10/08/2016

O Capitão do "Normandy" (Conto), de Victor Hugo


 
O Capitão do Normandy, de Victor Hugo
Tradução de Frederico dos Reys Coutinho, publicada originalmente no ano de 1944,  pela antiga e extinta Editora Vecchi. A pesquisa, digitalização e atualização ortográfica é de  Iba Mendes (2016)

Na noite de 17 de março de 1870, o capitão Harvey fazia sua travessia habitual entre Southampton e Guernesey. Um nevoeiro cobria o mar. O capitão Harvey estava de pé no passadiço do vapor, e manobrava cuidadosamente por causa da noite e da bruma. Os passageiros dormiam.
O Normandy era um navio muito grande, talvez o mais bonito dos que faziam a travessia da Mancha: seiscentas toneladas, duzentos e vinte pés ingleses de comprimento, vinte e cinco de largura; era "jovem", como dizem os marinheiros: não tinha sete anos. Fora construído em 1863.
O nevoeiro aumentava, tinha-se saído do rio de Southampton, estava-se em pleno mar, cerca de quinze milhas além das Agulhas. O paquete avançava, devagar. Eram quatro horas da manhã.
A escuridão era absoluta, uma espécie de teto baixo rodeava o vapor; a custo avistava-se a ponta dos mastros.
Nada tão terrível quanto esses navios cegos que avançam dentro da noite.
De súbito surge um negrume entre a bruma, fantasma e montanha, um promontório de sombra correndo na espuma e varando as trevas. Era o Mary, grande vapor de hélice que vinha de Odessa e se dirigia para Grimsby, com um carregamento de quinhentas toneladas de trigo; velocidade enorme, peso imenso. O Mary avançava direto sobre o Normandy.
Nenhum recurso havia para evitar o choque, tamanha a rapidez com que surgem no nevoeiro esses espectros de navios. São encontros sem aproximação. Antes de acabar de vê-lo, a pessoa está morta. O Mary, correndo a toda velocidade, colheu o Normandy perpendicularmente ao costado e arrebentou-o.
Ele próprio, avariado com o choque, parou.
Havia no Normandy vinte e oito homens de tripulação, uma criada... e trinta e dois passageiros, dos quais doze eram mulheres.
O abalo foi violentíssimo. Num momento todos estavam no tombadilho: homens, mulheres, crianças, seminus, correndo, gritando, chorando. A água entrava furiosa. A fornalha das máquinas, alcançada pela inundação, arquejava. Os salva-vidas faltavam.
O capitão Harvey, de pé no passadiço do comando, bradou:
— Silêncio para todos, e atenção! Botes ao mar. As mulheres primeiro, os passageiros depois. Em seguida a tripulação. Há sessenta pessoas para salvar.
Eram sessenta e uma, porém ele esquecia-se de si próprio.
Soltaram as embarcações. Todos correram para elas. Esse açodamento podia fazer os botes virarem. Ockleford, o imediato, e os três contramestres, contiveram aquela multidão desvairada. Dormir, e de súbito, imediatamente, morrer, é pavoroso.
Enquanto isso, acima dos gritos e do tumulto, ouvia-se a voz grave do capitão, e este curto diálogo ocorria nas trevas:
— Maquinista Locks?
— Capitão?
— Como está a fornalha?
— Submersa.
— O fogo?
— Apagado.
— A máquina?
— Morta.
O capitão gritou:
— Imediato Ockleford?
O imediato respondeu:
— Presente.
O capitão prosseguiu:
— De quantos minutos dispomos?
— Vinte.
— É o bastante, disse o capitão. — Que todos embarquem, cada qual por sua vez.
— Imediato Ockleford, está com suas pistolas?
— Sim, capitão.
— Queime os miolos de qualquer homem que quiser passar antes de uma mulher.
Todos se calaram. Ninguém resistiu; a multidão sentia acima de si própria aquela grande alma.
O Mary, por seu lado, descera seus botes e acudia em socorro daquele naufrágio que era obra sua.
O salvamento operou-se com ordem e quase sem luta. Havia, como sempre, tristes egoísmos; também houve dedicações patéticas.
Harvey, impassível em seu posto de comandante, ordenava, dominava, dirigia, ocupava-se com tudo e com todos, governava calmamente aquela agonia e parecia dar ordens à própria catástrofe. Dir-se-ia que o naufrágio lhe prestava obediência.
Em determinado instante ele gritou: — Salvem Clemente!
Clemente era o grumete. Uma criança.
O navio diminuía vagarosamente na água profunda. Apressava-se o mais possível o vaivém das embarcações entre o Normandy e o Mary.
— Depressa! — gritava o capitão.
No vigésimo minuto o vapor soçobrou.
A proa afundou primeiro, depois a popa.
O capitão Harvey, de pé no passadiço, não fez um gesto, não disse uma palavra, entrou imóvel no abismo. Viu-se, através da neblina sinistra, aquela estátua negra mergulhar no oceano.
Assim acabou o capitão Harvey.
Nenhum marinheiro da Mancha o igualava. Depois de se ter imposto a vida toda o dever de ser um homem, ele usou, ao morrer, do direito de ser um herói.

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