9/16/2017

A desforra de Baccarat (Conto), de Fialho de Almeida


A desforra de Baccarat

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O conde não acompanhou a sua esposa nessa noite.

Era quinta-feira.

O Inverno rigoroso, céus continuamente emburelados em forros plúmbeos, chuvas eternas que não davam guarida, lama pelas ruas, bocejos pelos gabinetes, aspectos constipados, a bronquite tripudiando a sua impunidade pelos narizes das famílias, em São Carlos a Varezi trilando divinamente, com aquele sorriso que parecia uma esperança e que se tornou, desde que ela partiu, num desespero. No Grêmio Alberto de Selvas esperava o conde; além disso, apostara no Clube a queda do ministério; e, por fim, ele não queria dizer, mas Fatime esperava-o, queria cear com ele, a Fatime do corpo de baile, uma loira picante, de carnes friamente impuras, cujo olhar, de um pardo inerte, possuía nos acessos de cólera fulgurações de adorável maldade. Razões que impuseram resistência às súplicas da condessinha e diante de cuja teimosia ela fez beicinho, com uma expressão de candura inimitável. De modo que, mal Charmille, o velho criado grave, serviu o café no pavilhão chinês, e o conde bebeu o seu velho conhaque digestivo, pediu o prussiano, acendeu um carvajal pequenino, de um aroma penetrante, e, beijando a condessa, partiu. 

No pátio ouvimo-lo cantarolar as coplas dos Sinos, e as suas botas rangeram no xadrez do átrio. Depois o cupé rodou e ficamos sós. A tarde caía, e sobre o terraço, para onde rasgavam as janelas do gabinete de trabalho, um raio de sol, peneirado através das moitas de trepadeiras, tinha uma luz harmônica, inefável, discreta, em que se sonhava o idílio, de uma pureza arcangélica, nas regiões fantásticas do incomensurável, sobre o dorso de cometas desgrenhados. Uma arara monótona chalreava, suspensa por um só pé a um suporte metálico, patenteando no arrojo das penas, de brilhos ardentemente metálicos, matizes inconcebíveis, divinos cambiantes de um mordente estranho, tons apaixonadamente fulvos, em todas as gradações do espectro, com saturações vivas de escarlate e violências de verde, de um cáustico exaltado. A condessa fechou o livro e olhou para mim. Era uma criança anêmica, fina beleza aristocrática, crescida como uma avenca australiana no mole ambiente, impregnado de essências, dos budoirs, dos salões e das largas galerias claras, em que antepassados graves olham dos seus quadros poentos, ridículos ou funéreos nos seus vestuários de todas as idades.

O seu tipo bourbônico, palidamente senhoril, tinha um cunho real que feria e, sentindo-a respirar e sorrir, todo o mundo se abalava por ela numa simpatia entusiasta, num vasto amor infinito e terrível como a morte. Umas religiosas irlandesas tinham-na educado no Bom Sucesso; por toda a parte grades, a austeridade da clausura, frias pedagogas embiocadas em negro, o sino batendo as suas pancadas cortantes, as preguiças de levantar cedo, as tristes harmonias que lhe ensinavam nas harpas douradas, e em que pareciam soluçar tormentosas legendas de amores místicos, e rolarem pelas escadarias dos cadafalsos vermelhas cabeças palpitantes.

Saiu de lá falando menos mal as línguas, bordando jardins suspensos em almofadas de aparato, com um vício, o piano, e um vácuo diante da sua alma — a vida em que ia entrar. A sua mãe, uma rainha de bailes, lia romances dias inteiros, em chambre, deitada num divã opulento, o cabelo por cima das mesas, perfumes caros na epiderme e meias de seda esticadas acima do joelho. 

E ela afez-se também às leituras.

Belot, que uma amiga lhe emprestara, pôs em vibração na sua alma uma corda misteriosa, e pela primeira vez na sua vida de virgem se abrasou em ímpetos. E o seu sangue impetuoso teve alucinações candentes, em que passavam homens brancos, virginais, atléticos, nus e vívidos, que lhe estendiam os braços.

