10/04/2016

Infeliz curiosidade (Conto), de Guy de Maupassant


Infeliz curiosidade, de Gui de Maupassant

Publicado originalmente na revista "A Noite Ilustrada", edição de 28 de agosto de 1942. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016) 

O Senhor Saval, notário de Vernon, era multo afeiçoado pela música. Jovem ainda, calvo já, e sempre cuidadosamente trajado, bastante gordo, usando óculos de ouro, era galante, vivo, alegre, e se passava em Vernon por um artista. Tocava o piano e o violino, e em seus serões musicais interpretava as óperas modernas.
Além disso, tinha o que se chama “um fiozinho de voz”, um fiozinho somente, mas o manejava com tanto gosto que os “Bravo! Excêntrico! Surpreendente!  Admirável! saíam de todas a bocas enquanto ele lançava a última nota.
Um editor de música de Paris lhe mandava todas as novidades e, de quando em quando, a boa sociedade de Vernon recebia convites redigidos desta forma:
“Rogo a presença de V. Excia. segunda-feira, de noite, na casa do senhor Saval, notório, para assistir a primeira audição em Vernon de... (tal ou qual ópera)”.
Alguns militares que tinham boa voz faziam os coros. E duas ou três damas cantavam também.
O notório dirigia a orquestra e as vozes com tanta segurança, que o chefe dos músicos do Regimento 190 de infantaria, disse uma vez no café “Europa”: — O senhor Saval é um verdadeiro maestro. Pena que não se tenha dedicado exclusivamente às artes.
Quando alguém citava seu nome, não faltava outro que declamasse: — Não é um amador: é um artista, um verdadeiro artista.
Duas ou três pessoas repetiam com profunda convicção — Sem dúvida: um verdadeiro artista.
E frisavam multo a palavra “verdadeiro”.
Cada vez que uma obra nova era interpretada num teatro de primeira ordem de Paris, o senhor Saval fazia uma viagem.
Ultimamente quis assistir a uma das primeiras representações de “Henrique VIII”. Tomou o expresso que chegava a Paris às quatro e trinta da tarde, resolvido a regressar no das doze o quarenta e cinco, para não dormir fora de casa. Foi já vestido de fraque, estando este dissimulado sob um vasto capote com a gola levantada.
Quando pisou a rua de Amsterdam, foi radiante que pensou: — Não há dúvida: o ambiente de Paris não se parece com nenhum outro. Há alguma coisa de ativo no ar, excitante e embriagador, que anima e faz nascer muitos desejos. Que vida tão agradável aqui, em meio de um mundo artístico! Felizes os grandes homens, os eleitos que gozam de fama nesta capital da Arte. Que vida a sua!
E fazia projetos. Desejaria conhecer alguns daqueles homens célebres para passar em sua companhia, de quando em quando, uma noitada em Paris e falar dela, depois, em Vernon.
De súbito teve uma ideia. Ouvira falar das cervejarias onde iam pintores já conhecidos, literatos e até músicos, e se dirigiu par a Montmartre, lentamente.
Restavam-lhe duas horas antes da de ir ao teatro. Podia ver alguma coisa. Passou por diante das cervejarias onde se reúnem os boêmios esfarrapados, contemplando suas cabeças, procurando adivinhar quais eram os artistas. Ao final se decidiu a entrar na “Rata Morta”, sugestionado pelo nome.
Cinco ou seis mulheres com os cotovelos sobre as mesas de mármore falavam de seus assuntos amorosos, da disputa de Lúcia com Hortênsia e das trapalhadas de Palmira. Eram já maduras, demasiado obesas ou demasiado flácidas. Todas fatigadas e debilitadas. Adivinhavam-se as calvas em seus penteados. Bebiam tanta cerveja como os homens.
O senhor Saval foi sentar-se a distância das mulheres, e esperou, confiado em que não tardariam em chegar artistas, porque se aproximava a hora da ceia.
Um elegante jovem chegou logo e tomou assento perto de Saval. Cumprimentando o recém-chegado, a dona do estabelecimento lhe chamou Romantin.
