O corvo de Mizzaro, de Luigi Pirandello
Publicado originalmente no suplemento literário
de "A Noite", edição de 1930. A pesquisa, transcrição e adaptação
ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Certos
pastores desocupados, galgando um dia as montanhas de Mizzaro, surpreenderam,
no ninho, um enorme corvo que estava chocando os ovos, pacificamente...
— Ó
basbaque, que fazes aí? Vejam só: chocando os ovos! Isso é serviço de tua
mulher, basbaque!
Não é de
crer que o corvo deixasse de dar as suas razões; deu-as, e numa linguagem de
corvo, gritando. Contudo, ninguém o ouviu. Os tais pastores levaram o dia
inteiro torturando-o com as suas pilhérias, até que um deles resolveu levá-lo
consigo para a aldeia. Mas no dia seguinte, não sabendo o que fazer deste corvo
enorme, dependurou-lhe, como lembrança, um guizo de bronze ao colo e o libertou
de novo:
— Goza!
***
Só mesmo o
corvo é que poderá saber a impressão que lhe causou aquele guizo sonoro, porque
o arrastou consigo para o céu. Vendo-o voar, voar amplamente, cada vez mais
alto, dir-se-ia que ele estivesse satisfeito, já agora esquecido do ninho e da
mulher.
— Dim
dimdim, dim dimdim...
Os
camponeses que trabalhavam debruçados sobre a terra, ouviam aqueles guizos e
erguiam o pescoço; olhavam aqui, ali, pela planície imensa que se estendia sob
o incêndio do sol:
— Que é que
está tocando? De onde vem esse som?
Mas se não
havia vento, de que igreja distante podia chegar até eles esse bimbalhar
festivo?
Supunham
tudo menos que fosse um corvo no azul do céu.
— Espíritos!
— pensou Ciché, que trabalhava sozinho numa herdade, atento a desencavar
conchas em torno de alguns frutos de amendoeira, a fim de enchê-las de estrume.
E fez-se o sinal da cruz. Porque ele acreditava piamente na existência de
espíritos. Fizera experiências em outras ocasiões. E até ao voltar, certa
noite, do campo, pela estrada que margeia as Fornaci extintas, que era onde
eles moravam, no dizer de todos, ouviu que o chamavam. — Ciché! Ciché! E sentiu
que os cabelos se eriçavam sob o boné.
Aquele
bimbalhar ele o ouvira a princípio, à distância, depois mais perto, e depois
novamente à distância. Em redor não havia viva alma: campo, árvores e plantas,
que não falavam, sentiam, que com a sua impassibilidade tinham aumentado o seu
espanto. À hora da merenda, que consistia num pedaço de pão e numa cebola, que
trouxera de casa e que deixara dependurada numa sacola, perto dele, junto com o
paletó, a uma árvore de oliveira, não encontrou a cebola; encontrou apenas o
pedaço de pão. E foi assim durante três dias em seguida.
Não disse
nada a ninguém, porque sabia que quando os Espíritos começam a atormentar uma
pessoa, ai de quem se lamente! Fazem pior.
— Não me
sinto bem — respondia Ciché, ao voltar de tarde para casa, à mulher que lhe
perguntava a razão daquele seu aspecto transtornado.
— Mas, ao
menos, coma! — observava-lhe a companheira, vendo que ele engolia duas ou três
colheradas de sopa, uma após outra.
— Sim, como!
— Mastigava Ciché, em jejum desde a manhã e com ódio por não poder abrir-se com
a esposa.
Até que por
todo o campo se espalhou a notícia daquele corvo ladrão que andava tocando o
guizo pelo céu.
Ciché teve a
desdita de não rir do caso como os demais camponeses, que também andavam com
apreensões.
— Prometo e
juro — disse ele — que me pagará caro a brincadeira!
E que fez?
Trouxe na sacola, junto com o pedaço de pão e a cebola, quatro favas secas e
quatro costuradas a barbante. Assim que chegou à herdade, tirou selim ao asno e
o soltou pelo campo, livremente. Ciché falava com o asno como se fala com um
cristão; e o asno, ora erguendo esta, ora erguendo aquela outra orelha, de
quando em quando rugia, como se lhe respondesse a seu modo.
— Vá, Chico,
vá — disse-lhe nesse dia Ciché. — E esteja atento, porque nos divertiremos!
Furou as
favas; amarrou as quatro costuradas a barbante no selim, e as colocou em terra
sobre a sacola. Depois afastou-se para começar a trabalhar.
Passou uma
hora; passaram duas. De quando em quando, julgando ouvir o som da campainha
pelo ar ele erguia o corpo e aprumava as orelhas. Nada. E continuava de movo a
carpir.
Chegou a
hora da ceia. Perplexo, sem saber se havia de ir logo ao pão ou esperar ainda
um pouco, Ciché por fim se decidiu; vendo, porém, tão bem preparada a cilada,
resolveu não mexer nela. Nisto, ouviu claramente um tinido distante. Ergueu a
cabeça:
— Ei-lo!
E quieto e
inclinado, com o coração que lhe pulsava violentamente, deixou o lugar e se
escondeu ao longe.