Desceu com o visconde Ponson, com o celerado Capendu e com o patife Zaccone aos pavores dos subterrâneos em que se despenhavam protagonistas heroicos; quis sofrer com eles as inclemências dos cárceres e as agonias da tortura, escamugindo-se quando pôde pelas saídas misteriosas em que molas ocultas fazem girar portões de rochedos; subiu as escadas de corda, mascarada de veludo negro, com um frasquinho de sais no bolso e um punhal nos dentes; penetrou conclaves lôbregos em que conspiradores avançam solenemente para fazer frases, e se pronunciam juramentos terríveis com as espadas nuas sobre braseiros consagrados, à luz de tochas de cera amarela. E romanticamente decorou frases pomposas das heroínas, teve atitudes teatrais de uma exibição ridícula, esgares e lirismos. Pintava de bistre olheiras sentimentais e, sobre os ombros seminus em gaze vaporosa, deixou revolutear os cabelos turbulentos, secos, crespos, em tons hilariantes. 

Mas uma tarde parou uma carruagem à porta.

Um rapaz que ela vira em São Carlos, de luneta de ouro, na Havanesa puxando punhos de aparato, nos chás do ministro da Alemanha declamando teorias, no Parlamento pedindo caminhos-de-ferro em nome do progresso e da civilização, entrou com um velho.

Vinham pedi-la em casamento. 

O pai de Beatrice fazia política, pedia também caminhos-de-ferro e moralidade nas províncias da pública administração, mal sabia o nome dos filhos e só ao jantar estava com a família, não obstante lamentar a decadência da sociedade portuguesa, nos artigos de fundo. 

A mãe, por causa dela, não podia instalar comodamente os amantes, tinha por isso birras, rogava pragas em voz alta. Vida do diabo. Raio de filhos! 

Um dos apaixonados, o cônego D. Venâncio, queixara-se até às criadas, que aquilo não podia continuar assim, que nem uma pessoa era senhor de levar a sua capa de trazer e os seus solidéus de retrós preto, com uma borlazinha na nuca.

De modo que o casamento fez-se. 

O Ilustrado falou com boas orações incidentes explicativas e adjetivos novos, da festa, dos convidados, “a fina flor”, das toilettes, tudo, de aprimorado gosto, publicava com pompa.

E havia dois anos que Beatrice era condessa, a condessinha, e que eu, o melhor amigo do conde, assistia às suas matinées e às suas desilusões. 

Na boca pequenina dela, vermelhamente lasciva, uma contração irônica dizia as suas impaciências, os seus arrebatamentos, as suas flutuantes predileções, os seus langores e os seus desdéns. Amava os vestidos decotados e os largos colarinhos de cretone azul, que permitem a viagem mística do olhar artista ou sacrílego, até à promessa, aos esplendores de um seio.

O meu olhar, casualmente, inocentemente — dou a minha palavra de honra — como uma ave ferida, foi de manso e pouco a pouco, como quem quer reter o voo e não tem forças, cair também nesse abismo de alabastro e, ao reparar atônito no sacrilégio, viu a condessinha sorrir, um risinho lancinante que dizia:

— Então... que é lá isso, também... 

A carne é frágil. Frágil e petulante.

Naquele momento quisera ter cegado. Depois — não vão dizer nada — senti pena de não ter olhado melhor. Mas era shocking!

Lançava as culpas para a condessinha; para que punha aqueles colarinhos? E, olhando-me aos espelhos das paredes, via-me chamejante, em tons apopléticos de lagosta, o frisson das grandes culpas pela espinha dorsal. 

Assim chegou aquela tarde. 

Beatrice continuava abandonada no fauteuil, a sorrir. 

E o maldito colarinho aberto, o sicário, aberto, aberto!... 

A tarde esmaecia nos longes, sobre o mar, e no silêncio a noite condensava escuridades no ar com um metodismo severo, imperturbável, gradual. 

O relógio feriu cinco horas. 

Por uma janela aberta o rumor da cidade entrava; carruagens sentiam-se ao longe e, no vasto negro, pontinhos de gás bordavam evoluções caprichosas, marcando as curvas das ruas, o afunilamento dos becos, as dilatações das praças lamacentas.

Não pedimos luz. 

Eu fumava na causeusse. A condessinha, distraída agora, absorta e com o olhar perdido nos relevos do teto, abandonava-se; e na penumbra das coisas o seu busto adquiria linhas ideais de visão benigna, a morbideza cálida de certas organizações doentias.

