“O Ateneu” — Raul Pompeia
Escrito por Nunes Vidal e publicado em 1906. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Quando li pela primeira vez o Ateneu, eu teria vinte anos, no máximo. Hoje trago talvez mais dez anos do que o autor no momento em que o produziu. Quer dizer que não só passei pela mesma quadra, como até já estou do outro lado da vida.
Escrito por Nunes Vidal e publicado em 1906. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Quando li pela primeira vez o Ateneu, eu teria vinte anos, no máximo. Hoje trago talvez mais dez anos do que o autor no momento em que o produziu. Quer dizer que não só passei pela mesma quadra, como até já estou do outro lado da vida.
Além disso,
o modo de escrever varia muito com os anos, e com ele a escolha dos assuntos.
Lendo-se este livro agora, sente-se que, se Raul vivesse hoje e tivesse a idade
de então, já o trabalharia um pouco por outra forma, caso sentisse o impulso
necessário para fazê-lo.
Assim,
estabelece-se a distância duplamente: hoje, nós outros estamos mais velhos do
que era aquele raro escritor no momento em que produziu o melhor dos seus
livros; mas por outro lado sua obra aos nossos olhos já não pôde deixar de ter
qualquer coisa de pretérita.
Felizmente
um e outro fato ocorrem simultâneos apenas em certo grau, até onde basta para
nos tornar capazes de julgar serenamente, mas de modo algum com a frieza de uma
admiração apenas retrospectiva.
De princípio
a fim, estas quase trezentas páginas do Ateneu
ainda hoje nos empolgam na segunda leitura como um excelente volume que nunca
nos tivesse passado pelas mãos. Empolgam-nos e mesmo nos deslumbram. Apenas o
que se dá ê que não chegam ao ponto de conturbar-nos, como acontecera da
primeira vez.
Pelo
contrário, surpreende-nos o fato de irmos vendo tão claramente e tão
serenamente tudo, como se hoje nos favorecesse uma outra luz, mais estável e
reveladora.
É que, além
de já nos havermos encontrado uma vez com estas páginas, andamos numa demorada
convivência com as obras suas coetâneas, que não podem deixar de oferecer maior
ou menor correlação com ela.
Voltados que
somos ao Ateneu agora, ele nos
proporciona ouvir já saudosamente o eco de coisas que amamos, com ardor, há dez
ou quinze anos atrás.
No sistema
de ideias do autor deste livro, nos pontos de vista que o mesmo elege, no seu
processo de exposição, já começamos a vê-lo menos singularmente, a ele, do que
todos os espíritos analíticos e ironistas, atormentados lavoradores da frase,
que foram os seus legítimos contemporâneos. São ideias e fôrma vividas no que
puderam ser comuns a uma geração.
Basta isso
para tornar o livro menos carregado de efeitos um pouco, para lhe dar certa
dose de lugar comum, coisa de que todas as obras precisam a fim de se tornarem
acessíveis, humanas, razoáveis.
Não só vamos
olhando serenamente para um e outro lado, como até mesmo acontece que uma ou
outra vez já nos permitimos sorrir levemente com a fácil superioridade ordinária
nos que olham para um retrato que já não registra rigorosamente a última moda.
Nesta épura
de tendências prosaicas, em que o presidente Roosevelt não é só quase que o
árbitro da política mundial, mas até influi no estilo, já se vai tendo por um
pouco ingênua aquela fôrma veneziana, cheia de variegadas lanternas esféricas,
de fiam mulas e galhardetes, que os adjetivos policromos, as antíteses, os
tropos irônicos e as figuras espirituosamente locadas representam, festivos e
coruscantes, nas páginas características da vintena em que elas lograram
incontestável primado.
Também a
tendência revolucionária da época, o amor sistemático à iconoclacia, revelado
em cada uma das páginas do Ateneu, já
hoje não nos arrasta de modo tão incondicional como antes, particularmente aqui
no Brasil. O prurido daqueles tempos já produziu os seus efeitos, e de tal modo
que hoje os espíritos, na sua maioria, antes se inclinam para uma aspiração,
pelo menos até certo ponto, oposta às ideologias do passado; sentem, antes,
necessidade de ser mais caracteristicamente construtores.
Quando Raul
Pompeia compôs este seu livro, que representa uma crítica a determinada casa de
ensino, a atmosfera oferecia-se-lhe tão favorável, que ele foi, por assim
dizer, um órgão eventual da opinião avançada.
