O retrato oval (Conto), de Edgar Allan Poe
Tradução anônima de 1930, com adaptação ortográfica de Iba Mendes (2016).
O castelo cuja porta de entrada meu criado ousara forçar, para que eu não passasse a noite ao relento, no estado lastimável em que me encontrava, ferido, era um desses edifícios de uma imponência cheia de tristeza, que durante longos séculos se erigiam entre os montes Apeninos, tanto na realidade quanto na fantasia de mistress Radcliffe.
Segundo
toda a aparência, ele fora abandonado por seus habitantes, havia muito tempo.
Instalamo-nos
em uma sala pequena e das menos suntuosamente guarnecidas. Ficava em uma torre
bastante afastada do centro do edifício e mesmo assim malgrado seu estado de
abandono e aspecto vetusto, sua decoração era rica. As paredes estavam cobertas
com tapetarias e panóplias várias, além de extraordinário número de quadros
modernos, na verdade cheios de vida, em molduras luxuosas com arabescos
dourados. Esses quadros — suspensos não somente nos pontos das paredes mais
espaçosos e mais cheios de luz, mas também nos numerosos recantos formados pela
singular arquitetura do castelo — esses quadros — repito, por efeito, sem dúvida,
do estado de quase delírio em que eu me encontrava, excitaram em mim uma espécie
de fascinação. Como já fosse noite, dei ordem a Pedro para fechar as pesadas
janelas do quarto, acender todos os braços de um enorme candelabro, colocado
junto de minha cabeceira e afastar largamente as cortinas de veludo negro com
franjas, que envolviam o leito. Essas disposições tinham por fim permitir-me,
caso não conseguisse dormir, ao menos examinar os quadros detalhadamente com o
auxílio de um opúsculo, encontrado sobre o travesseiro e cujo assunto era a
crítica e explicação desses quadros.
Fiquei,
por aluam tempo lendo, alheio a tudo o mais. Piedosamente erguia os olhos do livro
e contemplava o quadro, cuja explicação já lera.
Como o
candelabro não estivesse colocado a meu gosto, estendi a mão com cuidado para não
perturbar o sono de meu criado e coloquei-o de forma tal que ele lançava a luz
mais diretamente sobre o livro.
Porem
esse meu gesto teve um efeito, que eu estava longe de prever. A luz das velas —
pois eram muitas — caía, agora, sobre um ângulo do quarto até então mergulhado
em espessas trevas, devido à cabeceira cio leito, que era muito alta.
Um
quadro, que eu ainda não vira, apareceu-me então inteiramente.
Era o
retrato de uma adolescente, quase uma mulher. Envolvi todo o quadro em um rápido
olhar e, quase em seguida, fechei os olhos.
Por que
motivo? Não o compreendi imediatamente. Continuando com as pálpebras cerradas, perguntava
a mim mesmo por que as fechara. Fora um movimento impulsivo; a fim de ter tempo
para refletir, assegurar-me de que não era íntima de uma ilusão visual... E também
para acalmar minha imaginação e prepará-la para um exame mais detalhado e eficaz.
Ao fim de
poucos instantes, fitei novamente o retrato.
Não podia
mais duvidar do testemunho de meus olhos, porque o primeiro lampejo das velas
sobre essa tela tivera por efeito dissipar a estupefação sonhadora em que meus
sentidos estavam mergulhados e, de um só golpe, chamara-me à vida normal.
O
retrato, como já disse, era o de uma adolescente. Viam-se, apenas, a cabeça e
os ombros, no estilo de Sully. Os braços e os seios e, mesmo um pouco da
luminosa cabeleira desapareciam insensivelmente na sombra vaga e também
profunda, que constituía o fendo da tela. A moldura era oval, suntuosamente dourada e filigranada,
à maneira mourisca. Como obra de arte, não
se podia sonhar coisa mais admirável. Mas não
eram, talvez, nem suas qualidades de execução
nem imortal a beleza da retratada, que haviam determinado em mim uma emoção tão
forte e repentina.