Ergueu a voz: 

— Meu marido...

— Para que diabo vem agora o marido? — pensei frenético, com um embate audaz no cérebro.

— Meu marido diz-me sempre ter em si, Armando, o seu melhor amigo. 

— Curvei-me. 

— É uma honra.

— Cale-se, é apenas gratidão. O conde é sincero. E mudando de tom: 

— Armando, que idade tem?

— Vinte, condessa, bem monótonos na verdade. 

— Vinte anos! — E a sua voz, de uma inflexão musical, era suave como uma carícia.

Eu sentia-me todo levado para ela... mas, de súbito, lembrei-me do conde, o meu melhor amigo. 

Pobre Carlos! Àquela hora, jogava talvez no Grêmio, com os seus íntimos, e perdia. Belo rapaz! Tínhamos sido condiscípulos no colégio, ele era casmurro nos seus significados de latim, levava puxões de orelhas.

De uma vez, lembrava-me, havíamos jogado a tapona; ele tivera um galo na testa, feito com um compêndio de lógica, a que nunca pudera chegar. E tínhamos ficado mal, indiferentes, todo o ano. E via-o magro e bonito na sua blusa de riscado cheia de tinta de escrever, um molho de chaves de baús, na algibeira, tilitando.

Às onze horas ia ao Clube falar em política, altivo na sua opinião respeitada, entre conselheiros graves de calva e suíças claras. À meia-noite, Fatime, o vampiro, esperá-lo-ia num cupé, a São Roque, para irem ao Restaurant Club cear, e fazer depois a digestão entre beijos e champanhe até de madrugada, hora em que a bailarina costumava receber um trintanário louro, trescalando a cavalariça.

E reatando a palestra, para dizer alguma coisa, perguntei: 

— E a condessa, quantas primaveras? — Olhava de soslaio o seu largo colarinho azul e vinham-me suspiros evaporados de uma grande indolência. 

— Dezoito — respondeu — mas estou velha, sabe? 

— Uma aurora! — disse eu com a petulância de quem lapidou uma frase com o meu tom de mais efeito, de que usava nos grandes momentos. O meu olhar caía sobre ela, como uma má sina. Na penumbra, brancuras de seios empalideciam. E continuando:

— Quem tem dezoito anos é sempre feliz, inocente; aos dezoito anos a vida é uma bênção, um aroma, uma pérola... — E queria ser eloquente, mas estendia-me, fazia má figura. Ela ria com os seus dentinhos brancos, que recortavam de alvuras gulosas o escarlate lascivo da sua boca úmida.

E grave, passado tempo.

— Sabe, Armando, que essa sua prosa, sujeita a rimas, dava belos hendecassílabos?

Fiquei todo corrido, uma larga desconsolação espasmódica, as fontes aos baques.

— Oh! condessinha, é cruel. — E sentia-me corar como um cábula. 

— Olhe, quer que sejamos francos? A minha vida é bem triste. O conde é um rapaz adorável. Vestidos, quantos apeteço. Manda vir joias de Paris. Não me recusa coisa alguma. Eu não queria tanto sim, vê! Porque isto mostra-me que ele me esqueceu cedo, que se não preocupa dos meus caprichos, entende? Que me deixa ir assim, os deus-dará. E juro, Armando, eu não lhe merecia isto.

Chispavam centelhas do meu olhar na ampla dobra azul do colarinho. A sua túnica branca, imensa, apertada na cintura sem esforço, quebrava-se toda em dobras à roda, aos seus movimentos rápidos. E contra a luz os seus cabelos crespos, cortados em borla na cara, lembravam fios de ouro sem liga. A sua voz tinha uma resignação penitente, afogada numa tristeza passiva e sem resolução.

Comentei:

— Oh! é injusta. Não é isso que o conde me confessa todos os dias. 

O lábio teve um escárnio cheio de meigas censuras. 

— Realmente? Olhe cá. E ele diz então que me ama? Entendo. Armando, pensa que o amor que ele lhe narra é consagrado à sua mulher? Porque, diga, Carlos nunca pronunciou o meu nome durante essas expansões. Seja franco, vamos. Mas diga então.

— Decerto que pronuncia, condessa: é bem claro, é lógico. 

