Publicado originalmente na revista
"Fon-Fon", em sua edição de 14 de janeiro de 1933. Pesquisa,
transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2016)
Quando o velho Leras, guarda-livros da firma Labuze & Cia., saiu do estabelecimento, ficou alguns instantes deslumbrado com o brilho do sol poente. Trabalhara todo o dia à luz amarelada do bico do gás, no fundo da loja, junto da área estreita e profunda como um poço. Era tão escura a saleta na qual, havia quarenta anos, passava os dias, que mesmo em pleno verão ele só podia dispensar a luz artificial entre as onze e as três horas.
Havia sempre
ali umidade e frio; e as emanações daquela espécie de fossa em que se abria a
janela entravam pela saleta escura e a enchiam de um cheiro de bolor e de
esgoto.
Desde
quarenta anos passados chegava Leras todas as manhãs, às 8 horas, a essa prisão
e ali ficava até às 7 horas da noite, curvado sobre os livros, escrevendo com o
afã de um bom empregado.
Ganhava
atualmente três mil francos por ano, tendo começado com a metade. Era
celibatário, porque o seu ordenado nunca lhe permitira que se casasse. E nada
tendo gozado da vida, não tinha ambição alguma. No entanto, uma vez ou outra,
cansado do seu labor monótono, formulava um desejo platônico: “Ah! se eu
tivesse cinco mil libras de renda que boa vida!”
Essa boa
vida, ele aliás nunca a tivera, pois nunca passara dos seus vencimentos
mensais.
A vida lhe
passara sem acidentes, sem emoções e quase sem esperanças. A faculdade de
sonho, que cada um de nós trás consigo, nunca se desenvolvera na mediocridade
das suas ambições.
Entrara aos
vinte e um anos para a casa Labuze & Cia. e de lá não mais saíra.
Em 1856
perdera o pai, e depois a mãe em 1859. E depois disso o único acontecimento da
sua vida fora uma mudança em 1868, porque o seu senhorio aumentara o aluguel do
quarto.
Saltava do
leito todos os dias às 6 horas precisas, ao som de um ruído terrível do
despertador.
Saía,
comprava um pão na padaria Lahure, de que conhecera doze proprietários
diferentes, sem que ela perdesse o nome do primeiro. E punha-se a caminho, a
comer vagarosamente.
A sua
existência inteira decorrera, pois, na estreita sala sombria, forrada sempre
com o mesmo papel. Entrara moço, como ajudante do sr. Brument e com o desejo de
substituí-lo mais tarde.
Substituíra-o,
e agora nada mais esperava.
Toda a messe
de recordações que colhem os outros homens no decorrer da existência, os
imprevistos, os amores doces ou trágicos, as viagens aventurosas, todos os
acasos de uma vida livre haviam-lhe sido estranhos.
***
Nesse dia o
velho Leras ficou deslumbrado, na porta da rua, pelo fulgor do sol poente; e em
vez de se dirigir à casa, teve a ideia de fazer um pequeno giro antes do
jantar, o que lhe acontecera quatro ou cinco vezes por ano.
Chegou aos
bulevares, onde agitava a multidão sob as árvores reverdecidas. Era uma tarde
de primavera, uma dessas primaveras tépidas e macias que turbam os corações com
uma embriaguez de vida.
Leras
caminhava com o seu passo saltitante de velho; ia com um brilho alegre no olhar,
feliz com a alegria universal e com a tepidez do ar.
Chegou aos
Campos Elíseos e continuou a andar, reanimado pelos eflúvios de mocidade que
passavam na brisa.
O céu
inteiro flamejava e o Arco do Triunfo desenhava sua massa negra sobre o fundo
iluminado do horizonte, como um incêndio. Quando chegou junto ao monstruoso
monumento, o velho guarda-livros sentiu fome e entrou num restaurante para
jantar.
Serviram-lhe
numa mesinha da calçada e Leras jantou como havia muito não fazia.
Depois de
haver pago, sentou-se alegre, vivo e mesmo um tanto perturbado. Disse consigo: “Que
linda noite! Vou o passeio até à entrada do Bois
de Boulogne, isso me fará bem!”
E partiu. A
noite descera sobre Paris, uma noite sem vento, uma noite de estufa. Leras
seguia a Avenida do Bois e
distraía-se a ver passarem as carruagens. Os carros vinham, com os seus olhos
luminosos, um atrás do outro, deixando ver por momentos um par abraçado, a
mulher de vestido claro, o homem de terno preto.