Podia,
menos ainda, supor que minha imaginação, sobressaltada em minha quase sonolência,
tomara aquela fisionomia pela de uma criatura viva. Notei logo que as particularidades
do desenho, o aspecto do quadro, não deixariam de me afastar imediatamente de
semelhante ideia, seriam mesmo suficientes para me impedir admiti-la, mesmo
momentânea.
Refletindo
intensamente sobre esses diversos pontos, fiquei talvez uma hora, sentado no
leito, com o olhar preso a esse retrato. Acabei por penetrar o verdadeiro
segredo do efeito que ele produzira sobre mim e deixei-me cair, lentamente,
sobre o travesseiro. Descobrira que a magia desse quadro consistia na expressão
da vida, absolutamente idêntica à própria vida.
Primeiramente
eu estremecera e, depois, ficara confuso, dominado, petrificado. Presa de angústia
profunda e respeitosa, voltei a colocar o candelabro em seu lagar primitivo.
Tendo, assim, dissimulado a meus olhos o objeto de minha viva agitação, apanhei
febrilmente o livro onde se falava nesse quadro e seu histórico. Folheei-o até
o número que correspondia ao retrato oval e li esse estranho e misterioso comentário.
"—
Era uma moça de rara beleza e caráter tão amável, quão apurado. Sua má hora foi aquela em que conheceu, amou
e desposou o pintor; ele, rude e apaixonado, trabalhador e já possuindo uma
esposa: sua Arte. Ela, de rara beleza e um caráter tão amável quão esmerado, toda
luz e sorriso, alegre como um pássaro. Para tudo tinha tesouros de amor,
detestando apenas a arte, sua rival. Só temia as palhetas e os pincéis, todos
esses instrumentos importunos, que afastaram dela o pensamento do amado.
Assim,
foi uma terrível coisa para ela, quando o pintor lhe exprimiu o desejo de fazer
seu retrato. Porém era humilde, submissa e durante várias semanas manteve-se
sentada, muito quieta, na sombria e alta sala da torre, onde a luz só filtrava
do alto, sobre a pálida tela. Porém ele, pintor acima de tudo, punha toda sua
glória em seu trabalho, que prosseguia de hora em hora, de dia em dia. E era um
homem apaixonado, genioso, taciturno e que se perdia, muitas vezes, em seus
sonhos.
De tal
forma que não notou, ou não quis notar a ação maléfica da luz, que caía do
alto, arruinando a saúde e o espírito de sua esposa; todos as viam definhar,
todos, menos ele.
No entanto,
ela sorria sempre e sempre, sem o menor queixume, porque via o pintor, cujo renome
era grande, alegre e orgulhoso, trabalhar dia e noite com paixão febril no
retrato daquela que tanto amava.
Ai, dela!
Cada dia mais sem forças, mais sem cor.... Na verdade, os que vinham ver o
retrato confessavam em voz baixa que a semelhança era um milagre — provando não
só o talento do pintor como seu grande amor por aquela que pintava de medo tão
maravilhoso...
Mas com o
tempo, quando já a obra tocava a seu fim, ninguém mais foi admitido na torre; o
pintor, no ardor incrível de seu trabalho, não destacava mais do que nuamente
os olhos de sua tela, mesmo a fim de olhar para sua jovem e linda esposa.
E não queria notar que as cores, que aplicava
sobre a tela, era como se as tirasse das faces da doce criatura, que se
mantinha imóvel, diante dele. E quando muitas semanas foram passadas e restava
pouca cousa a fazer — um golpe leve do pincel sobre a boca, um retoque nos olhos
— a alma do modelo vacilou como a chama de uma vela que se extingue.
O golpe
de pincel final foi dado e o pintor maravilhoso ficou, por alguns instantes, em
êxtase, diante da obra admiravelmente perfeita; mas quando assim a contemplava,
eis que um arrepio percorreu todo seu corpo e, muito pálido, e ele exclamou:
“...Mas e
a própria Vida! ”...
Voltou-se
rapidamente para olhar a Amada.
Ela
estava morta...
“Eu Sei Tudo”, janeiro de 1930.
Qual era a magia da pintura do retrato oval, segundo o narrador?
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