Madame Hermet, de Guy de Maupessant
Publicado originalmente no jornal "A República", em sua edição de 26 de fevereiro de 1933. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Vivem os loucos sumidos nessa impenetrável nebulosidade da demência, de onde tudo quanto viram na terra, tudo quanto amaram, tudo quanto fizeram, começa de novo para eles numa nova existência imaginária, alheia por completo a todas as leis que governam e regem o pensamento humano. Por isso eles me atraem com força irresistível.
Para os loucos não existe o impossível,
desaparece o inverossímil e o mágico constitui elemento contínuo e natural.
Nada fazem por vencer as resistências e os obstáculos que encontrarão em seu
caminho, e basta um capricho de sua vontade para que possuam todas as riquezas
do mundo e gozem dos mais puros e excêntricos prazeres.
São os únicos mortais que podem ser felizes
na terra, porque para eles não existe a realidade.
Certo dia, ao visitar um manicômio, o médico
que me acompanhava me disse:
— Vou mostrar-lhe um tipo extremamente
interessante.
E mandou abrir uma cela onde uma mulher
de uns quarenta anos, porém ainda bela, estava sentada contemplando o seu rosto
que a superfície de um espelho de mão refletia.
Apenas nos viu, levantou-se pressurosamente
e se dirigiu para o fundo da cela em busca de um véu que se achava sobre uma cadeira.
Cobriu o rosto com cuidado e voltou ao lugar onde estávamos eu e meu amigo, e
respondeu a nossos cumprimentos com uma inclinação de cabeça.
— Como passou a manhã? — perguntou-lhe o médico.
—Mal, muito mal. Os sinais aumentam dia
a dia.
— Nada disso, senhora. Está completamente
enganada.
— Não senhor, estou certa disso. Hoje contei mais
dez mais buraquinhos: três na face direita, quatro na esquerda e três na testa.
Isto é horrível! Não quero que ninguém me veja. Estou desfigurada para sempre!
A pobre mulher caiu sobre o catre e começou
a soluçar. Ato contínuo o médico tomou uma cadeira sentou-se ao lado da
paciente e, com voz suave e consoladora, lhe disse:
— Vamos ver; mostre-me isso, que eu acho
que é nada. Vai ver como desaparece tudo com uma insignificante cauterização.
— Diante do senhor eu tiro o véu, mas não
diante desse cavalheiro que não conheço.
— Também é médico e talvez possa curá-la
melhor do que eu.
A louca mostrou então o rosto; mas,
cheia de vergonha, baixou olhos para evitar outros olhares, e exclamou:
— Sofro de um modo atroz ao ver-me
assim! É espantoso.
Confesso
que a contemplei com assombro, porque não tinha nada na cara: nenhum sinal,
nenhuma mancha, nenhuma cicatriz.
Poucos momentos depois a infeliz se
voltou pera mim os olhos sempre fitos no chão, e me disse:
— Contraí esta horrível enfermidade cuidando
de meu filho. Mas seja como for, cumpri o meu dever e tenho a consciência
tranquila. Só Deus sabe quanto sofro!
O doutor tirou do bolso um pincel de
aquarelista e exclamou:
— Repito que isso é nada, e que vai
desaparecer dentro de um instante!
A louca apresentou a face direita e o
médico começou a passar por ela o pincel. Em seguida praticou a mesma operação
na face esquerda e na testa. Depois disse:
— Olhe ao espelho. Não há mais nada,
absolutamente nada.
A demente contemplou-se durante largo
tempo, com profunda atenção, com um violento esforço de todo o seu ser para
descobrir alguma coisa, e murmurou:
— Já não se vê nada. Muito obrigada,
doutor.
O médico se levantou, fez-me sair, e
seguiu-me apressadamente. Apenas havia fechado a porta, me disse:
—Agora lhe contarei a horrível história
dessa desgraçada.
Chama-se madame Hermet e foi muito
formosa, muito vaidosa e feliz. É uma dessas mulheres que no mundo não conta
com outra coisa senão com sua beleza e com o desejo de agradar, para consolo de
sua existência.