O notário sentiu uma emoção agradável. Seria este Romantin o que acabava de obter primeira medalha na Exposição do Pintura?
O Jovem chamou o garçom e lhe disse:
— Dá-me de comer e que levem a meu novo estúdio, “boulevard” de Clichy, número 15, trinta garrafas de cerveja e o presunto que encomendei. Vamos celebrar a nova instalação.
Saval pediu que lhe servissem um bife. Tirou o sobretudo, mostrando o fraque em toda a sua beleza.
Seu vizinho de mesa, que sem dúvida não reparava nele, pegara um jornal e lia.
Saval o olhava pelo canto dos olhos, ardendo em desejos de falar-lhe.
Outros dois jovens, com a barba em ponta à Henrique II, entraram sentando-se junto a Romantin.
Um disse:
— Será esta noite?
Romantin lhe apertou a mão:
— Sim, esta noite. Ali estarão Bonat, Guillemet, Gervex, Biraud, Hebert, Diez, Clairin, Jean-Paul Laurenz. Uma belíssima festa! Com mulheres! Todas as atrizes que não trabalham esta noite.
O garçom se aproximou, dizendo:
— O senhor inaugura o estúdio com multa frequência.
— É verdade. Cada trimestre há mudança. Mas eu só me mudo quando querem receber o dinheiro do aluguel.
O notário, não podendo já se conter, entrou na conversa.
— Rogo que o cavalheiro me perdoe, mas ouvi o seu nome e desejaria que me dissesse se o senhor é o pintor cuja obra tanto admirei na última exposição...
— Sou, com eleito, Romantin, o pintor premiado com a primeira medalha.
O notário foi muito oportuno nas frases elogiosas que pronunciou e que ele acreditava serem dignas de um homem culto.
O pintor, rendido, respondeu finamente a tantas gentilezas.
E falaram.
Romantin voltou a tratar de sua festa que, sem dúvida, seria magnífica.
Saval, depois de perguntar-lhe algo de todas as celebridades que assistiriam a ele, acrescentou:
— Para um visitante seria uma fortuna extraordinária conhecer de um golpe tantos homens famosos em casa de um artista eminente.
Romantin ofereceu:
— Se lhe agrada, vá a ela.
Saval aceitou com entusiasmo, pensando: “Ainda há tempo de ver o “Henrique VII”.
Um e outro acabaram de comer. O notário fez empenho de pagar a conta, desejando corresponder de algum modo as atenções do artista. Pagou também o que beberam os dois companheiros de Romantin.
Logo depois saiu da cervejaria com o pintor.
Detiveram-se em frente de uma casa muito grande e de pouca altura, sobre cujo primeiro andar havia uma galeria de cristais interminável. Havia seis estúdios em fila. Romantin a passou adiante, subiu a escada, abriu a porta, acendeu um fósforo e depois uma vela.
Acharam-se num quarto imenso e desmantelado, cujo mobiliário consistia em três cadeiras, dois cavaletes e alguns quadros pregados na parede. Saval, estupefato, ficou imóvel junto à porta.
O pintor disse:
— Espaço temos bastante. Falta o resto.
Depois, examinando o aposento desarrumado, cujo teto se perdia na sombra, acrescentou:
— Pode-se tirar muito partido do estúdio. Minha querida vai ajudar-me. Para estas coisas, as mulheres não têm preço. Mas a enviei ao campo esta manhã com o fim de livrar-me de sua presença esta noite. Não porque me aborreça, mas porque não tem maneiras finas e seus modos poderiam desagradar os meus convidados. É uma boa moça, mas tem um gênio impossível. Se hoje soubesse que dou uma festinha aqui, ela me arrancaria os olhos.
Saval continuava imóvel, sem compreender tudo aquilo.
O artista se aproximou dele.
— Já que veio, ajude-me.
— Estou inteiramente às suas ordens.
Romantin pegou a vassoura.
— Bem, cidadão, ao trabalho! Primeiro se impõe um pouco de limpeza. Tome a escova e trabalhe enquanto eu me ocupo da luz.
