O Natal do velho Scrooge, de Charles Dickens
Tradução publicada originalmente na revista "Eu Sei Tudo", em sua edição de dezembro de 1924. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Tradução publicada originalmente na revista "Eu Sei Tudo", em sua edição de dezembro de 1924. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
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Era uma vez um velho de avareza sórdida e coração tão seco
como uma pedra de isqueiro; tão conhecido como avaro que ninguém se atreveria
a lhe pedir nenhuma informação. Scrooge tinha tido como sócio, durante longos anos,
um homem chamado Marley. Marley morrera havia já sete anos, mas a fachada da
casa continuava a apresentar a firma Scrooge & Marley, para evitar a despesa
de uma fachada nova. Ali Scrooge vivia sozinho, fugindo de todo o mundo, mas
completamente feliz em sua solidão.
Tinha um empregado, um pobre coitado,
que se chamava Bob Cratchit, era casado e pai de quatro filhos. Scrooge lhe
pagava quinze xelins por semana, justamente o indispensável para que não morresse de fome, com toda a família. Cratchit trabalhava numa pequena sala
triste e sombria, que mais parecia uma cisterna do que um escritório. Nunca
tinha um dia de folga, salvo o Natal, e apenas aproximava esse dia o velho Scrooge
já ficava doente de furor.
Seu sobrinho Fred tinha gênio totalmente diferente do
outro. Era um rapaz amável, sempre de bom humor e vinha todos os anos
apresentar seus cumprimentos de boas festas ao tio, embora só recebesse em troca
maus modos e palavras más.
Esta história começa justamente na véspera de
Natal e o bom Fred entrava subitamente no escritório de seu Tio, que, logo a
suas primeiras palavras, exclamou, irritado:
— Idiota. Fala em paz e alegre Natal. Como pode você ser
alegre, pobre como é?
— E o senhor, como pode ser triste, rico como é?
— Bobo!
— É possível! Mas sabe de uma coisa? Eu tenho pena do senhor.
— Atrevido!
— Sim. Porque, mesmo sem vintém, sou muito feliz. E sabe de
outra coisa? O que lhe desejo é que, com ou sem dinheiro, o senhor seja um dia,
ao menos, feliz como eu.
O rapaz retirou-se e o velho ficou
resmungando contra tudo e contra todos, até que chegou a hora de fechar o escritório.
Bob Cratchit saiu e o velho lhe recomendou que viesse no outro dia mais cedo, a
fim de compensar a falta de trabalho no dia de Natal.
Após um jantar frugal e solitário, o avarento recolheu-se
em seu apartamento, que fora outrora o de seu sócio.
No momento em que punha a chave
na fechadura, olhou
para a maçaneta de metal e viu nela... o rosto de Marley. Aquilo o
impressionou desagradavelmente, porém ele deu de ombros, abriu a porta, subiu a
escada, percorreu todos os aposentos, espiou embaixo da cama, da mesa, do sofá... Nada encontrou
de suspeito.
Acendeu um fogo modesto no fogão de inverno, aqueceu um pouco
de chá e, tendo fechado cuidadosamente a porta, despiu-se, sentou-se diante do fogão... e viu em
uma das placas de ladrilho o rosto de Marley...
— Bobagem... — murmurou Scrooge, que meteu raivosamente
as mãos nos bolsos da robe de chambre.
Mas nesse momento uma força misteriosa obrigou-o a
olhar para um lado e ele viu o fantasma de Marley passar através a porta
fechada, arrastando uma pesada corrente presa a sua cintura. Scrooge fitou-o
assombrado e Marley lhe disse:
— Está vendo esta corrente? É feita de cofres, cadeados, livros-caixa
e bolsas. Fui eu quem a forjou durante toda a minha vida e você há de arrastar uma ainda
maior do que esta, porque eu parei em meu trabalho, há sete anos e você continua.
Ouça bem. Esta noite ainda você há de ser visitado por três espíritos; um virá quando o
relógio bater uma hora, os outros...
E o espectro desapareceu
novamente, atravessando a porta fechada.
Ansioso por sair dali, não se atrevendo a tocar a
porta, o velho abriu a janela. O céu imenso e estrelado pareceu-lhe cheio de
fantasmas, que arrastavam enormes correntes e todos gemiam dolorosamente.
Scrooge tentou dizer... "Bobagens",
mas não se atreveu. Fechou
a janela, deitou-se e adormeceu quase imediatamente.
Quando despertou, era ainda
noite escura e, como não
tinha noção da hora, ficou quieto. Mas quase imediatamente ouviu bater uma pancada
no sino da igreja próxima. No mesmo instante, o cortinado de seu leito se
abrir e ele viu o primeiro espírito.
