Infeliz curiosidade, de Gui de Maupassant
Publicado originalmente na revista "A Noite Ilustrada", edição de 28 de agosto de 1942. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Publicado originalmente na revista "A Noite Ilustrada", edição de 28 de agosto de 1942. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
O Senhor Saval, notário de Vernon, era multo afeiçoado pela música. Jovem ainda, calvo já, e sempre cuidadosamente trajado, bastante gordo, usando óculos de ouro, era galante, vivo, alegre, e se passava em Vernon por um artista. Tocava o piano e o violino, e em seus serões musicais interpretava as óperas modernas.
Além disso,
tinha o que se chama “um fiozinho de voz”, um fiozinho somente, mas o manejava
com tanto gosto que os “Bravo! Excêntrico! Surpreendente! Admirável! saíam de todas a bocas enquanto ele
lançava a última nota.
Um editor
de música de Paris lhe mandava todas as novidades e, de quando em quando, a boa
sociedade de Vernon recebia convites redigidos desta forma:
“Rogo a
presença de V. Excia. segunda-feira, de noite, na casa do senhor Saval, notório,
para assistir a primeira audição em Vernon de... (tal ou qual ópera)”.
Alguns
militares que tinham boa voz faziam os coros. E duas ou três damas cantavam também.
O notório
dirigia a orquestra e as vozes com tanta segurança, que o chefe dos músicos do
Regimento 190 de infantaria, disse uma vez no café “Europa”: — O senhor Saval é
um verdadeiro maestro. Pena que não se tenha dedicado exclusivamente às artes.
Quando alguém
citava seu nome, não faltava outro que declamasse: — Não é um amador: é um
artista, um verdadeiro artista.
Duas ou três
pessoas repetiam com profunda convicção — Sem dúvida: um verdadeiro artista.
E
frisavam multo a palavra “verdadeiro”.
Cada vez
que uma obra nova era interpretada num teatro de primeira ordem de Paris, o
senhor Saval fazia uma viagem.
Ultimamente
quis assistir a uma das primeiras representações de “Henrique VIII”. Tomou o
expresso que chegava a Paris às quatro e trinta da tarde, resolvido a regressar
no das doze o quarenta e cinco, para não dormir fora de casa. Foi já vestido de
fraque, estando este dissimulado sob um vasto capote com a gola levantada.
Quando
pisou a rua de Amsterdam, foi radiante que pensou: — Não há dúvida: o ambiente
de Paris não se parece com nenhum outro. Há alguma coisa de ativo no ar,
excitante e embriagador, que anima e faz nascer muitos desejos. Que vida tão
agradável aqui, em meio de um mundo artístico! Felizes os grandes homens, os
eleitos que gozam de fama nesta capital da Arte. Que vida a sua!
E fazia
projetos. Desejaria conhecer alguns daqueles homens célebres para passar em sua
companhia, de quando em quando, uma noitada em Paris e falar dela, depois, em
Vernon.
De súbito
teve uma ideia. Ouvira falar das cervejarias onde iam pintores já conhecidos, literatos
e até músicos, e se dirigiu par a Montmartre, lentamente.
Restavam-lhe
duas horas antes da de ir ao teatro. Podia ver alguma coisa. Passou por diante
das cervejarias onde se reúnem os boêmios esfarrapados, contemplando suas
cabeças, procurando adivinhar quais eram os artistas. Ao final se decidiu a entrar na “Rata Morta”, sugestionado pelo nome.
Cinco ou
seis mulheres com os cotovelos sobre as mesas de mármore falavam de seus assuntos
amorosos, da disputa de Lúcia com Hortênsia e das trapalhadas de Palmira. Eram
já maduras, demasiado obesas ou demasiado flácidas. Todas fatigadas e debilitadas. Adivinhavam-se
as calvas em seus penteados. Bebiam tanta cerveja como os homens.
O senhor
Saval foi sentar-se a distância das mulheres, e esperou, confiado em que não
tardariam em chegar artistas, porque se aproximava a hora da ceia.
Um elegante
jovem chegou logo e tomou assento perto de Saval. Cumprimentando o recém-chegado,
a dona do estabelecimento lhe chamou Romantin.
