O luar, de Guy de Maupessant
Publicado originalmente no jornal "A Batalha", em sua edição de 15 de outubro de 1933. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Publicado originalmente no jornal "A Batalha", em sua edição de 15 de outubro de 1933. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Trazia muito
bem o seu nome de guerra o abade Marignan.
Era um
sacerdote esgalgado, severo, de alma exaltada e íntegra.
A sua crença
era profunda e inabalável. Tinha convicção de conhecer seu Deus, de
penetrar-lhe os desejos, a vontade, as intenções.
Quando, a
largos passos passeava na alameda do pequeno presbitério de aldeia, às vezes
uma interrogação se lhe levantava espírito: “Por que teria Deus feito isto?” E ele, obstinadamente procurava a resposta, tomando no próprio
pensamento o lugar de Deus, resposta que quase sempre encontrava. Jamais murmurou
num assomo de humildade: "Senhor, vossas intenções são
impenetráveis". Ao contrário, dizia: "Sou servo de Deus, devo-lhe,
pois, conhecer as razões de agir, e adivinhá-las se as desconheço.”
Tudo se lhe
figurava criado na natureza com uma lógica absoluta e admirável.
As perguntas
e respostas se equilibravam sempre. As auroras foram feitas para tornar alegres
o despertar, os dias para amadurecer as searas, as chuvas para regá-las, as
tardes para preparar a sono e as noites escuras para dormir.
As quatro estações
atendiam a todas as necessidades da agricultura. Jamais viera ao abade a dúvida
de que a natureza não tivesse intenções definidas e de que tudo o que vive não
se curvasse, ao contrário, às duras necessidades das estações, dos climas, da
matéria.
Mas ele
aborrecia a mulher, e a aborrecia inconscientemente e a desprezava por
instinto. Repetia, frequentemente a palavra de Cristo: “Mulher, que há do comum
entre mim e tu?” Dir-se-ia que o próprio Deus se sentiria descontente dessa
obra. A mulher era bem para ele a criança doze vezes impura, de que fala o
poeta. Ela era o tentador que arrastou o primeiro homem e que prosseguia sempre
na sua obra de danação, o ser frágil, perigoso, misteriosamente perturbador. E,
mais ainda, que o seu corpo de perdição lhe aborrecia a alma amorosa.
Em algum
momento havia sentido esta ternura feminina evolvendo-lhe, e, embora se
considerasse inexpugnável, exasperava-se com essa necessidade feminina de amar.
Para o abade,
Deus só criara a mulher para tentar e provar o homem. Só se lhe poderia
aproximar com precauções defensivas e os cuidados contra as ciladas. A mulher
é, de fato, como a própria cilada, com seus braços estendidos, e seus lábios
abertos para o homem.
Só era ele
indulgente para com as religiosas, cujos votos as tornavam inofensivas, às
quais, ainda assim, tratava rudemente.
***
Tinha o abade
uma sobrinha que vivia em companhia da mãe, em uma casa vizinha.
Esforçava-se
ele por fazer da moça uma irmã de caridade.
Ela era
bonita, folgazã e estouvada. Quando o abade lhe arengava conselhos, ela ria; o
quando se zangava, ela o beijava com veemência, apertando-o ao peito, enquanto
ele se esforçava instintivamente por se desvencilhar do abraço, que lhe
proporcionava uma doce alegria, despertando-lhe no íntimo, o sentimento de
paternidade latente em todo o homem.
Frequentemente
falava-lhe ele de Deus, de seu Deus, passeando ao seu lado pelos campos afora.
Ela, porém, não o ouvia e olhava o céu, as árvores, as flores, cheia de
felicidade de viver que se lhe lia aos olhos. Às vezes, atirava-se atrás de
algum inseto a voar e clamava ao apanhá-lo: “Olha tio, como é belo, tenho
ímpetos de beijá-lo”. E esta necessidade de beijar insetos ou fragmentos de
flores, inquietava, irritava, exasperava o padre, que vislumbrava nela essa
indeclinável ternura, que germina sempre no coração feminino.
Certo dia, a
mulher do sacristão, que cuidava da casa do abade Marignan, fez-lhe ciente, com
rodeios e circunlóquios de que a sobrinha tinha um namorado. O padre teve
formidável emoção e quase sufocou, com a cara ensaboada, pois, estava a se
barbear.
Acalmado, em
condições de refletir e de falar, fez ele: “Não é verdade, estás mentindo,
Melaine!”
A camponesa,
com a mão no peito, retorquiu:
“Que o Senhor
me condene, se minto sr. Cura. Afirmo-vos que ela vai encontra-lo todas as
noites, logo que vossa irmã se recolhe. Eles se encontram à margem do rio.
Podereis vê-los quando quiserdes, entre dez à meia-noite”.
O padre
deixou de escanhoar o queixo e pôs-se a andar violentamente de lado para o
outro, como fazia sempre nas horas de grave meditação. Quando quis recomeçar a
se barbear, cortou-se três vezes do nariz à orelha.
Durante o dia
todo permaneceu calado, cheio de indignação o de cólera.
Ao seu furor
de padre contra o amor invencível, somava-se uma exasperação de pai espiritual,
de tutor, de fiscal de alma, enganado, ludibriado, roubado por uma criança. Era
a exaltação egoística dos pais quando descobrem que a filha escolheu o esposo,
sem eles e contra a vontade deles.