Era uma estranha figura, que
parecia a de uma criança
e, ao mesmo tempo, a de um velho que tivesse diminuído de tamanho. A cabeleira,
que caía sobre seus ombros, era branca como a de um velho, mas seu rosto não
tinha uma ruga e era rosado. Seus braços eram longos e musculosos e suas
mãos denotavam vigor pouco comum. Mas suas pernas e pés eram pequenos e delicados. Vinha vestido com uma
túnica branca, presa por um cinto luminoso. Trazia nas mãos flores, embora
se estivesse em pleno inverno; porém o mais espantoso nele era um jato de luz
que irrompia de sua cabeça.
Talvez por isso trazia sob um dos
braços um enorme
apagador.
— Eu sou — disse essa estranha figura — o espírito do Natal antigo.
E antes que o velho tivesse tempo
para murmurar uma palavra, arrastou-o a quilômetros de distância e muitos anos para trás. Assim, o velho
Scrooge viu diante
de seus olhos a casa onde tinha passado sua infância, e muitas outras cenas de felicidade,
que ele havia esquecido, tornou a ver com irreprimível enlevo. Assistiu
a várias festas de Natal dos anos desse tempo. Por fim, ele
e o espírito se detiveram diante da porta de uma loja, a loja em que Scrooge fora
aprendiz. E ao ver ali um senhor idoso, sentado por trás de uma alta mesa de escrituração,
o avarento exclamou:
— Céus! É o bom sr. Fezziwig.
Entretanto, Fezziwig, tendo olhado para o relógio e verificado que eram
sete horas, esfregou as mãos,
sorriu e com voz sonora, magnífica, chamou:
— Olá! Ebenézer! Dick!
A esse apelo dois rapazolas acudiram,
alegremente, de uma sala vizinha e Scrooge, maravilhado, reconheceu nesses dois
rapazes ele mesmo, tal qual era aos dezessete anos e seu companheiro de
trabalho nesse tempo, Dick
Wiltin, que era seu amigo.
— Rapazes! — exclamou Fezziwig. — Não se trabalha mais hoje.
E véspera de Natal. Fechem as vitrines e as portas.
Os dois jovens não esperaram segunda ordem.
— Muito bem — disse o patrão. — Agora vamos abrir espaço
aqui.
E ele próprio ajudou os rapazes a afastarem o balcão e as mesas, a amontoar as
mercadorias num canto. Em um instante a enorme loja ficou vazia e limpa; o chão
foi varrido.
Então chegou um violinista, instalou-se com seu livro de músicas
no estrado do guarda-livros e começou a tocar. Como se só esperasse esse sinal,
madame Fezziwig entrou, com seu bom e constante sorriso. Com ela vinham suas três
filhas adolescentes, suas quatro sobrinhas e seus três sobrinhos. Em seguida, entraram
todos os empregados, porque o sr. Fezziwig os convidara sem exceção, do mais
graduado ao mais humilde.
E começaram todos a dançar alegremente.
Nesse momento, o espírito passou
a mão sobre os olhos de
Scrooge e ele adormeceu de novo, no momento em que, recordando-se de seu
primeiro patrão, ele prometia
a si mesmo não mais maltratar o pobre Bob Cratchit.
Quando voltou a despertar, era ainda
escuro lá fora, mas seu
quarto estava cheio de uma misteriosa luz avermelhada. O relógio bateu duas
horas. Nenhum fantasma apareceu; mas, compreendendo que para alguma coisa devia
ele ter despertado, o velho, não podendo conter a curiosidade, ergueu-se do
leito e dirigiu-se para a porta. Logo uma voz, que ele não conhecia, disse:
— Pode entrar.
Scrooge abriu a porta e viu, diante
de si, como sempre, sua sala de visitas. Mas como estava mudada! O teto e as
paredes estavam cobertos de folhagem; no meio do soalho havia um verdadeiro
monte de iguarias apetitosas: —
leitões assados, perus recheados, linguiças, pastéis, pudins, frutas... Sobre
essa montanha de delícias estava sentado um gigante, que, ao ver o dono da casa,
repetiu:
— Pode entrar. Eu sou o espírito do Natal de hoje.
E estendeu-lhe a mão. Apenas tocou essa mão,
enorme, Scrooge sentiu-se transportado pela janela e pelas ruas, em direção à casa
de Bob Cratchit, casa que, embora muito humilde, estava em festa. O modesto
empregado estava sentado à mesa, com toda a sua família — sua esposa e seus
filhos Peter, Belinda, Marta e o pequeno Tiny Tïm, que era aleijado de uma
perna e parecia de saúde muito
frágil. Por isso, naturalmente, é que todos ali, até seus próprios irmãos,
também ainda crianças, o tratavam com tanto carinho.