O notário
sentiu uma emoção agradável. Seria este Romantin o que acabava de obter primeira
medalha na Exposição do Pintura?
O Jovem
chamou o garçom e lhe disse:
— Dá-me
de comer e que levem a meu novo estúdio, “boulevard” de Clichy, número 15,
trinta garrafas de cerveja e o presunto que encomendei. Vamos celebrar a nova instalação.
Saval pediu
que lhe servissem um bife. Tirou o sobretudo, mostrando o fraque em toda a sua
beleza.
Seu
vizinho de mesa, que sem dúvida não reparava nele, pegara um jornal e lia.
Saval o
olhava pelo canto dos olhos, ardendo em desejos de falar-lhe.
Outros
dois jovens, com a barba em ponta à Henrique II, entraram sentando-se junto a
Romantin.
Um disse:
— Será
esta noite?
Romantin
lhe apertou a mão:
— Sim,
esta noite. Ali estarão Bonat, Guillemet, Gervex, Biraud, Hebert, Diez, Clairin,
Jean-Paul Laurenz. Uma belíssima festa! Com mulheres! Todas as atrizes que não
trabalham esta noite.
O garçom
se aproximou, dizendo:
— O
senhor inaugura o estúdio com multa frequência.
— É
verdade. Cada trimestre há mudança. Mas eu só me mudo quando querem receber o
dinheiro do aluguel.
O
notário, não podendo já se conter, entrou na conversa.
— Rogo
que o cavalheiro me perdoe, mas ouvi o seu nome e desejaria que me dissesse se o
senhor é o pintor cuja obra tanto admirei na última exposição...
— Sou,
com eleito, Romantin, o pintor premiado com a primeira medalha.
O notário
foi muito oportuno nas frases elogiosas que pronunciou e que ele acreditava
serem dignas de um homem culto.
O pintor,
rendido, respondeu finamente a tantas gentilezas.
E
falaram.
Romantin voltou
a tratar de sua festa que, sem dúvida, seria magnífica.
Saval,
depois de perguntar-lhe algo de todas as celebridades que assistiriam a ele, acrescentou:
— Para um
visitante seria uma fortuna extraordinária conhecer de um golpe tantos homens
famosos em casa de um artista eminente.
Romantin
ofereceu:
— Se lhe
agrada, vá a ela.
Saval
aceitou com entusiasmo, pensando: “Ainda há tempo de ver o “Henrique VII”.
Um e
outro acabaram de comer. O notário fez empenho de pagar a conta, desejando
corresponder de algum modo as atenções do artista. Pagou também o que beberam
os dois companheiros de Romantin.
Logo
depois saiu da cervejaria com o pintor.
Detiveram-se
em frente de uma casa muito grande e de pouca altura, sobre cujo primeiro andar
havia uma galeria de cristais interminável. Havia seis estúdios em fila. Romantin
a passou adiante, subiu a escada, abriu a porta, acendeu um fósforo e depois
uma vela.
Acharam-se
num quarto imenso e desmantelado, cujo mobiliário consistia em três cadeiras,
dois cavaletes e alguns quadros pregados na parede. Saval, estupefato, ficou imóvel
junto à porta.
O pintor
disse:
— Espaço
temos bastante. Falta o resto.
Depois,
examinando o aposento desarrumado, cujo teto se perdia na sombra, acrescentou:
— Pode-se
tirar muito partido do estúdio. Minha querida vai ajudar-me. Para estas coisas,
as mulheres não têm preço. Mas a enviei ao campo esta manhã com o fim de livrar-me
de sua presença esta noite. Não porque me aborreça, mas porque não tem maneiras
finas e seus modos poderiam desagradar os meus convidados. É uma boa moça, mas tem
um gênio impossível. Se hoje soubesse que dou uma festinha aqui, ela me arrancaria
os olhos.
Saval
continuava imóvel, sem compreender tudo aquilo.
O artista
se aproximou dele.
— Já que
veio, ajude-me.
— Estou inteiramente às suas ordens.
Romantin
pegou a vassoura.
— Bem,
cidadão, ao trabalho! Primeiro se impõe um pouco de limpeza. Tome a escova e
trabalhe enquanto eu me ocupo da luz.
Saval
pegou o objeto e começou a escovar o assoalho tão sem jeito, que levantava nuvens
de pó.