— Ergueu-se vivamente, a mão crispara-se-lhe. 

— Mente, Armando, mente! Perdoe-me a injúria, mas falta à verdade. Ele ama apenas estas coisas, ouça — e contava pelos dedos: — o seu cavalo árabe, o jogo de fundos e... digo?

Ria-se nervosa, desafiando. 

— Condessa! 

— Fatime. A dançarina judia. 

Exaltava-se. 

 — Oh! ilude-se, juro que se ilude. O conde está no Grêmio.

— Armando, olhe bem para mim. Ousa enganar-me, então? — E rápida, sufocada, risonha: — Hoje à meia-noite, eles ceiam ambos. Quer saber onde?

— Mas...

— É desleal, ocultando-me a verdade, repare. 

— Como soube...

— Comprei os criados. Pode ir dizer ao meu marido. Quando se é trocada por uma bailarina, fica-nos o direito de chegarmos até onde nos aprouver. 

Não lhe parece? 

E atravessava-me com o olhar. O seio batia. Fugitivamente, os meus olhos iam casar-se na cor do seu colarinho. Curvei a cabeça sem responder. A condessinha insistiu com doçura, quase em segredo: 

— Não acha? 

Fechei os olhos sem dar palavra. Sentia-me perturbado. Onde ia ela chegar? E depois lentamente, respondendo à sua pergunta, os meus lábios disseram não, mas todo eu afirmei que sim.

Podem clamar quanto quiserem, mas a condessinha desejava-me, queria-me, ela, a esposa do meu melhor amigo, e a minha fragilidade sentia-se atraída para ela, como uma asa de pena para um ímã, sem remédio, sem consciência e sem destino. Para que nos deixava o conde todas as noites sós? Para que a desgostava a ela, pobre criança inocente e caprichosa?

Havia uma semana que eu andava perturbado diante de Beatrice. Notara que os seus colarinhos de serão eram cada vez mais largos, e que o seu seio, de um mármore fatal, em que destacaria bem o sangue de uma punhalada, arfava impetuoso, se próximo de mim. As minhas noites entraram a ser riscadas com a fosforescência daquele desejo, como um profundo mar entenebrecido e sombrio. Os seus olhos fixos e úmidos de ânsia, grandes como dois mundos, estavam sempre diante da minha vista. E o pior não era isso. 

Mas aquele diabo do colarinho... 

— Armando — disse ela —, bem sabe como eu sou supersticiosa. Vai acontecer desgraça por certo. Olhe. Ontem, uma borboleta negra entrou-me no boudoir, enquanto tomava o meu banho tépido. Tudo estava fechado, as cortinas e as vidraças unidas, os estores pendentes. De modo que da rua, aquela fatal mensageira não veio, com certeza. Digo-lhe eu, Armando, vai suceder desgraça. Não dormi esta noite, pensando horrores. O conde veio tão tarde!

E baixinho, só para eu ouvir: 

— E sabe, trazia no fato uma aroma que não era o dos seus sachets. Eram os beijos de Fatime. Escusa de olhar para mim, Armando. Não tenho ciúmes nenhuns. Ainda há poucas noites, na valsa do Roberto, eu atirei flores à bailarina. Porque é uma artista. E que beleza!

E lenta:

— Não tenho ciúmes, não. Pobre conde! faz o que pode. Todos fazem o mesmo. Fosse eu homem, to contaria...

E feito um silêncio curto, os olhos baixos: 

— A minha vingança é outra! 

E lentamente, deixando cair as palavras: 

— Pena... de... Talião... Apre! 

Ouvia-se o tique-taque da pêndula. Eu erguera-me, a tremer, sem uma palavra, sem uma ideia, sem uma resolução. Estávamos quase às escuras e, mesmo assim, eu via o seu colarinho decotado e a cintilação cáustica dos brincos. Acendi sobre o fogão duas serpentinas de bronze.

A condessinha, imóvel, de pé na sua palidez fascinante, o penteado desmanchado, tinha um sorriso vago; e, vendo a impressão que as suas palavras violentas me causavam, disse: 

— Se o ofendessem, Armando, vingar-se-ia. 

Eu ia protestar; ela juntou logo: 

— Sou filha dos marqueses de Penha Longa; dez vezes mais orgulhosa por isso, que qualquer outra.