Ocupava-se tão somente no embelezamento
do rosto, das mãos e dos seus dentes, gastando diariamente muitas horas em seu
toucador.
Ficou viúva com um filho o qual foi
educado com muita dedicação. Era muito querido de sua mãe.
Um dia, quando madame Hermet tinha trinta
e sete anos, o filho, que completado quinze, ficou gravemente doente. O rapaz
teve de ficar de cama, sem que a princípio ninguém atinasse com a causa da
enfermidade.
O preceptor do pequeno velava
constantemente a seu lado, ao passo que sua mãe não se atrevia a entrar no quarto
do filho, limitando-se a pedir da porta notícias do doente.
— Que disse o médico? — perguntou uma
noite ao regressar do teatro.
— Que o menino está atacado de varíola
— respondeu o preceptor.
Madame Hermet deu um grito e passou a
correr precipitadamente.
Quando a criada entrou no dia seguinte
em seu quarto, notou um acentuado cheiro de açúcar queimado, e encontrou sua
senhora com os olhos abertos, o rosto pálido de insônia, tiritando de angústia
sobre a cama.
— Como está o Jorge? — perguntou a mãe.
— Mal, senhora, muito mal.
Madame Hermet levantou-se muito tarde,
não tomou mais que uma taça de chá e saiu à rua em busca de um farmacêutico que
lhe indicasse alguns remédios que prevenisse contra o contágio da varíola.
Não voltou para casa senão à hora da
refeição, carregada de frascos. Fechou-se no quarto, enchendo-se de desinfetantes.
O preceptor a esperava na varanda, e,
logo que o viu, inquiriu com voz embargada pela emoção:
— Como está o Jorge?
— Pior, senhora, muito pior, de tal maneira
que o médico está alarmadíssimo com o avanço da enfermidade.
Madame Hermet começou a chorar. Não comeu
nada.
Na manhã seguinte tornou a perguntar
pelo filho, e não se afastou todo o dia de seu quarto, onde fumegava um pequeno
braseiro que esparzia pelo compartimento um perfume penetrante.
Madame Hermet passou assim uma semana inteira.
Saía unicamente um pouco para tomar ar, sem atrever-se a entrar no quarto do
filho.
No décimo primeiro dia, o preceptor se
apresentou no quarto de dormir da mãe e, com voz tranquila, exclamou:
— Senhora, Jorge está muito mal e
deseja vê-la imediatamente.
— Deus meu! Deus meu! — respondeu
madame Hermet. Não me atrevo nem me atreverei jamais a entrar no quarto dele!
— O médico perdeu toda a esperança de
salvação — replicou o preceptor. — Jorge a espera para lhe dar o último adeus.
— Diga a meu filho que o adoro e que me
mata a angústia...
— Mas, senhora...
— Sim, sou uma miserável, uma infame, uma
mãe desnaturada e cruel!
— Venha, senhora, por piedade!
— Não, não, o medo me aniquila, não sou
dona de minha vontade...
Jorge estava agonizando e, com essa
espécie de pressentimento que costumam ter os moribundos, havia adivinhado tudo
e dizia:
"Se não se atreve a entrar, que
passe pelo jardim e se apresente por trás dos vidros da minha janela, para que
eu possa despedir me dela com um olhar já que não é possível dar-lhe o último
beijo.”
O médico e o preceptor disseram a
madame Hermet:
— A senhora não corre o menor perigo:
haverá um vidro entre a senhora e ele.
Por fim a mãe concordou. Pôs na cabeça
um denso véu, tomou um vidrinho de sais e saiu de seu quarto. Mas de repente
parou gritando:
— Não, não posso! Tenho muito medo! Não
quero, não!
E o moribundo, olhos voltados para a
janela, esperava para morrer, ver passar pela última vez o rosto de sua adorada
mãezinha.
Esperou durante muito tempo, e, ao cair
da noite, se voltou para a parede sem pronunciar uma palavra.
Poucas horas depois exalou o último suspiro.
No outro dia madame Hermet estava louca.
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