O fato
principalmente de representar aquele instituto como que um ramo oficioso do
edifício político então vigente, fazia com que os espíritos revolucionários da
época englobassem-no, sem mais exame, na condenação votada ao regime.
Vão longe
esses tempos agora, e quem relê presentemente as páginas do Ateneu, severas, mesmo apaixonadamente
tendenciosas, se o quiserem, mas enfim honestas, como boa pintura que
ambicionavam ser, há de concordar que essa catilinária de outros tempos vale
hoje por um elogio ao objeto das suas abjuratórias, porque proporciona a
comparação entre o que por essa época se conseguira organizar e os tristes
desmanchos e desmantelamentos que ora por toda parte, em matéria de ensino, é o
que mais ou menos se vê.
Como fica
patente, já é forçoso fazer todos estes descontos em desfavor do Ateneu. Tivesse sido ele apenas um livro
de moda, na fôrma e no fundo, produto de um espírito brilhante, mas
superficial, sem apoio no que se pôde chamar propriamente uma natureza, quer
dizer uma organização capaz de apreender o definitivo, o imutável que há no
homem e nas coisas, e já seria este um livro morto, antes de ter desaparecido a
geração dos homens com que coincidiu sua vinda.
Mas
sobretudo há nele duas qualidades que representam o segredo de sua resistência
e de seu frescor: são a mocidade exuberante e a força segura, que o soergueram
era seu plano e da primeira à última página sustentaram, sem um delíquio, toda
a sua composição.
Mesmo para
quem já conhecia o Ateneu, ainda
neste volver de agora, que a segunda edição proporcionou, cada nova página que
em sequência da que já foi lida nos cai sob a vista, é uma deliciosa surpresa.
De certo
ponto em diante, não se pede mais, porque já se vem plenamente satisfeito, e,
no entanto, a prodigalidade continua, sem intermitências, sem falha, continua
sempre, dando-nos o livro por fim a ilusão do inesgotável, confundindo-se com o
prodigioso da própria natureza.
É como se o
autor tivesse passado anos e anos numa inibição forçosa, acumulando por
compressão, vivendo e tendo de calar as impressões da vida, mas necessitado
como ninguém de uma viva representação, até que enfim o interdito caduca e tudo
quanto se acumulara cachoeira e borbulha, transfigurado nas páginas ardentes
daquele livro.
É da esplêndida
mocidade, que estua nele feraz, que irradia principalmente essa prodigiosa
profusão de recursos.
Até parece
que na proporção em que ia sendo feita a obra, as páginas já escritas passavam
a ser lidas em um cenáculo de moços contemporâneos do autor, alguns deles quiçá
seus companheiros desde os bancos do Ateneu. Assim parece, a grande,
irresistível jovialidade que ressumbra daquelas páginas sendo destas que quase
só se compreendem inspiradas na vida coletiva dos clãs intelectuais.
Ao par de
tamanha abundância e tanto ardor, uma segurança e firmeza de espírito, na
verdade surpreendente em tão verdes anos, e que só se explica pelo efeito
revulsivo e sazonante de uma intensa cultura. Nas passagens as mais difíceis,
quando se julga que o escritor não poderá conservar o sentimento da justa
medida, ei-lo que em tempo faz estacar a pena, como se refreia um ginete, e em
lugar do excesso que receávamos aflora apenas um irônico sorriso, inteligente e
de bom gosto.
Depois, tudo
trabalhado magistralmente, com o capricho dos orgulhosos, que não cabeceia
nunca, e sem as naturais hesitações, o tartamudear intermitente dos estreantes
em geral.
Se a obra
peca, revelando, apesar de tudo, a sua juvenilidade, é justamente por esta
razão oposta, pelo esforço algo demasiado que representa, e que trai. Diz
Nietzsche que os melhores produtos de arte são aqueles em que apenas se
despendem dois terços de força. Um autor deve sempre dar a impressão de que com
ele ficou bem mais do que o muito que se possa encontrar no seu livro.
Seja como
for, o Ateneu fica e ficará na nossa
literatura como uma obra de excepcional talento, de raro entusiasmo intelectual
e de um esmero que entre nós ainda ninguém excedeu.
O brasileiro
que lê um livro como este tem o direito de ganhar um pouco de confiança na
raça, de firmar-se na crença de que, mau grado tudo, nós somos capazes de alguma
coisa.
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