobre coisas familiares. Mas não tardei em sentir que empalidecia, e desejei que eles se retirassem. Sentia dor de cabeça e me parecia ouvir um tilintar longínquo. Mas os agentes continuavam sentados, a conversar. O tilintar acentuava-se. Falei com um ar despreocupado, para livrar-me daquela obsessão. Mas aquele som persistia, e dominava todos os meus esforços, de tal forma que acabei por convencer-me que o ruído não estava no meu ouvido.
Estou certo que fiquei então, extremamente pálido. Tornei-me ainda mais loquaz, e elevei a voz. Mas o murmúrio aumentava — e que faria eu? Era um ruído surdo, amortecido, rápido, como o  de um relógio envolto em veludo.
Eu estava ofegante — e, contudo, os agentes nada pareciam ouvir. Falei com mais volubilidade e veemência. Mas o ruído crescia sempre. Levantei-me, discuti sobre ninharias, num tom de voz muito elevado, gesticulando violentamente, mas o ruído crescia sempre. Por que não queriam sair? Percorria o quarto em todos os sentidos a passos largos e pesados, fingindo ficar exasperado com a nossa discussão. Mas o ruído crescia sempre. Oh! meu Deus, que fazer? Furioso, delirante, blasfemando agarrava a cadeira, em que antes me sentara, e batia com ela sobre o soalho.
Mas o ruído não deixava de aumentar, o ruído crescia sempre. Tornava-se mais forte, mais forte, mais forte.
E aqueles homens continuavam a conversar, a gracejar, a rir! Como não haviam de ouvir? Deus todo poderoso! Mas não, não, ouviam tudo, suspeitavam de tudo, sabiam, e zombavam do meu terror.
Tal foi o meu pensamento, e é anda o que penso. Mas, qualquer outra coisa era preferível àquela agonia, àquela zombaria! Eu já não podia suportar por mais tempo a hipocrisia daqueles sorrisos. Senti que era preciso gritar ou morrer e o ruído, ainda mais forte! mais forte! mais forte!
"Celerados!" exclamei, "não vale mais a pena dissimular; reconheço-o, fui eu que cometi o crime! — levantai essas tábuas aqui, aqui, é aqui que bate o seu abominável coração!"

Revista da Semana, 03 de março de 1917.

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