Era uma
longa procissão de namorados, a passar sob o céu estrelado e ardente. E eles
passavam, passavam sempre recostados nas carruagens, mudos, aconchegados,
perdidos na alucinação, na emoção do desejo, no frêmito do próximo amplexo. A
sombra tépida parecia cheia de beijos que voejavam, que flutuavam no ar. Uma
sensação de ternura enlanguescia o ambiente, tornava-o mais sufocante. Todas
essas criaturas enlaçadas, na embriaguez do mesmo desejo, do mesmo pensamento
faziam correr um frêmito pelo ar. Todas essas carruagens, cheias de carícias,
deixavam à sua passagem uma emanação sutil e perturbadora.
Um tanto
fatigado da marcha, sentou-se Leras a um banco. “Antes eu não tivesse vindo!”
pensou. “Estou incomodado, aborrecido...”
E pôs-se a
pensar em todo esse amor, venal ou passional, em todos esses beijos, livres ou
pagos, que passavam diante dele.
O amor! ele
mal o conhecera! Só tivera na vida duas ou três mulheres, por acaso, de
surpresa. As suas posses não lhe permitiam aventuras. E pensava na vida que
levara, tão diferente da vida dos outros, na sua vida tão sombria e insípida,
estéril e vazia...
Há criaturas
que positivamente não têm sorte. E de repente, como se se houvesse rasgado um
denso véu, ele percebeu a miséria, a infinita, a monótona miséria da sua
existência: a miséria passada, a presente e a futura; os últimos dias em tudo
iguais aos primeiros, sem nada em volta dele, nada no coração, nada em parte
alguma, nada...
O destilar
dos carros continuava. E ele via sempre aparecerem e desaparecerem, na rápida
passagem do carro descoberto, os pares silenciosos e abraçados. Parecia-lhe que
a humanidade inteira desfilava diante dele, ébria de alegria, de prazer e de
felicidade. E ele sozinho a olhá-la, só, inteiramente só. E amanhã estaria
ainda só, isolado como ninguém no mundo...
Levantou-se,
deu alguns passos e bruscamente fatigado, como se acabasse de fazer uma longa
viagem a pé, caiu pesadamente sob o banco próximo.
Que esperava
ele? Nada! Pensava apenas que deve ser agradável, quando se é velho, achar, ao
entrar em casa, crianças que a papagueiam. É doce envelhecer quando estamos
cercados desses pequeninos entes que nos devem a vida, que nos amam e
acariciam, que dizem essas palavras ingênuas e encantadoras que reanimam o
coração e consolam de tudo...
E ao pensar
no seu quarto vazio, no seu pequeno quarto limpo e triste, onde só ele entrava,
uma sensação de agonia assaltou-lhe a alma. O seu quarto pareceu-lhe ainda mais
lamentável que o escritório.
Ninguém o
visitava, ninguém falava ali. Era um quarto morto, mudo, sem eco de voz humana.
Dir-se-ia que as paredes guardam qualquer coisa das pessoas que vivem entre
elas, qualquer coisa das suas atitudes, figuras, palavras. As casas habitadas
por famílias felizes são mais alegres do que as habitações dos miseráveis. O
seu quarto era vazio de recordações como a sua vida. E alarmou-o a ideia de
entrar sozinho nesse quarto, deitar-se na cama, repetir todos os movimentos e
todos os trabalhos costumeiros. E como para mais se afastar desse sinistro
aposento e da hora de para ele voltar, levantou-se e entrou pela primeira
alameda, para sentar se a relva.
Ouvia entorno,
no alto em toda parte, um rumor confuso, imenso, contínuo, feito de ruídos
internos e diferentes, um rumor surdo, próximo, distante, uma vaga e enorme
palpitação de vida: há o hálito de Paris, que respirava como um ser colossal.
***
O sol, já
alto, derramava uma onda de luz sobre o Bois
de Boulogne. Começavam a circular alguns carros e vários cavalheiros
chegavam alegremente.
Um casal ia
a passo por uma alameda deserta. Subitamente a moça, erguendo os olhos, viu um
vulto escuro nos galhos de uma árvore. Levantou a mão, admirada e inquieta:
Olha... que
é aquilo?
Depois, com
um grito, caiu desmaiada nos braços do companheiro.
Chamados os
guardas, estes retiraram dos ramos um velho enforcado nos suspensórios.
Verificou-se
que a morte ocorrera na véspera. Pelos papéis encontrados nos seus bolsos,
ficou apurado tratar-se do guarda-livros Leras, empregado da casa Labuze &
Cia.
A sua morte
foi atribuída a suicídio de causa ignorada. Talvez um súbito acesso de
loucura...
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