Mas, nessa noite, até Tiny Tim estava alegre. Seu rostinho magro
e pálido estava tão sorridente como o dos outros, diante da mesa da ceia,
onde havia um pato assado, frutas, doces caseiros, mas com bom aspecto.
Quando madame Cratchit foi à cozinha
e trouxe de lá um pudim enfeitado, então a alegria atingiu o auge e todos se
abraçaram, dando graças a Deus, que lhes permitira ter um Natal feliz.
O velho Scrooge estava pasmado; mas
já o espírito o levava pelos
ares, para que visse outros lares, igualmente pobres ou mais pobres ainda...
Numa aldeia de trabalhadores mineiros, num farol solitário, isolado no meio do
mar em fúria e até numa prisão. Em toda a parte, a noite do Natal era festejada
alegremente e parecia inspirar a cada coração um pouco de amor pelo próximo,
de piedade pelos menos felizes.
Por último, ele viu o Natal em casa de seu
sobrinho Fred e ouviu pronunciar seu próprio nome, não com ódio ou desprezo,
mas apenas com lástima, lamentando que ele não estivesse também ali, para se divertirem
um pouco, em vez de ficar sozinho num canto, como um bicho.
De súbito, antes que o velho Scrooge pudesse compreender o que
se passava, o sorridente gigante desapareceu e foi substituído por uma nova
figura, o terceiro e último dos visitantes anunciados pelo fantasma de Marley.
Era um vulto muito alto e de forma
um pouco vaga, como era natural em quem representa o futuro, sempre incerto. Não levou o velho Scrooge a lugar
algum; limitou-se a estender a mão direita para diante e o avarento teve desde
logo diante de si um espetáculo tão reconfortante, que, enlevado, radiante, não
pôde conter um movimento de entusiasmo e despertou.
Porém, mesmo acordado, ele teve a
impressão de ouvir
ainda as últimas palavras do espírito:
— O futuro será o que quiseres. Tu é que tens que fazê-lo.
Foi só isso e nada mais; mas foi o bastante, porque o velho Scrooge
compreendera. Das múltiplas visões daquela noite maravilhosa, ele guardara
mais intensos os aspectos de emoção: sua própria alegria na casa do primeiro patrão,
a alegria do bom sr. Fezziwig, vendo todos contentes em torno de si e principalmente
o sorriso, que iluminava rostinho magro e pálido de Tiny Tim.
Adormeceu ainda uma vez, preocupado, inquieto... Aquele garoto... Se não fosse
tratado... muito bem tratado, não poderia
durar muito tempo. Tão sem cor, com as faces tão cavadas...
Quando afinal o sol entrou pela janela,
ele recobrou a consciência
e teve logo um ímpeto de se levantar e agir. Era dia feriado, dia de Natal, mas
por isso mesmo tinha muito que fazer. Começou por ir à loja de brinquedos mais
próxima de sua residência e comprar presentes, que distribuiu por toda a
criançada da vizinhança, um pouco envergonhado pelo assombro que a todos isso
causava. Depois, dirigiu-se à casa de seu sobrinho, levando uma caixa de
charutos para Fred e flores pura sua esposa.
O jovem casal disfarçou mal a surpresa, mas, em
pouco, passou a demonstrar satisfação tão sincera que o velho, enternecido,
disse:
— Refleti, Fred e cheguei à conclusão de que você é que tem
razão. Nós não estamos neste mundo só para trabalhar... Eu não tenho mais família;
vocês são meus únicos parentes. Se não os incomodo, passo o Natal aqui....
— Incomodar? Quem disse tal?
Fred e sua esposa pareciam mais
contentes do que ele, por vê-lo ali, sorridente... E, para dissipar a timidez,
que ainda o punha um pouco contrafeito, cercaram-no de carinho, como se nunca
tivesse havido desacordo entre eles, como se de fosse um doente e se tivesse
curado.
E o velho Scrooge passou ali o dia mais feliz de sua vida,
fazendo planos para um futuro, como vira no sonho. Aumentaria o ordenado de Bob
Cratchit, dar-lhe-ia umas férias para que ele pudesse levar Tiny Tïm para uma casa à beira mar
e se tratasse bem; ele mesmo iria passar uns dias lá... Sim, por que não?
Afinal, ele já
era bastante rico, para descansar... Não quereria Fred substituí-lo? EIe
lhe cederia a casa mediante um contrato de sociedade... e viria de vez em
quando ver como iam as coisas, só para não perder o costume... para não ser de
todo inútil.
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