A barata e a
vela
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Conheci uma baratinha que abominava a luz tanto quanto adorava a escuridão.
Conheci uma baratinha que abominava a luz tanto quanto adorava a escuridão.
Como todas
as baratas, obrigada a viver entoupeirada, no fundo do baú, só arriscava-se ao
ar exterior à noite, quando a vela se extinguia.
Roía os
bolsos dos meninos, que cheiravam a queijo e a bolo; roía um cristo de massa,
cujas mãos decepadas ficavam como duas estrelas brancas nos braços da cruz; roía
o sapatinho da Maricota, se untavam de óleo o couro de lustro; e (atrevida!),
roeu o dedinho grande da pequena! — por modos que ao amanhecer, o pezinho
mimoso, com uma pintinha em carne viva, doía, doía, e eu sentia aquilo no meu
coração como se eu fosse a Senhora das Dores traspassada pelas sete farpas.
Roer aquele pezinho que eu desejara cobrir de beijos, uma barata! o inseto mais
repugnante que o sol cobre!
Outra vez,
o nojento ortóptero pôs-se a fazer tanta bulha atrás da mala, que a menina
acordou.
No dia
seguinte, muito caladinha, Maricota arrastou o móvel até ao quintal, puxou uma
cadeira, e, chamando as galinhas, ia desarrumando a roupa, à procura da
baratinha audaciosa.
Era com
grande júbilo que eu via as baratas desaparecerem no bico voraz daquelas boas
aves! Estava vingado. Mas a baratinha teria sido engolida?
Uma noite,
eu lia o Werther, e vejo uma traça sair do lombo do livro. Quis esmagá-la com o
dedo. A traça respondeu que não havia roído o pezinho de ninguém...
— Ah, você
sabe disso? — fiz eu empalidecendo.
— E até
conheço a barata — respondeu a traça, pondo-se em pé. — Agora está descascando.
Se me garante a vida entre seus livros, dou-lhe conta dela.
— Você tem
a minha biblioteca inteira! — disse eu todo generosidade.
Entretanto,
foram inúteis, não só os planos da traça, como os meus.
A menina
por si mesma foi quem venceu a guerra. Executou a baratinha do modo mais
pomposo deste mundo. Pilhou-a, numa noite em que o inseto voejava adivinhando
chuva e pousava-lhe na face as asas catingosas. A vela! a vela foi quem matou a
barata, foi quem a denunciou aos grandes olhos negros da santinha. Olhe como a
luz persegue aos criminosos!
Maricota,
fazendo segurar o inseto pelo maninho, muito calma e risonha, corada como o
pejo, tomou um coto de vela, chegou-o ao lume, e pingando cera quente na
entreasa do bicho, que estremeceu todo, pregou-lhe em cima o coto aceso.
Foi o
espetáculo mais deliciosamente bárbaro que já presenciei!
A baratinha
deitou a esfuziar com o farol aceso sobre o lombo, correndo como doida, por
debaixo das cadeiras, pelo meio da casa, pelos corredores, e a meninada atrás,
numa grita sublime, até ao momento em que o fogo devorou-a toda, espalhando um
cheiro ruim pela casa.
Ai que Nero
que eu era ante aquela viva tocha ardente!
Sim,
queridas meninas, incendiai pandegamente, a coto de vela, todas essas nojentas
baratinhas que, enquanto vós dormis o belo sonho da puberdade, tentam roer o
esperançoso pezinho com que ides trilhar mais tarde o duro caminho da vida!
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