A tristeza de ser feia, de Máximo Górki
Tradução: L. de Freitas.
Contou-me num domingo este episódio do seu tempo de estudante. Na casa em que morava, em Moscou havia outro hóspede. Era uma mulher, natural da Polônia, e de nome Teresa. Alta, robusta, morena, sobrancelhas unidas, rosto grande e vulgar, como talhado de um só golpe, olhos escuros e modo de olhar severo; voz de baixo, gestos de cocheira. A sua musculosa compleição de carreteiro formava um conjunto que amedrontava francamente.
Nossos aposentos fronteavam,
um do outro. Eu tinha o cuidado de abrir a porta enquanto ela não saísse, o que
acontecia raras vezes.
Com frequência encontrava-a na
escada ou no pátio; então ela sorria de um jeito que me parecia bastante sem
pudor. Outras vezes a vi entrar com os olhos injetados de sangue, as pálpebras
avermelhadas, o cabelo despenteado. Era quando me olhava impudicamente.
— Bons dias, senhor estudante, costumava
dizer, e ria como se estivesse louca. Isto aumentava a repulsa que ela me
causava.
Pensei mudar de casa para
evitar estes encontros e saudações; porém a minha instalação era confortável. Tinha
vista magnífica, a rua tranquila e passava mais tempo a percorrê-la do que a
permanecer em casa.
Uma manhã, achava-me vestido e
recostado sobre o leito, a pensar em algum pretexto para não ir à aula; quando abriu-se
a porta e apareceu Teresa, saudando-me com sua voz grosseira:
— Bons dias, senhor estudante!....
— O que você deseja? Perguntei.
A sua fisionomia apresentava um todo de timidez como eu nunca vira.
— Senhor estudante, eu queria pedir-lhe
um favor. Suplico... Não recuse.
Fiquei sem responder, na mesma
posição de quem pensava... É algum pretexto. Quererá seduzir-me; nada mais.
Serei forte.
— Eu queria expedir uma carta
para minha terra.
E continuou a olhar-me com uma
expressão suave e súplice. Num ímpeto, saltei da cama, fui à mesa, apanhei uma
folha de papel e disse-lhe:
— Entre, sente-se e dite-me a
carta.
Teresa aproximou-se, olhando-me com firmeza. Tornei
a dizer-lhe: a quem quer você escrever.
— A Boleslau Kachepont,
residente em Swenziani, E. F. de Varsóvia.
— Diga, o que devo escrever...
— “Meu caro Boleslau, ela começou. Meu, adorado! Que a virgem te proteja. Querido meu, por que não me escreves há tanto tempo? Tua Teresa que está sempre contristada.”
Sentir não poder conter o
riso, pois não podia conceber aquele "pássaro" de um metro e meio de
estatura, grande robustez, punhos e mãos fortíssimas, rosto escuro como se não
tivesse saído nunca de alguma chaminé fumarenta, porém, perguntei: — quem é este
Boleslau?
— Ah! Sr. estudante: Boleslau
é meu noivo, respondeu estranhando que eu não soubesse, ou mesmo que não fosse possível
conhecê-lo.
— Noivo?
— E, por que não, ela
continuou dizendo: então uma moça como eu não terá um noivo?
Teresa, uma noiva, que horror!
— Não quero dizer que não. Tudo é possível, diga-me a quanto tempo está noiva?
— Seis anos...
Por fim, escrevi a carta
desejada e com expressões enternecidamente amorosas, preferindo que fosse outra
mulher que a assinasse.
— Agradeço-lhe de todo o meu coração;
disse-me ela, e se lhe puder ser de utilidade, disponha de mim.
— Muito agradecido.
— Senhor estudante, eu podia costurar o sou vestuário, passar a ferro a roupa branca.
A diabólica mulher
exasperava-me. Respondi aborrecido que não precisava disso e cortei a conversa.
Ela saiu. Decorreram duas semanas.
Veio uma tarde muito fria. Na rua a temperatura era para os lobos, eu não me
dispunha a ir a lugar algum e comecei a analisar-me. Como distração isto era aborrecimento,
porém depois de tudo eu nada mais tinha de que me ocupar, quando de repente abriu-se
a porta do meu quarto. — Ora graças a Deus, pensei, vem alguém aqui.
— Está muito ocupado, o senhor
estudante?
Que maldição!... Era Teresa, preferia
continuar só.
— E, por que não? Ela suplicava-me
para escrever outra carta.
— Para Boleslau?
— Não, ao contrário...
