9/10/2017

A barata e a vela (Conto), de Manuel de Oliveira Paiva


A barata e a vela
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)


 "A barata e a vela" (Conto), de Manuel de Oliveira Paiva

Conheci uma baratinha que abominava a luz tanto quanto adorava a escuridão.
Como todas as baratas, obrigada a viver entoupeirada, no fundo do baú, só arriscava-se ao ar exterior à noite, quando a vela se extinguia.
Roía os bolsos dos meninos, que cheiravam a queijo e a bolo; roía um cristo de massa, cujas mãos decepadas ficavam como duas estrelas brancas nos braços da cruz; roía o sapatinho da Maricota, se untavam de óleo o couro de lustro; e (atrevida!), roeu o dedinho grande da pequena! — por modos que ao amanhecer, o pezinho mimoso, com uma pintinha em carne viva, doía, doía, e eu sentia aquilo no meu coração como se eu fosse a Senhora das Dores traspassada pelas sete farpas. Roer aquele pezinho que eu desejara cobrir de beijos, uma barata! o inseto mais re­pugnante que o sol cobre!
Outra vez, o nojento ortóptero pôs-se a fazer tanta bulha atrás da mala, que a menina acordou.
No dia seguinte, muito caladinha, Maricota arrastou o móvel até ao quintal, puxou uma cadeira, e, chamando as galinhas, ia desarrumando a roupa, à procura da baratinha audaciosa.
Era com grande júbilo que eu via as baratas desaparecerem no bico voraz daquelas boas aves! Estava vingado. Mas a baratinha teria sido en­golida?
Uma noite, eu lia o Werther, e vejo uma traça sair do lombo do livro. Quis esmagá-la com o dedo. A traça respondeu que não havia roído o pezinho de ninguém...
— Ah, você sabe disso? — fiz eu empalidecendo.
— E até conheço a barata — respondeu a traça, pondo-se em pé. — Agora está descascando. Se me garante a vida entre seus livros, dou-lhe conta dela.
— Você tem a minha biblioteca inteira! — disse eu todo generosidade.
Entretanto, foram inúteis, não só os planos da traça, como os meus.
A menina por si mesma foi quem venceu a guerra. Executou a baratinha do modo mais pomposo deste mundo. Pilhou-a, numa noite em que o inseto voejava adivinhando chuva e pousava-lhe na face as asas catingosas. A vela! a vela foi quem matou a barata, foi quem a denunciou aos grandes olhos negros da santinha. Olhe como a luz persegue aos criminosos!
Maricota, fazendo segurar o inseto pelo maninho, muito calma e ri­sonha, corada como o pejo, tomou um coto de vela, chegou-o ao lume, e pingando cera quente na entreasa do bicho, que estremeceu todo, pre­gou-lhe em cima o coto aceso.
Foi o espetáculo mais deliciosamente bárbaro que já presenciei!
A baratinha deitou a esfuziar com o farol aceso sobre o lombo, correndo como doida, por debaixo das cadeiras, pelo meio da casa, pelos corredores, e a meninada atrás, numa grita sublime, até ao momento em que o fogo devorou-a toda, espalhando um cheiro ruim pela casa.
Ai que Nero que eu era ante aquela viva tocha ardente!

Sim, queridas meninas, incendiai pandegamente, a coto de vela, todas essas nojentas baratinhas que, enquanto vós dormis o belo sonho da puberdade, tentam roer o esperançoso pezinho com que ides trilhar mais tarde o duro caminho da vida!

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