10/11/2016

O luar (Conto), de Guy de Maupassant



O luar, de Guy de Maupessant

Publicado originalmente no jornal "A Batalha", em sua edição de 15 de outubro de 1933. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)

Trazia muito bem o seu nome de guerra o abade Marignan.
Era um sacerdote esgalgado, severo, de alma exaltada e íntegra.
A sua crença era profunda e inabalável. Tinha convicção de conhecer seu Deus, de penetrar-lhe os desejos, a vontade, as intenções.
Quando, a largos passos passeava na alameda do pequeno presbitério de aldeia, às vezes uma interrogação se lhe levantava espírito: “Por que teria Deus feito isto?” E ele, obstinadamente procurava a resposta, tomando no próprio pensamento o lugar de Deus, resposta que quase sempre encontrava. Jamais murmurou num assomo de humildade: "Senhor, vossas intenções são impenetráveis". Ao contrário, dizia: "Sou servo de Deus, devo-lhe, pois, conhecer as razões de agir, e adivinhá-las se as desconheço.”
Tudo se lhe figurava criado na natureza com uma lógica absoluta e admirável.
As perguntas e respostas se equilibravam sempre. As auroras foram feitas para tornar alegres o despertar, os dias para amadurecer as searas, as chuvas para regá-las, as tardes para preparar a sono e as noites escuras para dormir.
As quatro estações atendiam a todas as necessidades da agricultura. Jamais viera ao abade a dúvida de que a natureza não tivesse intenções definidas e de que tudo o que vive não se curvasse, ao contrário, às duras necessidades das estações, dos climas, da matéria.
Mas ele aborrecia a mulher, e a aborrecia inconscientemente e a desprezava por instinto. Repetia, frequentemente a palavra de Cristo: “Mulher, que há do comum entre mim e tu?” Dir-se-ia que o próprio Deus se sentiria descontente dessa obra. A mulher era bem para ele a criança doze vezes impura, de que fala o poeta. Ela era o tentador que arrastou o primeiro homem e que prosseguia sempre na sua obra de danação, o ser frágil, perigoso, misteriosamente perturbador. E, mais ainda, que o seu corpo de perdição lhe aborrecia a alma amorosa.
Em algum momento havia sentido esta ternura feminina evolvendo-lhe, e, embora se considerasse inexpugnável, exasperava-se com essa necessidade feminina de amar.
Para o abade, Deus só criara a mulher para tentar e provar o homem. Só se lhe poderia aproximar com precauções defensivas e os cuidados contra as ciladas. A mulher é, de fato, como a própria cilada, com seus braços estendidos, e seus lábios abertos para o homem.
Só era ele indulgente para com as religiosas, cujos votos as tornavam inofensivas, às quais, ainda assim, tratava rudemente.
***
Tinha o abade uma sobrinha que vivia em companhia da mãe, em uma casa vizinha.
Esforçava-se ele por fazer da moça uma irmã de caridade.
Ela era bonita, folgazã e estouvada. Quando o abade lhe arengava conselhos, ela ria; o quando se zangava, ela o beijava com veemência, apertando-o ao peito, enquanto ele se esforçava instintivamente por se desvencilhar do abraço, que lhe proporcionava uma doce alegria, despertando-lhe no íntimo, o sentimento de paternidade latente em todo o homem.
Frequentemente falava-lhe ele de Deus, de seu Deus, passeando ao seu lado pelos campos afora. Ela, porém, não o ouvia e olhava o céu, as árvores, as flores, cheia de felicidade de viver que se lhe lia aos olhos. Às vezes, atirava-se atrás de algum inseto a voar e clamava ao apanhá-lo: “Olha tio, como é belo, tenho ímpetos de beijá-lo”. E esta necessidade de beijar insetos ou fragmentos de flores, inquietava, irritava, exasperava o padre, que vislumbrava nela essa indeclinável ternura, que germina sempre no coração feminino.
Certo dia, a mulher do sacristão, que cuidava da casa do abade Marignan, fez-lhe ciente, com rodeios e circunlóquios de que a sobrinha tinha um namorado. O padre teve formidável emoção e quase sufocou, com a cara ensaboada, pois, estava a se barbear.
Acalmado, em condições de refletir e de falar, fez ele: “Não é verdade, estás mentindo, Melaine!”
A camponesa, com a mão no peito, retorquiu:
“Que o Senhor me condene, se minto sr. Cura. Afirmo-vos que ela vai encontra-lo todas as noites, logo que vossa irmã se recolhe. Eles se encontram à margem do rio. Podereis vê-los quando quiserdes, entre dez à meia-noite”.
O padre deixou de escanhoar o queixo e pôs-se a andar violentamente de lado para o outro, como fazia sempre nas horas de grave meditação. Quando quis recomeçar a se barbear, cortou-se três vezes do nariz à orelha.
Durante o dia todo permaneceu calado, cheio de indignação o de cólera.
Ao seu furor de padre contra o amor invencível, somava-se uma exasperação de pai espiritual, de tutor, de fiscal de alma, enganado, ludibriado, roubado por uma criança. Era a exaltação egoística dos pais quando descobrem que a filha escolheu o esposo, sem eles e contra a vontade deles.