Após o
jantar, tentou ler. Não o conseguiu. Cada vez mais se exasperava. Quando deu
dez horas, tomou da bengala, um formidável bastão de carvalho, que usava sempre
em suas saídas, à noite, quando ia ver algum doente, e pôs-se a olhá-lo a
sorrir, fazendo-o girar com o pulso forte de camponês em molinetes ameaçadores.
Súbito,
ergueu-o e, rangendo os dentes, desfechou-o sobre uma cadeira cujo espaldar,
fendido, estourou no soalho.
Abriu a porta
para sair. Entreparou, porém, ao limiar, deslumbrado pelo esplendor do luar
admirável e raro.
E como era
dotado de um espírito exaltado, um espírito como deveriam ter os doutores da
Igreja, esses poetas sonhadores, ficou subitamente absorto, comovido pela
grandiosa e serena beleza da noite pálida.
No seu
pequenino jardim, todo banhado de luz suavíssima, as árvores frutíferas, bem
alinhadas desenhavam seus membros esbeltos, apenas revestidos de folhagem, em
sombra sobre a alameda, enquanto a gigantesca madressilva, galgada sobre a
parede da casa, exalava um hálito delicioso, como que açucarado, fazendo
flutuar na noite tépida e clara uma espécie de alma perfumada.
Então a
respirar profundamente, bebendo o ar como os ébrios bebem vinho, pôs-se a andar lentamente, deslumbrado,
maravilhado, esquecendo quase a sobrinha.
Ao atingir à
campina, entreparou para contemplar toda a planície inundada daquela luz
cariciosa, afogada no encantamento terno e lânguido das noites serenas.
Os sapos de
instante a instante atiravam ao espaço sons secos e metálicos e longínquos
rouxinóis confundiam seus cantos debulhados, que fazem sonhar sem fazer pensar,
seus cantos ligeiros, e vibrantes, feitos para acompanhamento de beijos sob a
sedução do luar.
O abade
recomeçou a andar, com o coração apertado, sem saber bem porquê. Sentiu-se
extenuado, exausto. Tinha ímpetos de se sentar, de se deixar ficar a
contemplar, a admirar Deus na sua obra.
Lá embaixo,
acompanhando as ondulações do rio, serpejava uma grande linha de choupos. Uma
neblina fina como uma fumaça muito branca e transparente, que os raios da lua
atravessavam, prateando-a e a fazendo brilhar, mantinha-se suspensa sobre as
ribanceiras, envolvendo todo o curso sinuoso d’água de uma espécie de algodão
muito leve e translúcido.
O padre parou
novamente, entranhado até o fundo da alma por um enternecimento gradativo,
irresistível.
E, tomado de
profunda dúvida, uma vaga inquietação o invadiu. Sentiu levantar-se nele uma
dessas interrogações que a si mesmo se fazia, às vezes.
Porque Deus
teria criado semelhante noite, se estava destinada ao sono, à inconsciência, ao
repouso, ao esquecimento de tudo, por que fazê-la mais bela que o dia, mais
doce que as auroras e os crepúsculos e por que este astro lento e sedutor, mais
poético que o sol, e que parece predestinado, tão discreto é ele, a iluminar as
coisas por demais delicadas e misteriosas para a luz intensa, vem fazer tão
transparente as trevas?
Por que o
mais canoro dos pássaros cantores não repousa à noite como os demais e gorjeia
à sombra perturbadora?
Por que este
fino véu atirado ao mundo?
Por que esses
estremecimentos de coração, essa emoção da alma, esse enlanguescimento?
Por que esse
desdobrar de encantos que os homens não poderiam ver, já que eles repousavam em
seus leitos?
A quem é
destinado esse espetáculo sublime, essa exuberância de poesia que jorra do céu
à terra?
E o abade não
compreendia...
Mas, eis que
lá embaixo, à margem do prado, sob as abóbodas das árvores impregnadas de
orvalho brilhante, dois vultos aparecem andando lado a lado.
O homem, mais
alto, enlaçava o vulto feminino e de momento em momento, beijava-lhe a fronte.
Toda aquela
paisagem imóvel, que os envolvia, como um quadro divino, feito para eles, foi,
num ápice, por eles animado.
Os dois
pareciam um único ser, o ser para o qual fora feita aquela noite calma e
silenciosa; e eles vinham lentamente em direção ao padre, como se fossem uma
resposta viva que o Senhor atirasse à sua indagação.
O abade
permanecia de pé, o coração palpitando, desordenado, certo de que viu algo
bíblico, como os amores de Rute e de Boaz, o cumprimento de uma vontade do
Senhor em um dos seus grandes cenários de que falam os livros santos.
À cabeça
vertiginosa, vinham-lhe os versículos do Cântico dos Cânticos, os brados de
ardor, os apelos dos corpos, toda a poesia quente desse poema crepitante de
ternura.
E ele
balbuciou: "Talvez houvesse Deus feito essas noites para velar de ideal o
amor dos homens”.
Recuava,
então, sempre, diante do casal enlaçado, que andava sempre. Era, entretanto,
sua sobrinha. Mas, ele perguntava agora se não iria desobedecer a Deus. E, não
permite Deus o amor, se ele o cerca de tal esplendor?
E ele se foi,
estonteado, quase envergonhado, como se houvera penetrado em um templo onde não tinha o direito de entrar.
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