9/21/2017

A andorinha da torre (Conto), de Raul Pompeia


A andorinha da torre

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Cada um tem no seu espírito as suas recordações, classificadas, arranjadas, superpostas, as mais recentes por cima, as mais antigas por baixo, numa ordem admirável, que apenas ligeiramente é perturbada pelo decurso de um grande tempo, suprimindo-se algumas lembranças ou deslocando-se outras. Basta, porém, que uma causa desperte a adormecida reminiscência, para que venha por assim dizer, à tona do espírito a mais antiga imagem do passado. Esta causa pode ser qualquer, uma harmonia que se ouviu outrora e que novamente se ouve, um lugar por onde algum dia, passou-se e que se torna a ver, um painel, uma voz, uma fisionomia, um aspecto... que lembram-nos pela semelhança ou pelo contraste um aspecto, uma fisionomia, um painel que noutro tempo nos impressionaram...

Sempre que ouço a música de bronze que as torres derramam pelo espaço, turbilhões de uma sonoridade grave, solene, religiosa, ou alegres, esfuziadas, frescas e agudas como gritos de criança, caprichosas e várias como voos de andorinha; sempre que chega-me a voz dos sinos, cantando saudosamente na linha azul do horizonte, como um vago salmear flutuando ao vento, não é da missa que eu me lembro, nem das suntuosidades católicas de veludo franjado a ensanefarem as arcarias do templo; nem da fita de fumo com que o turíbulo vai escrevendo coisas fantásticas no ar; nem do dorso do padre recamado de florões de ouro sobre cetim branco ou roxo; nem da coroinha feita a navalha, redonda como as hóstias mostrando a pele branca veiada de azul, que sobe e desce, à medida que dobram-se ou levantam-se as reverências do oficiante; o sino de nada disso me faz lembrar, nem mesmo das carinhas pálidas das meninas que cantam ao coro, nem do semblante desenxabido e choramingas das santas de pau mal talhado...

Desde muito tempo que o serviço da torre da Igreja de X estava confiado ao velho Emílio...

Era aquele homem de barbas longas e brancas, espécie dessas figuras com que se costuma fazer a imagem mítica dos grandes rios, era aquele velho que via-se de tarde, à janela da torre sob a cúpula enorme do sino grande, olhando vagamente para o espaço, sem dar atenção ao burburinho da cidade, que circulava nas ruas lá embaixo...

Os mais antigos moradores do lugar lembravam-se de que Emílio fora sempre o mesmo homem de barbas longas e brancas, o mesmo, como a ruína consagrada pelo tempo, que nunca fica mais velha. Respeitava-se muito ao velho sineiro. Era o mais honrado dos homens e, além disso, era o avô da mais galante criança que se tem visto.

Por aqueles cinco quarteirões em volta não havia quem não gostasse da andorinha da torre. Festejavam-na muito, davam-lhe doces e beijos que não havia mãos a medir; sentiam só que ela fugisse tanto a meter-se na torre com o avô e esquecesse pelos velhos amigos de bronze que moravam lá no alto as pessoas da cidade que tanto a queriam.

Mas como havia de ser se ela amava perdidamente os seus sinos e o seu avô?... Achava os sinos frios demais e pachorrentos como uns homens de idade, mas, em compensação, admirava-os, quando vovô Emílio despertava-lhes a sanha e os fazia pularem, voltearem como clowns, precipitarem-se no espaço como se fossem desabar e ressurgirem para o alto, com a boca largamente aberta, como um sorriso de gigante satisfeito.

Pareciam mudos, no silêncio do repouso, como pareciam imóveis e inabaláveis; a um gesto, entretanto, do velho Emílio, toda aquela imobilidade movia-se em viravoltas céleres e vertiginosas, toda aquela mudez vociferava, em sonorosos estampidos e envolvia a torre numa trovoada de harmonias gigantescas.

A pequena Rita admirava os sinos. Esta admiração transformava-se em amorosa simpatia. Estranhava no fundo do espírito aqueles monstros boquiabertos que sabiam ser igualmente a imobilidade e o turbilhão, o silêncio e a trovoada; ajudava o avô a tratá-los, limpar-lhes o bojo profundo e escuro, clarear-lhes os dourados de fora, esgravatar-lhes os interstícios dos relevos que os enfeitavam...

Havia amor de família naquele pequeno mundo que vivia na torre.

Uma vez, na Semana Santa de 18... a pequena Rita, a andorinha da torre (como lhe chamavam, pelo seu costume de passar os dias no alto da igreja em companhia de Emílio) adoeceu gravemente.

Caiu de cama, prostrada por uma violenta febre, na quarta-feira de trevas; exatamente quando emudecem os sinos.

Do quarto onde ela estava, na casinha do avô que ficava a trinta passos da igreja, via-se por cima dos telhados o perfil a prumo da torre. Rita, aos intervalos da febre, olhava com saudade para a janela do sino grande, onde tantas vezes estivera a seguir com os olhos a revoada dos passarinhos, que cortavam o ar de mil modos e enfiavam-se por um lado da torre para sair pelo outro, gorjeando risadas joviais.

Sofria a nostalgia da altura e do horizonte imenso; queria tornar a ver de perto os queridos sinos.

Por maior infelicidade, havia dois dias que os sinos conservavam-se desesperadamente calados...

