9/21/2017

50$000 de gratificação(Conto), de Raul Pompeia


50$000 de gratificação

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Fugiu no dia 11 do corrente o escravo Lino, pardo claro, de 27 anos de idade pouco mais ou menos, estatura regular, bons dentes, porém maltratados, pequenos bigodes e alguns cabelos no queixo, tem o olhar vivo, unhas roídas e é atrevido. É muito conhecido por ser cocheiro há muitos anos do Dr. Peçanha. Levou calça branca, paletó de brim pardo, chapéu preto pequeno e anda às vezes calçado.
Protesta-se com o vigor da Lei contra quem o açoitar e gratifica-se com a quantia acima a quem prendê-lo e levá-lo à alguma estação policial ou à casa de seu Senhor, Rua do... N...
Senhor Anunciante.
Mirando-me ao espelho, reconheci, no frontispício da minha obscura cabeça, os vigorosos traços descritivos, com que encheu este anúncio a pena abalizada do seu anônimo e simpático escritor. Linha por linha, incidente por incidente, lá vem a minha fotografia. Isso não é um anúncio, é um retrato! Mirando-me ao espelho e no anúncio, entrei a hesitar, até, sem saber qual dos dois era o anúncio e qual era o espelho...
"Pardo claro..." Sou pardo claro.
Quando Deus pintou-me, por sinal estavam no atelier, à espera da sua brochadela, alguns companheiros, que, mais tarde, no mundo foram exaltados pelo destino, aos quais, à medida que subiram na escala da grandeza, foi-se-lhe o colorido gastando, de sorte que não são mais, agora, os pardos claros que nasceram... Eu, infelizmente, fiquei tal qual.
"27 anos..." É a minha idade.
"Estatura regular..." Bem regular... gabo-me disso.
"Bons dentes..." Oh! obrigado! Isso me lisonjeia em extremo...
"Porém maltratados..." Lá isso, protesto!... Eu não sou porco!... Aqui há engano com certeza... Sempre tratei carinhosamente a minha dentadura!
"Pequeno bigode..." Sim senhor, não é muito grande.
"Alguns cabelos no queixo... Justinho! Rari nantes...
"O olhar vivo..." Apoiado! Vivíssimo!... Olho vivo é a melhor regra de bem viver.
"Unhas roídas!..." Roídas! que horror! Trago-as simplesmente aparadas rente. Há sempre um meio de se obscurecer, na linguagem, os predicados alheios. Aparada rente é a nossa unha roída, roída a unha aparada dos outros.
"Atrevido..." Com licença: atrevido é mais quem chama.
Verificada a identidade dos tipos, vamos ao resto do anúncio.
"É muito conhecido por ser cocheiro há muitos anos...” Oh, qualidade rara!... "do Dr. Peçanha..."
Exatamente! Sou muito conhecido. O Larousse cita-me o glorioso nome, no volume da letra L. E com razão! eu guiava certo as minhas parelhas, em direção à Posteridade, quando a conveniência urgente de tomar ares obrigou-me a cortar a bela carreira. Apesar disso, o anúncio não mente. Sou na verdade conhecido, sou um homem universalmente popular! Dou-me muito com o Pão de Açúcar; o Corcovado fala comigo; já tive estreitas relações com o Himalaia; a coluna Vendome, quando me vê, cumprimenta-me; as pirâmides tiram-me o chapéu; as esfinges já me ofereceram cigarros uma vez; os crocodilos da Índia têm sorrisos amáveis para mim, pedem-me fogo com intimidade... Quanto aos homens, não falemos. O meu nome monopoliza perpetuamente a atenção do público, no Cairo, em Malta, em Nazaré, no Egito...
Este precioso anúncio, que me chegou às mãos inesperadamente, veio despertar-me saudades do Rio de Janeiro. Neste remoto asilo da paz onde habito, só muito raro chegam notícias do bulício do mundo. Planto café e gozo a existência bucólica e sossegada de quem tem certeza de que não faltam céus nem serras para a vida. A sede do ouro não me exaspera a garganta.
Este anúncio, todavia, que me veio lembrar a grande corte, abriu-me um pouco o apetite do ganho.
Pensei num negócio e o proponho.
Se os 50$ são oferecidos em letras gordas a quem me pagar, metade, pelo menos, o amável anunciante cederá, sem dúvida, àquele que disser ao certo o lugar onde me acho.
Vou informar eu mesmo. Tenho direito à gorjeta. Mande-a pelo correio.
Estou no Ceará, vulgo Terra da luz!
Acoutou-me a hospitaleira serra de Baturité. Proteste-se contra ela com todo o rigor da chapa.
E olha esse cobre que saia!
Serra de Baturité... de... de 1885.
Lino, agricultor.
Chegou do Norte a esta folha essa curiosa carta acompanhada do anúncio transcrito. Vinha no envelope um pedido de publicação; publico a cópia fiel.
O referido anúncio é um avulso que se distribuiu há tempos, nesta cidade, sem responsabilidade do autor, sem declaração de tipografia, à maneira desses pobres papéis pornográficos impressos que conhecem o seu estado e não o lamentam como Nise.

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