— Orgulho fatal! — exclamei eu. 

— Quero a desforra! Estou cansada de humilhações. 

Eu avancei e disse com força: 

— Seria indigno! 

Beatrice ressentiu-se, os olhos encheram-se-lhe de grandes lágrimas sublimes. Balbuciou:

— Armando!

Tornei asperamente:

— Seria cobarde!

E, aproximando-me com voz curta, rápida e vibrante, como a de um vingador colérico:

— É loucura ou crime? Hem? 

Caiu aniquilada no fauteuil, terrivelmente pálida, os lábios trêmulos, dizendo imperceptível:

— Oh Armando, Armando!... — Fui ampará-la. O meu Deus! O peso do seu corpo enlouquecia-me; eu amava-a, eu queria-a! Atirei-me chorando aos seus pés. Ah! que infame, que infame eu era!

O relógio deu meia-noite. Àquela hora, o conde ceava com Fatime, num gabinete cor-de-rosa, do Restaurant Club. Bebiam talvez o seu champanhe; o conde teria ditos de uma mordacidade equívoca; a judia, gargalhadas sonoramente soltas. Ressoaria um beijo... Nós ambos, a condessinha e eu, sentados no mesmo fauteuil, ceávamos alguma coisa excitante e bebíamos pelo mesmo copo, aos golinhos.

Beijos quentes, prolongados e devoradores, uniam os nossos lábios impuros. De sobre o fogão, o retrato de Carlos olhava, sorrindo, o grupo. E um perfume misterioso flutuava.

Beatrice lembrou-se de repente: 

— E o conde? 

— Ora! Tenha juízo. Também, para que foi cear com Fatime? — E rindo: — Compraste então os criados; peça bem pregada! Nada de dar cavaco, percebes, nada de dar cavaco... Chute!

— Amo-te tanto, tanto! Aborreço o conde pela tua causa. Quando ele apresentou aqui os seus amigos, lembras-te? Trazias as tuas polainas de caça, um knickerbockers de Pool, numa bonita e fresca manhã. Iam caçar. Eu fiquei à janela, em roupão, os cabelos despregados.

Bebia devagar, e ao cabo: 

— Ah! Esta liberdade inebria-me, meu Deus; não pode ser um crime. Amar um homem que se viu depois de casada!... — E muito baixo, frenética: — Os teus cabelos, a tua boca tão fresca, a tua pele tão fina! Deixa-me morder, uma dentadinha pequena, para não fazer sangue. — Eu deitava champanhe. — Mas perturbas-me, convulsionas-me, Armando! Um beijo: cala-te, meu Deus! É preciso que me sintas: queria morrer contigo, no mesmo instante, dormir no mesmo caixão, num cemitério de grandes árvores e sombras. Endoideço, enlouqueces-me!

E com os seus braços de escultura, fortes, cinzelados e quentes, enlaçava-me o pescoço, um rubor febril na face, os olhos afogados num langor amorável. E dizia-me terna, ternissimamente, como só as mulheres dizem na noite de núpcias:

— Tenho tanto peso na cabeça, Armando! Um sono tão grande!...

E toda ela vergava, pesando sobre mim, a cabeça descaída no meu ombro. 

— Vês como sou tão humilde, tão tua, nem eu sei... uma escrava.

Abandonava-se, suspirando. Os meus beijos desciam pouco a pouco pelo seu pescoço, em direção ao seu colo.

Repetia:

— Uma escrava!...

— Mas há pouco, louquinha, dizias-me tu tão altiva. Sou filha dos marqueses de Penha Longa, dez vezes mais orgulhosa por isso, que qualquer outra mulher. E agora? Incoerente...

E torcia-lhe o labiozinho amuado, cor-de-rosa. 

Ela bebia. E fazendo estalar a língua: 

— Ah! Não repares no que eu disse. Nós falamos sempre em orgulho e antepassados, quando não temos que dizer outra coisa. O papá era assim: nós aprendemos.

— Oh condessa! — disse eu espantado. 

— Ora! De mais o sabes tu. Dá-me champanhe! 

— Olha. — E um beijo, outro, outro... 

O conde ceava com Fatime, provavelmente. 

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