Romantin,
indignado, tirou-lhe a escova das mãos.
— Não
sabe como se faz isso? Caramba! Olhe, olhe, como eu o faço!
E começou
a mover a escova, com rapidez, reunindo um montão de pó, como se em toda sua vida fizesse somente aquilo. Logo devolveu o
instrumento de limpeza ao notário, o qual procurou imitá-lo.
Depois de
cinco minutos havia tanto pó no estúdio, que Romntin perguntou: — Onde você se
meteu, que não o vejo?
Saval se
acercou do pintor e este lhe disse: — Como se arrumaria para improvisar uma aranha?
O notário,
surpreso, repetiu:
— Uma aranha?
— Sim,
para a iluminação. Uma aranha com velas de cera.
— Ah, não
o sei.
O pintor,
fazendo castanholar seus dedos, passeava: — Pois bem, eu descobri a maneira de
fazê-la.
Logo
perguntou:
— Tens aí
cinco francos?
—
Tenho-os.
— Pois vi
comprar cinco francos de velas de cera, enquanto vou à casa do tanoeiro.
E empurrou
o notário para a porta.
Voltaram
logo, um com as velas e o outro com um arco de barril. Logo Romantin tirou de
um armário da parede vinte garrafas vazias e as atou no arco. Foi pedir uma
escada à porteira, explicando a Saval que estava quase pronta a aranha.
Mas ao
subir a escada, perguntou ao músico:
— É ágil?
Sem compreender
o objetivo da pergunta, o notário respondeu: — Acho que sim.
— Multo
bem. Pode subir e colocar minha aranha no teto, e acender em cada garrafa uma
vela. Mas, caramba! Para isso é preciso tirar o fraque.
Súbito a
porta se abriu e apareceu uma mulher com os olhos muito brilhantes.
Romantin
a olhava assustado.
A mulher ficou
imóvel e silenciosa, com os braços cruzados e o olhar fixo. Depois, com voz
vibrante, exasperada, gritou:
— Ah! Canalha!
Sem vergonha! Por que me enganaste?
Romantin
permanecia silencioso. Ela continuou:
— Canalha!
E te fazias de gentil, enviando-me ao campo. Verás como eu arrumo a tua festa.
Sim. Eu própria vou receber os teus amigos...
Agitava-se
gradualmente: — Atirarei neles as garrafas e...
Romantin
disse com doçura, querendo apaziguá-la:
— Matilde...
Mas ela,
sem fazer-lhe caso, continuava:
— Já
verás, canalha... e tu também, disse apontando para Saval.
Romantin
acercou-se da mulher, procurando acariciar-lhe a mão.
—
Matilde...
Mas ela estava furiosa, vomitando frases grosseiras, insultos, reproches de todos os
tipos, os quais brotavam de seus lábios como uma torrente de imundície. As
palavras se atropelavam para sair. Tartamudeava, engasgava-se, misturando injúrias,
ameaças e maldições. O pintor lhe segurara as mãos sem que ela o percebesse.
Nem parecia vê-lo, ocupada só em esvaziar o seu coração. De súbito chorou. Suas
lágrimas caíam e se mesclavam com suas queixas. Mas sua voz tomava inflexões
tristes e sentimentais até que se converteu num lamento. Quis insistir em suas provocações
duas, três, quatro vezes, mas suas lágrimas acabaram por silenciá-la.
E o
pintor, enternecido, a apertou nos braços e a beijou nos cabelos.
—
Matilde, minha querida Matilde, ouve-me, sê razoável. Não ignoras que necessito
festejar a medalha que me deram na Exposição. Há compromissos inevitáveis. Não
é uma festa de mulheres. Deverias compreendê-lo. Os artistas não são como todo
o mundo.
Ela
balbuciou, entre lágrimas:
— Por que
não me disseste?
— Porque
tu não gostarias. Vamos. Agora te levarei à tua casa e serás muito boa e muito
prudente e te deitarás para esperar-me. Eu irei logo.
— Bem...
Mas prometes que estas coisas não se repetirão?
— Juro.
E
dirigindo-se ao notário, que acabava de arrumar a aranha, disse-lhe:
— Antes de
cinco minutos voltarei, mas se alguém chegar nesse ínterim, faça as honras da
casa.