Emílio não saía um só instante da cabeceira da doente. Apavorava-o a ideia de perder aquela criança, que era a recordação viva da filha e do genro que a fatalidade lhe roubara. Este pensamento enlouquecia-o.

No Sábado de Aleluia, Rita sentiu-se extraordinariamente bem. Sentou-se no leito, para ver melhor a torre...

Uma alegria sobretudo agitava-a deliciosamente.

O sacristão viera prevenir o avô de que a Aleluia romperia ao meio-dia em ponto e que era necessário que o velho fosse tomar o seu posto.

Rita ia ouvir novamente a voz dos sinos!...

Certo de que eram reais as melhoras da netinha, tranquilizado pela afirmação de um médico que dissera que a menina estava salva, sorrindo à ideia de que a neta se havia regozijar com os repiques da Aleluia, o velho Emílio beijou amorosamente a testa da criança, deixou-a entregue aos cuidados de uma boa mulher que lhe fazia de caseira e foi alojar-se na torre.

Da janela do sino grande, avistava o interior da área da sua casinha e a janela do quarto de Rita.

A vidraça descida e o escuro do aposento não permitiam que ele distinguisse o leito da neta. Emílio estava, entretanto a vê-la com todos os seus sorrisos bons e brandos; parecia-lhe até que ela acenava-lhe para romper a Aleluia antes da hora.

Eram onze horas e meia. Emílio estava impaciente. Os minutos passavam longos, como se em vez de minutos fossem horas...

Do alto da torre, o sineiro olhava para o oceano de telhados, que ondulava-se lá embaixo em agudas cumeeiras que repetiam-se indefinidamente pela cidade afora. As ruas cobriam-se de multidão vestida de preto que corria aos ofícios religiosos; por entre os telhados que vistos de cima pareciam enormes livros de capa entreaberta e lombo voltado para o céu, devassavam-se os quintais e os terraços, com grandes montes de lixo; coradouros alastrados de roupa branca onde o sol brilhava deslumbrante, o olhar indiscreto via em flagrante os interiores desarranjados e obscuros, as mocinhas em roupas caseiras, correndo daqui para ali, as cozinhas em movimento, muito pretas de fumo; um formigueiro de atividade doméstica, especial, muito distinto do formigueiro das ruas, reproduzindo-se por todos os lados até onde a vista alcançava; cobrindo tudo o tênue nevoeiro alimentado pelas chaminés fumegantes e um vago perfume de assados e fermentos que subiam da cidade como o anúncio evidente de que estava a findar à última hora dos magros dias da quaresma.

O velho Emílio passou distraidamente a vista por todo aquele conjunto indistinto e complicado de minuciosidades que os altos pontos de vista desvendam numa cidade, e voltou a fixar os olhos na vidraça do quartinho de Rita...

Um movimento de espanto fê-lo recuar da janela...

Estava suspensa a vidraça do quarto da netinha. A mulher a cujos cuidados ele confiara a criança estava à janela e agitava desesperadamente um lenço em direção à torre.
Acenava-lhe, sem dúvida.

Mas o que significava o aceno? Talvez ela estivesse gritando; Emílio, porém, era quase surdo em virtude da sua profissão; talvez tivesse no rosto uma expressão qualquer que explicaria tudo; mas, com a idade, a vista de Emílio era fraca demais para reconhecer essa expressão.

O lenço frenético significava alegria? significava terror?... Urgia saber-se!

Emílio ia correr, esquecendo o toque de Aleluia, quando emerge ofegante pela escada da torre o sacristão a gritar:

— Olha o sino!... Olha o sino!... já passa da hora... Já cantaram a Glória!

Emílio, atordoado, desvairado, precipita-se sobre o feixe das cordas que punham em movimento o carrilhão. Toma-as, desvairado, e agita os sinos como um doido, confundindo o dobre de finados com os repiques alegres, badalando precipitadamente, sem compasso, levantando na torre uma tempestade de detonações incríveis, infernais.

— Não há memória de uma Aleluia tão ruidosa e alegre, dizem as pessoas que ouviram-na.

Depois de um quarto de hora de frenesi, o pobre Emílio inclinou-se na janela do sino grande e observou a vidraça do quarto da netinha. Estava suspensa como antes da Aleluia e ninguém mais se via.

— Quem sabe se o lenço fazia-me sinal para tocar os sinos?... pensou o velho...

E, mais tranquilo, embora prostrado pela comoção que sofrera e pelo excesso que acabava de fazer, Emílio desceu da torre. Na escada, teve de sentar-se muitas vezes, antes de chegar ao último degrau.

— Vamos ver a Ritinha, dizia consigo, deve estar satisfeita comigo... Nunca toquei tão forte...

Em casa, encontrou morta a pequena Rita.

— Morreu sorrindo e atenta ao rumor dos seus queridos sinos, disse a mulher a quem Emílio confiara a guarda da criança.

O velho apertou o peito com ambas as mãos, lançou um olhar seco, terrível pela janela do quarto para a torre e para o espaço profundo, e caiu.

Na rua e no céu, reinava a ruidosa alegria das Aleluias e a tirania deslumbrante do sol.

É esta pequena história que conheci casualmente no quando chega-me aos ouvidos linha azul do horizonte como passado que me vem à mente, a voz dos sinos, cantando na um vago salmear flutuante...

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