Saval pegou o objeto e começou a escovar o assoalho tão sem jeito, que levantava nuvens de pó.
Romantin, indignado, tirou-lhe a escova das mãos.
— Não sabe como se faz isso? Caramba! Olhe, olhe, como eu o faço!
E começou a mover a escova, com rapidez, reunindo um montão de pó, como se em toda sua vida fizesse somente aquilo. Logo devolveu o instrumento de limpeza ao notário, o qual procurou imitá-lo.
Depois de cinco minutos havia tanto pó no estúdio, que Romntin perguntou: — Onde você se meteu, que não o vejo?
Saval se acercou do pintor e este lhe disse: — Como se arrumaria para improvisar uma aranha?
O notário, surpreso, repetiu:  
— Uma aranha?
— Sim, para a iluminação. Uma aranha com velas de cera.
— Ah, não o sei.
O pintor, fazendo castanholar seus dedos, passeava: — Pois bem, eu descobri a maneira de fazê-la.
Logo perguntou:
— Tens aí cinco francos?
— Tenho-os.
— Pois vi comprar cinco francos de velas de cera, enquanto vou à casa do tanoeiro.
E empurrou o notário para a porta.
Voltaram logo, um com as velas e o outro com um arco de barril. Logo Romantin tirou de um armário da parede vinte garrafas vazias e as atou no arco. Foi pedir uma escada à porteira, explicando a Saval que estava quase pronta a aranha.
Mas ao subir a escada, perguntou ao músico:
— É ágil?
Sem compreender o objetivo da pergunta, o notário respondeu: — Acho que sim.
— Multo bem. Pode subir e colocar minha aranha no teto, e acender em cada garrafa uma vela. Mas, caramba! Para isso é preciso tirar o fraque.
Súbito a porta se abriu e apareceu uma mulher com os olhos muito brilhantes.
Romantin a olhava assustado.
A mulher ficou imóvel e silenciosa, com os braços cruzados e o olhar fixo. Depois, com voz vibrante, exasperada, gritou:
— Ah! Canalha! Sem vergonha! Por que me enganaste?
Romantin permanecia silencioso. Ela continuou:
— Canalha! E te fazias de gentil, enviando-me ao campo. Verás como eu arrumo a tua festa. Sim. Eu própria vou receber os teus amigos...
Agitava-se gradualmente: — Atirarei neles as garrafas e...
Romantin disse com doçura, querendo apaziguá-la:
— Matilde...
Mas ela, sem fazer-lhe caso, continuava:
— Já verás, canalha... e tu também, disse apontando para Saval.
Romantin acercou-se da mulher, procurando acariciar-lhe a mão.
— Matilde...
Mas ela estava furiosa, vomitando frases grosseiras, insultos, reproches de todos os tipos, os quais brotavam de seus lábios como uma torrente de imundície. As palavras se atropelavam para sair. Tartamudeava, engasgava-se, misturando injúrias, ameaças e maldições. O pintor lhe segurara as mãos sem que ela o percebesse. Nem parecia vê-lo, ocupada só em esvaziar o seu coração. De súbito chorou. Suas lágrimas caíam e se mesclavam com suas queixas. Mas sua voz tomava inflexões tristes e sentimentais até que se converteu num lamento. Quis insistir em suas provocações duas, três, quatro vezes, mas suas lágrimas acabaram por silenciá-la.
E o pintor, enternecido, a apertou nos braços e a beijou nos cabelos.
— Matilde, minha querida Matilde, ouve-me, sê razoável. Não ignoras que necessito festejar a medalha que me deram na Exposição. Há compromissos inevitáveis. Não é uma festa de mulheres. Deverias compreendê-lo. Os artistas não são como todo o mundo.
Ela balbuciou, entre lágrimas:
— Por que não me disseste?
— Porque tu não gostarias. Vamos. Agora te levarei à tua casa e serás muito boa e muito prudente e te deitarás para esperar-me. Eu irei logo.
— Bem... Mas prometes que estas coisas não se repetirão?
— Juro.
E dirigindo-se ao notário, que acabava de arrumar a aranha, disse-lhe:   
— Antes de cinco minutos voltarei, mas se alguém chegar nesse ínterim, faça as honras da casa.