Após o jantar, tentou ler. Não o conseguiu. Cada vez mais se exasperava. Quando deu dez horas, tomou da bengala, um formidável bastão de carvalho, que usava sempre em suas saídas, à noite, quando ia ver algum doente, e pôs-se a olhá-lo a sorrir, fazendo-o girar com o pulso forte de camponês em molinetes ameaçadores.
Súbito, ergueu-o e, rangendo os dentes, desfechou-o sobre uma cadeira cujo espaldar, fendido, estourou no soalho.
Abriu a porta para sair. Entreparou, porém, ao limiar, deslumbrado pelo esplendor do luar admirável e raro.
E como era dotado de um espírito exaltado, um espírito como deveriam ter os doutores da Igreja, esses poetas sonhadores, ficou subitamente absorto, comovido pela grandiosa e serena beleza da noite pálida.
No seu pequenino jardim, todo banhado de luz suavíssima, as árvores frutíferas, bem alinhadas desenhavam seus membros esbeltos, apenas revestidos de folhagem, em sombra sobre a alameda, enquanto a gigantesca madressilva, galgada sobre a parede da casa, exalava um hálito delicioso, como que açucarado, fazendo flutuar na noite tépida e clara uma espécie de alma perfumada.
Então a respirar profundamente, bebendo o ar como os ébrios bebem vinho,  pôs-se a andar lentamente, deslumbrado, maravilhado, esquecendo quase a sobrinha.
Ao atingir à campina, entreparou para contemplar toda a planície inundada daquela luz cariciosa, afogada no encantamento terno e lânguido das noites serenas.
Os sapos de instante a instante atiravam ao espaço sons secos e metálicos e longínquos rouxinóis confundiam seus cantos debulhados, que fazem sonhar sem fazer pensar, seus cantos ligeiros, e vibrantes, feitos para acompanhamento de beijos sob a sedução do luar.
O abade recomeçou a andar, com o coração apertado, sem saber bem porquê. Sentiu-se extenuado, exausto. Tinha ímpetos de se sentar, de se deixar ficar a contemplar, a admirar Deus na sua obra.
Lá embaixo, acompanhando as ondulações do rio, serpejava uma grande linha de choupos. Uma neblina fina como uma fumaça muito branca e transparente, que os raios da lua atravessavam, prateando-a e a fazendo brilhar, mantinha-se suspensa sobre as ribanceiras, envolvendo todo o curso sinuoso d’água de uma espécie de algodão muito leve e translúcido.
O padre parou novamente, entranhado até o fundo da alma por um enternecimento gradativo, irresistível.
E, tomado de profunda dúvida, uma vaga inquietação o invadiu. Sentiu levantar-se nele uma dessas interrogações que a si mesmo se fazia, às vezes.
Porque Deus teria criado semelhante noite, se estava destinada ao sono, à inconsciência, ao repouso, ao esquecimento de tudo, por que fazê-la mais bela que o dia, mais doce que as auroras e os crepúsculos e por que este astro lento e sedutor, mais poético que o sol, e que parece predestinado, tão discreto é ele, a iluminar as coisas por demais delicadas e misteriosas para a luz intensa, vem fazer tão transparente as trevas?
Por que o mais canoro dos pássaros cantores não repousa à noite como os demais e gorjeia à sombra perturbadora?
Por que este fino véu atirado ao mundo?
Por que esses estremecimentos de coração, essa emoção da alma, esse enlanguescimento?
Por que esse desdobrar de encantos que os homens não poderiam ver, já que eles repousavam em seus leitos?
A quem é destinado esse espetáculo sublime, essa exuberância de poesia que jorra do céu à terra?
E o abade não compreendia...
Mas, eis que lá embaixo, à margem do prado, sob as abóbodas das árvores impregnadas de orvalho brilhante, dois vultos aparecem andando lado a lado.
O homem, mais alto, enlaçava o vulto feminino e de momento em momento, beijava-lhe a fronte.
Toda aquela paisagem imóvel, que os envolvia, como um quadro divino, feito para eles, foi, num ápice, por eles animado.
Os dois pareciam um único ser, o ser para o qual fora feita aquela noite calma e silenciosa; e eles vinham lentamente em direção ao padre, como se fossem uma resposta viva que o Senhor atirasse à sua indagação.
O abade permanecia de pé, o coração palpitando, desordenado, certo de que viu algo bíblico, como os amores de Rute e de Boaz, o cumprimento de uma vontade do Senhor em um dos seus grandes cenários de que falam os livros santos.
À cabeça vertiginosa, vinham-lhe os versículos do Cântico dos Cânticos, os brados de ardor, os apelos dos corpos, toda a poesia quente desse poema crepitante de ternura.
E ele balbuciou: "Talvez houvesse Deus feito essas noites para velar de ideal o amor dos homens”.
Recuava, então, sempre, diante do casal enlaçado, que andava sempre. Era, entretanto, sua sobrinha. Mas, ele perguntava agora se não iria desobedecer a Deus. E, não permite Deus o amor, se ele o cerca de tal esplendor?

E ele se foi, estonteado, quase envergonhado, como se houvera penetrado em um  templo onde não tinha o direito de entrar.

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