Mas o corvo,
como se se estivesse deliciando com o som da campainha, voava, voava, revoava,
sempre no alto, cada vez mais alto e não tratava de descer.
— Desconfio
que me está vendo — pensou Ciché; e ergueu-se para ir esconder-se mais longe.
O corvo
continuou voando sem dar demonstrações de que pretendia descer. Ciché estava
com fome, mas mesmo assim não queria dar-se por vencido. Pôs-se de novo a
carpir. Espera, espera, e o corvo sempre no alto, como se estivesse fazendo de
propósito. Esfomeado, com o pão a dois passos dali, meus senhores, e sem poder
pegá-lo! Ciché remoia-se todo por dentro, mas resistia, indignado, obstinado.
— Hás de
descer! hás de descer! Também tu hás de ter fome!
O corvo,
entretanto, do alto do céu, com o som da campainha, parecia que lhe respondia
irônico:
— Nem tu nem
eu! Nem tu nem eu!
Passou-se
assim o dia. Ciché, exasperado, desafogou-se com o asno, tornando a meter-lhe o
selim, de que pendiam, como um adorno de novo gênero, as quatro favas. E
enquanto caminhava, mordeu indignado aquele pão, que fora o seu suplício o dia
inteiro. A cada mordida, soltava um palavrão para o corvo: — carrasco, ladrão,
traidor... — porque não se deixara prender na cilada.
Mas no dia
seguinte tudo correu bem.
Armada a
cilada das favas com o mesmo cuidado, pusera-se a trabalhar quando ouviu um
bimbalhar convulso ali perto e um grasnar desesperado, entre um furioso sacudir
de asas. Foi ver o que era. O corvo estava ali, preso pelo barbante que lhe
saía do bico e o estrangulara.
— Ah,
caíste? — gritou-lhe ele, aferrando-o pelas asas enormes. — É boa a fava? Agora
é a minha vez, besta feroz! Vais ver.
Cortou o
barbante e, para começar, aplicou dois piparotes na cabeça do corvo.
— Este pelo
medo e este pelo jejum!
O asno que
não estava muito disposto a arrancar as ervas do caminho, ouvindo grasnar o
corvo saiu correndo, em disparada, assustado. Ciché fê-lo parar com um grito e
de longe lhe mostrou a besta negra:
— Ei-lo
aqui, Chico! Prendemo-lo! Amarrou-o pelos pés, dependurou-o na árvore e voltou
ao trabalho. Enquanto carpia, pôs-se a pensar na desforra. Ter-lhe-ia cortado
as asas, para que não pudesse nunca mais voar; depois o entregaria aos filhos e
as crianças da vizinhança para que se divertissem à custa dele. E ria, ria,
entre dentes.
Ao
anoitecer, colocou o selim no asno, desamarrou o corvo e prendeu-o pelos pés ao
rabicho do asno; cavalgou e se pôs a caminho de casa. A campainha amarrada ao
pescoço do corvo, começou a tilintar. O asno eriçou as orelhas e se pôs em pé.
— Vamos! —
gritou-lhe Ciché, dando um soco na cabeça do animal.
E o asno se
pôs de novo a caminho, não muito conformado com aquele som insólito que
acompanhara o seu lento trotear sobre a poeira da estrada.
Ciché
começou a pensar que desse dia em diante ninguém mais havia de ouvir bimbalhar
no céu o corvo de Mizzaro. Tinha-o ali e não dava mais sinal de vida.
— Que fazes?
— lhe perguntou, virando-se e dando-lhe uma chicotada. — Estás dormindo?
O corvo, em
resposta ao látego:
— Cráh!
Diante dessa
voz inesperada, o asno estacou de golpe, com as orelhas estendidas. Ciché
explodiu numa risada.
— Vamos,
Chico! De que te assustas?
E com a
corda bateu na orelha do asno. Pouco depois, de novo, repetiu a pergunta ao
corvo:
—
Adormeceste?
E uma
chicotada mais forte. E o corvo, por sua vez, mais forte ainda:
— Cráh!
Mas desta
vez o asno deu um salto e saiu em disparada. Em vão Ciché, com toda a força dos
braços e das pernas, procurou detê-lo. O corvo, sacudido naquela corrida
desenfreada, começou a grasnar como um desesperado: e quanto mais grasnava
tanto mais o asno corria, espantado.
— Cráh!
Cráh! Cráh!
Ciché
gritava, por sua vez, puxava a rédea, puxava, mas já agora as duas bestas
pareciam enfurecidas pelo espanto que se incutiam mutuamente, uma grasnando e a
outra fugindo. Ecoou, durante certo tempo, dentro da noite, a fúria daquela
corrida desenfreada; ouviu-se depois um formidável tombo, e mais nada.
No dia
seguinte. Ciché foi encontrado, no fundo de um barranco, esfacelado, sob o asno
também esfacelado: uma carniça que fumegava sob o sol, entre nuvens de moscas.
O corvo de
Mizzaro, negro no azul da formosa manhã, soava de novo pelos céus a sua
campainha, livre e feliz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...