E se foi levando Matilde, que limpava as lágrimas com um lencinho.
Sozinho, Saval acabou de arrumar as coisas, acendeu as velas e aguardou.
Esperou um quarto de hora, meia hora, uma hora, sem que Romantin voltasse.
Algum tempo depois, de súbito, ressoou nas escadarias uma gritaria horrível, uma música vociferada por cem bocas. E um passo ritmado como os de um regimento em marcha. E todo o edifício retumbou. A porta se abriu e um multidão se precipitou no estúdio. Mulheres e homens, de dois em dois, avançavam gritando:
Entrai em minha barraca, entrai.
Criadas e crianças, entrai.
O notário, surpreso, ficou imóvel. Os recém-chegados, ao vê-lo, dando gritos, começaram a girar em volta, encerrando-o num círculo de rugidos. Logo o seguraram pela mão e dançaram em coro desaforadamente.
O notário procurava explicar-se:
— Senhores... Senhores... Senhores...
Mas ninguém o ouvia. Todos gritavam, saltavam e riam.
Por fim a dança acabou e Saval disse:
— Senhores...
Um jovem loiro o interrompeu:
— Você como se chama, amigo?
— Sou o senhor Saval.
Uma mulher acrescentou:
— Deixa-o sossegado. O rapaz foi pago para que nos sirva e não para que zombemos dele.
Então reparou Saval que todos os convidados traziam mantimentos. Um, vinho; outro, pastéis; aquele, pão; este, presunto.
O jovem loiro lhe pôs na mão um salsichão enorme, ordenando-lhe:
— Prepare o bufê convenientemente. Ponha as garrafas à esquerda e os comestíveis à direita.
Saval, exasperado, exclamou:
— Mas, senhores, eu não sou um garçom. Sou um notário.
Houve um momento de silêncio. Logo estalou um gargalhada geral.
Um desconhecido lhe dirigiu esta pergunta:
— Por que, então, estás aqui?
Saval deu explicações, relatando seu projeto de ir à Ópera, sua saída de Vernon, sua chegada a Paris. Tudo, enfim, o que lhe aconteceu.
Tinham-se sentado todos a seu redor para escutá-lo e, de quando em quando, o interrompiam com frases irônicas. Alguns o chamavam de Sherazade, recordando as “Mil e uma noites”.
Romantin não voltava. Chegavam convidados e os primeiros, apresentando-lhes Saval, pediam que lhes repetisse a história. Ele se negava, mas à força de rogos e de insistências, o faziam ceder. Puseram-no numa das três cadeiras, entre duas mulheres que lhe ofereciam vinho a cada instante.
O notário bebia, ria, conversava, e até chegou a cantar. Quis levantar-se e caiu.
A partir daquele momento perdeu os sentidos. Entretanto, lhe pareceu que lhe tiravam a roupa, que o deitavam e que lhe doía muito o estômago.
Era quase meio dia quando despertou numa alcova estreita, numa cama desconhecida.
Uma velha, empunhando uma escova, o olhava furiosamente, e ao final lhe disse:
 — Porco, mais que porco! Não é decente nem decoroso embriagar-se assim!
Saval se levantou, sentindo-se incomodado, e disse:
— Por que me trouxeram aqui?
— Por estar embriagado, porco! Porque não podia ficar em pé. Vamos, dê o fora! Depressa! Depressa!
Quis levantar-se, mas estava nu e não viu sua roupa em parte alguma.
— Senhora, eu...
Recordando, perguntou:
— O senhor Romantin já voltou?
A porteira o olhou com raiva:
— Fique calado! Fora daqui! Que eu não o veja, quando voltar!
Saval, perturbado, murmurou:
— Mas se me tiraram a roupa...
Foi preciso avisar a uns amigos, pedir-lhes dinheiro e comprar outra roupa. Tomou o trem da noite...
E Saval, quando se fala de música em suas tertúlias de Vernon, diz, com a pose de quem sabe muito bem o que diz, que a pintura é uma arte secundária, que quase não vale nada.

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