A Guerra, de
Guy de Maupassant
Tradução
publicada na revista “O Echo”, em 1916. Pesquisa, transcrição e adaptação
ortográfica: Iba Mendes (2017)
Quero
visitar o Courbet, que passa pelo tipo mais perfeito da nossa marinha.
Nada dá uma
ideia do labor humano, do labor minucioso e formidável deste animal de mãos
engenhosas, que se chama homem, como essas enormes cidadelas de ferro que
flutuam e caminham levando um exército de soldados, um arsenal de armas
monstruosas, colossos feitos de bocadinhos ajustados, soldados, forjados,
cavilhados, trabalho de formigas e gigantes que mostra ao mesmo tempo todo o
gênio e toda a impotência e toda a irremediável barbaria dessa raça tão ativa e
tão fraca que emprega os seus esforços a criar essas máquinas para se destruir
a si próprio.
Os de outras
eras, que construíam com pedras catedrais arrendadas, palácios fantásticos para
abrigar sonhos infantis e piedosos, não valiam porventura os de hoje que lançam
sobre o mar casas de aço que são os templos da morte?
No momento
em que eu deixo o meu navio para entrar de novo na minha casca de noz, ouço
sobre a margem estrondear uma fuzilada. É o regimento de Antibes que faz
exercício de atiradores nas areias e nos pinheirais. O fumo sobe em flocos
brancos, semelhantes a nuvens de algodão que se evaporam, e vêm-se correr ao
longo do mar as calças vermelhas dos soldados.
Então, os
oficiais de marinha, interessados de súbito, dirigem os seus binóculos para a
terra e o coração anima-se-lhes com esse simulacro de guerra.
Quando penso
simplesmente nesta palavra — GUERRA — invade-me uma impressão de medo como se me
falassem de feitiçaria da Inquisição, de uma coisa longínqua, acabada,
abominável, monstruosa, contra a natureza, enfim.
Quando se
fala de antropófagos, sorrimos com orgulho proclamando a nossa superioridade
sobre esses selvagens. Quais são os selvagens, os verdadeiros selvagens? Os que
se batem para matar, nada mais que para matar?
As fileiras
que correm além são destinadas à morte como os rebanhos de carneiros que um
magarefe conduz ao açougue. Eles irão cair numa planície, com a cabeça fendida
por um golpe de sabre ou o peito atravessado por uma bala; e são homens novos,
vigorosos, que poderiam trabalhar, produzir, ser úteis. Seus pais são velhos, e
pobres; as mães que durante vinte anos os amaram, adoraram como elas só sabem
adorar, virão a saber dentro de seis meses ou de um ano talvez, que o seu
filho, a criança criada com tanto desvelo, com tanto dinheiro despendido, com
tanto amor, foi atirada para uma fossa como um cão arrebentado, depois de ter
sido estripado por uma bala e calcado, esmagado pelas cargas de cavalaria. Por
que lhe mataram o seu rapaz, o seu belo rapaz, a sua única esperança, o seu
orgulho, a sua vida? Ela não o sabe. Sim, por quê?
A guerra!...
baterem-se! destruir! massacrar os homens! E temos hoje, na nossa época, com a
nossa civilização, com o desenvolvimento de ciência o grau da filosofia onde se
crê ter chegado o gênio humano, escolas onde se aprende a matar, a matar de
muito longe, com perfeição, muita gente ao mesmo tempo, a matar pobres diabos
de homens inocentes, carregados de família e sem montepios.
E o mais
estupendo, é que o povo não se revolta contra os governos. Que diferença há
então entre as monarquias e as repúblicas? O mais estupendo ainda é que a sociedade inteira não se revolta contra
esta simples palavra de guerra.
Ah!
viveremos sempre sob o peso dos velhos e odiosos costumes, dos preconceitos
criminosos, das ideias ferozes dos nossos bárbaros antepassados, porque nós
somos bestas, ficaremos bestas que o instinto domina e que nada muda.
Não se teria
venerado um outro que não fosse Victor Hugo que lançasse este grande grito de
livramento e de verdade?
Hoje a força
chama-se a violência e começa a ser julgada; a guerra está posta em acusação. A
civilização, perante o lamento do governo humano, instrui o processo e levanta
o grande auto criminal dos conquistadores e dos capitães. Os povos chegaram a
compreender que o engrandecimento duma perversidade não constituirá nunca uma
atenuante; que se matar é um crime, matar muito é maior crime ainda; que, se
roubar é um aviltamento, usurpar não pode ser uma glória.
Ah!
proclamemos estas verdades absolutas, desonremos a guerra...
Cóleras vãs,
indignação de poeta. A guerra é mais venerada do que nunca.