E se foi
levando Matilde, que limpava as lágrimas com um lencinho.
Sozinho,
Saval acabou de arrumar as coisas, acendeu as velas e aguardou.
Esperou
um quarto de hora, meia hora, uma hora, sem que Romantin voltasse.
Algum tempo depois,
de súbito, ressoou nas escadarias uma gritaria horrível, uma música vociferada
por cem bocas. E um passo ritmado como os de um regimento em marcha. E todo o edifício
retumbou. A porta se abriu e um multidão se precipitou no estúdio. Mulheres e
homens, de dois em dois, avançavam gritando:
Entrai em
minha barraca, entrai.
Criadas e crianças, entrai.
Criadas e crianças, entrai.
O
notário, surpreso, ficou imóvel. Os recém-chegados, ao vê-lo, dando gritos,
começaram a girar em volta, encerrando-o num círculo de rugidos. Logo o
seguraram pela mão e dançaram em coro desaforadamente.
O notário
procurava explicar-se:
—
Senhores... Senhores... Senhores...
Mas ninguém
o ouvia. Todos gritavam, saltavam e riam.
Por fim a
dança acabou e Saval disse:
— Senhores...
Um jovem
loiro o interrompeu:
— Você
como se chama, amigo?
— Sou o
senhor Saval.
Uma
mulher acrescentou:
— Deixa-o
sossegado. O rapaz foi pago para que nos sirva e não para que zombemos dele.
Então
reparou Saval que todos os convidados traziam mantimentos. Um, vinho; outro, pastéis;
aquele, pão; este, presunto.
O jovem
loiro lhe pôs na mão um salsichão enorme, ordenando-lhe:
— Prepare
o bufê convenientemente. Ponha as garrafas à esquerda e os comestíveis à
direita.
Saval,
exasperado, exclamou:
— Mas, senhores,
eu não sou um garçom. Sou um notário.
Houve um
momento de silêncio. Logo estalou um gargalhada geral.
Um desconhecido
lhe dirigiu esta pergunta:
— Por
que, então, estás aqui?
Saval deu
explicações, relatando seu projeto de ir à Ópera, sua saída de Vernon, sua chegada
a Paris. Tudo, enfim, o que lhe aconteceu.
Tinham-se
sentado todos a seu redor para escutá-lo e, de quando em quando, o interrompiam
com frases irônicas. Alguns o chamavam de Sherazade, recordando as “Mil e uma
noites”.
Romantin
não voltava. Chegavam convidados e os primeiros, apresentando-lhes Saval, pediam
que lhes repetisse a história. Ele se negava, mas à força de rogos e de insistências,
o faziam ceder. Puseram-no numa das três cadeiras, entre duas mulheres que lhe ofereciam
vinho a cada instante.
O notário
bebia, ria, conversava, e até chegou a cantar. Quis levantar-se e caiu.
A partir
daquele momento perdeu os sentidos. Entretanto, lhe pareceu que lhe tiravam a
roupa, que o deitavam e que lhe doía muito o estômago.
Era quase
meio dia quando despertou numa alcova estreita, numa cama desconhecida.
Uma velha,
empunhando uma escova, o olhava furiosamente, e ao final lhe disse:
— Porco, mais que porco! Não é decente nem
decoroso embriagar-se assim!
Saval se
levantou, sentindo-se incomodado, e disse:
— Por que
me trouxeram aqui?
— Por
estar embriagado, porco! Porque não podia ficar em pé. Vamos, dê o fora! Depressa!
Depressa!
Quis levantar-se,
mas estava nu e não viu sua roupa em parte alguma.
—
Senhora, eu...
Recordando,
perguntou:
— O
senhor Romantin já voltou?
A
porteira o olhou com raiva:
— Fique
calado! Fora daqui! Que eu não o veja, quando voltar!
Saval,
perturbado, murmurou:
— Mas se
me tiraram a roupa...
Foi
preciso avisar a uns amigos, pedir-lhes dinheiro e comprar outra roupa. Tomou o
trem da noite...
E Saval,
quando se fala de música em suas tertúlias de Vernon, diz, com a pose de quem sabe
muito bem o que diz, que a pintura é uma arte secundária, que quase não vale nada.
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