— Como?
— A sua resposta.
— Ah! como sou atordoada! Expliquei-me
mal, desculpe-me. Não é para mim, é para uma das minhas amigas. Não é isto,
digo melhor, um conhecido, um amigo, que não pode escrever. Como eu tem
noiva... Sou eu, Teresa...
Olhei-a fixamente. Estava
envergonhada, seus dedos tremiam. Ela falava confusamente, julguei adivinhar.
— Ouça-me, senhorita. Tudo o
que você me conta de Teresa e de Boleslau é pura fantasia, você mente. Nada tem
que fazer aqui. Não quero que prolongue a nossa amizade. Entendeu?
Teresa enrubesceu, seus lábios
e os seus dentes tremiam, como se quisesse falar e sem que pudesse.
Convenci-me de que enganado tentara
apartar-me do bom caminho. Parecia que algum mistério evolvia-lhe a vida. Qual
seria?
— Senhor estudante, começou
Teresa dizendo. E fez um súbito movimento com o braço, voltou-se e saiu!...
Fiquei quieto, impressionado. Percebi
que se fechava a porta com violência. Decerto que Teresa se zangara. Refleti um
instante, deliberei ir ao seu aposento escrever o que ela quisesse, pois me causava
pena.
— Entrei na sua habitação e surpreendi
Teresa sentada junto da mesa, o rosto oculto entre as mãos.
— Ouça-me, disse-lhe, então
você...
Ela ergueu-se ligeira e, aproximou-se
de mim encostando as mãos sobre os meus ombros, e disse a soluçar:
— Bom! O que vai acontecer com
isto?... Tanto esforço para escrever poucas linhas... Sim, o senhor, que me parecia
tão bom... E que Boleslau e Teresa sejam fantasia, e por quê?
— Então, é assim?... disse-lhe
contraído, Boleslau não existe?
— Não... É que!...
— Teresa também não existe?...
— Não!... mas, Teresa sou eu.
— Eu mesmo! cada vez eu compreendia
menos. Contemplava o seu olhar alucinado sem adivinhar qual de nós estava perturbado.
Depois ela abriu a gaveta da mesa o revolveu-a até achar um papel para esclarecer-me.
— O senhor, desde que não me quis
escrever a segunda carta levará a que eu escrevi. Outras pessoas mais caridosas
fizeram o que lhes pedi. — Então era só isto?... E Teresa tremia, tendo na mão a
carta que eu escrevera a Boleslau...
Senhor, senhor....
— Diga-me, Teresa, o que vem a
ser tudo, isto? Por que pedir a outros que escrevam se não expedes as cartas?
— E para onde quer o senhor
que as expeça?
— Oh! para esse Boleslau, o
teu noivo...
Mas ele não existe!... Eu é
que fiquei sem entender nada do que havia na ideia desta mulher.
Pensava sair, quando Teresa explica-me.
— Em verdade ele não existe. E
levantava os seus braços para o céu, como se não compreendesse porque não
existia o noivo... Queria que existisse, porque era um ser humano como os
outros. É verdade que sou... Que mal posso fazer escrevendo-lhe?
— A quem?... a Boleslau!
— Sim a ele mesmo.
— Mas que diabo! você mesmo disse
que ele não existe...
— Oh! Deus meu, o que impedirá
que não exista? Ninguém!... Imagino que há um Boleslau e escrevo-lhe cartas, como
se verdadeiramente existisse!... Eu sou Teresa. Ele responde, e eu torno a
escrever para que me responda outra vez.
Afinal compreendi tudo. Fique penalizado,
uma profunda angústia dominava-me o sentimento. A dois passos de mim estava um ser
humano que não tinha ninguém para lhe demonstrar afeição.
Nem um parente nem um amigo.
Este ser humano inventou um noivo! Eu lhe escrevi uma carta; ela pedia à outra
pessoa que a lesse. Enquanto ouvia, mais se convencia da existência de Boleslau
e que ele a amava; pedia que lhe respondesse.
Depois da leitura, absolutamente,
Teresa, não duvidava que ele vivesse. Era graças a isto que a vida lhe parecia
tão dura, horrível e dolorosa.
Desde aquele dia, escrevia duas
vezes por semana a Boleslau e as suas respostas.
Asseguro que fazia isto bem feito,
com expressão de carinho... Ela ouvia a leitura e chorava.
Três meses depois, Teresa foi recolhida
ao cárcere. Não sei porquê! Agora já deve estar morta.
“Correio da Manhã”, 1931.
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