Um artista
hábil, nesta parte, um matador genial, M. de Moltke, respondeu um dia, aos
delegados da paz, as estranhas palavras que seguem:
A guerra é
santa, de instituição divina; é uma das leis sagradas do mundo; ela mantém
entre os homens todos os grandes, os nobres sentimentos: a honra, o
desinteresse, a virtude, a coragem, e os impede numa palavra, de cair no mais
hediondo materialismo...
Assim,
reunir-se um rebanho de quatrocentos mil homens, marchar dia e noite, sem
repouso, não pensar em nada, nem nada estudar, nem aprender, nem ler, nem ser
útil a ninguém, apodrecer de imundície, dormir no lodo, viver como os
irracionais, num embrutecimento contínuo, saquear cidades, queimar aldeias,
arruinar povos, depois encontrar uma outra aglomeração de carne humana,
atirar-se a ela, fazer lagos de sangue, campos de carne pisada envolta na terra
Iamacenta e vermelha, pilhas de cadáveres, ter os braços ou as pernas partidas,
o crânio machucado sem proveito de ninguém, e arrebentar para ali ao canto dum
campo, enquanto os vossos velhos pais, vossa mulher e vossos filhos morrem de
fome; eis aqui o que se chama não cair no mais hediondo materialismo.
Os homens de
guerra são o flagelo do mundo. Nós lutamos contra a natureza, a ignorância,
contra os obstáculos de toda a espécie, para tornar menos pesada a nossa
miserável vida. Os benfeitores e os sábios passam a sua existência a trabalhar,
a procurar o que pode ajuntar, o que pode socorrer, o que pode aliviar os seus
irmãos. Vão cheios de ardor à sua tarefa útil, acumulando as descobertas, engrandecendo
o espírito humano, desenvolvendo a ciência, dando cada dia à inteligência uma
porcentagem de saber novo, dando cada dia à sua pátria o bem-estar, a abastança
e a força.
A guerra
chega. Em seis meses, os generais têm destruído vinte anos de esforços, de
paciência e de talento.
Eis aí o que
se chama não cair no mais hediondo materialismo.
Nós bem
vimos a guerra. Vimos os homens transformados em feras, loucos, matar por
prazer, por terror, por bravata, por ostentação. Então como o direito não existia,
como a lei era letra morta, como toda a noção do que é justo desaparecia, nós
vimos fuzilar inocentes encontrados numa estrada e tornados suspeitos porque
tinham medo. Vimos matar cães presos à porta de seus donos, para experimentar
revólveres novos, vimos metralhar por prazer vacas deitadas num campo, sem
razão alguma, para atirar tiros de tiros de espingarda, simplesmente.
Eis o que se
chama não cair no mais hediondo materialismo.
Entrar num
país, assassinar o homem que defende a sua casa porque está vestido com uma
blusa e não tem um quepe na cabeça, queimar as habitações dos miseráveis que
não têm pão, quebrar móveis, roubar outros, esgotar o vinho encontrado nas
adegas, violar as mulheres encontradas nas ruas, queimar milhões de francos em
pólvora, e deixar atrás de si a miséria e a cólera.
Eis o que se
chama não cair no mais hediondo materialismo.
Que fizeram
eles, os homens de guerra, para provar ao menos uma pouca de inteligência?
Nada. Que inventaram? Canhões e espingardas. Eis tudo.
O inventor
da carreta não fez mais a favor do homem por essa simples e prática ideia de
ajuntar duas rodas a um eixo que o inventor das fortificações modernas?
Que nos
resta da Grécia? Livros e mármores. Foi grande pelo que venceu ou pelo que
produziu?
Foi a
invasão dos Persas que a impediu de cair no mais hediondo materialismo?
Foram as
invasões dos bárbaros que salvaram Roma e a regeneraram?
Napoleão I
continuou porventura o grande movimento intelectual começado pelos filósofos no
fim do último século?
Pois bem,
sim, já que os governos tomam assim o direito de morte sobre os povos, não é
nada de admirar que os povos tomem algumas vezes o direito de morte sobre os
governos.
Defendem-se.
Têm razão. Ninguém tem o direito absoluto de governar os outros. Isso não pode
fazer-se senão para o bem daqueles que se dirige.
Qualquer que
governe tem tanto o dever de evitar a guerra como um capitão de navio tem o de
evitar o naufrágio.
Quando um
capitão perde o seu barco, julgam-no e condenam-no, caso se reconheça ter
havido negligência ou mesmo incapacidade.
Por que não
se há de julgar os governos depois de cada guerra declarada? Se os povos
compreendessem isso, se fizessem justiça por suas mãos contra os poderes
homicidas, se recusassem deixar-se matar sem razão, se se servissem das suas
armas contra aqueles que lhas deram para massacrar, nesse dia a guerra seria
morta... Mas esse dia não chegará!
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