9/16/2017

Quatro épocas (Conto), de Fialho de Almeida


Quatro épocas (Contado por um misantropo)

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Por detrás da nossa casa, passado o laranjal, ficavam as oliveiras, manchando de pardo o terreno ondulante que uma erva espessa e florida cobria. As primeiras sezões que tive, por um verão de há quarenta anos, agradeci-as aos calores insuportáveis a que durante uma semana me expus sem chapéu, sem véstia e sem sapatos. No campo, segundo o costume patriarcal da gente pobre, mal o sino da igreja dá o meio-dia, o pai senta-se à mesa em frente da mulher, os filhos à roda, e janta-se. Findo o jantar, a família levanta-se, conservando o seu lugar, e cada qual põe as mãos. O pai e mãe rezam em voz baixa, enquanto os filhos recitam alto a oração de graças pelo alimento daquele dia: Muitas graças e louvores sejam dadas ao meu Senhor Jesus Cristo, pelos muitos bens e esmolas que me faz, tem feito e tem para fazer enquanto for servido. Padre Nosso...

Depois o chefe abençoa os pequenos e manda-os tratar da vida; os mais velhos para o trabalho, os mais novos para a escola. O mestre que tive era um relapso sem emenda. Dia sim, dia não, gazeta sabida! Que júbilo o meu quando, ao chegar com a pasta e a cantarinha de água, ouvia pelo tabuado da escola o sapatear rebelde dos rapazes e as vozes bramiam num coro estridente que dizia:

— Não há escola, não há escola!

Íamos em bandos depois, cantando praça abaixo, aos socos, aos empurrões e aos berros.

Uma vida de bezerros circulava nas nossas artérias sadias; uns atiravam com terra à cara dos outros, com pedras e com pastas. Alguns dos mais graciosos arremedavam o mestre, fazendo carantonhas de estourar de riso. Vários ainda, dos que moravam perto, iam jogar o botão, arrancando sem piedade as marcas das ceroulas e das calças e os botões das jaquetas e coletes; de uma vez que apareci sem botões, a minha mãe deu-me açoites com tão áspero chinelo que nunca mais tive vontade de jogar. Aquela sova explica porventura o asco que ainda hoje sinto pelos jogos — tão abençoada foi ela!

Já naquelas idades, que uma alegria embebeda de exuberantes e puras fantasias, armávamos panelinhas de três, quatro e cinco, para a brincadeira. Sucedia às vezes que essas pequenas sociedades eram surpreendidas pelo mestre em pagodes reais. Levavam todos com a régua ou iam de joelhos todos, conforme.

A minha era composta do Chico Rato, cujo pai era feitor na nossa casa, do Manel da Pomba, um louro de olhos sinceros, mau como os demônios, e do Zé Estrelo, hoje pastor.

Em dias de feriado ou de gazeio toca para o olival dançar nos balouços, fazer caça aos ninhos ou atirar pedra à velha aos telhados das adegas fronteiras. 

Duma vez apanhamos um gato que todas as noites nos ia roubar as crias dos coelhos. Atamos-lhe um baraço ao gasnete, penduramo-lo numa oliveira e foi pedrada até que morreu. Eu chorava de pena. 

— Oh! minha lesma! — dizia com desprezo o Manel da Pomba, descarregando às três e às quatro, sobre o pobre animal meio morto. 

Mas o que mais nos divertia era o balouço. Atávamos as arreatas das mulas umas nas pontas das outras; Zé Estrelo, que era o mais possante, dava laço na perna sólida, de uma oliveira secular.

As pontas pendentes da corda eram atadas a uma cortiça rija, que servia de assento.

E estava pronto — um! dois! três! 

Começava a frescata. 

Durante os cinco ou seis anos que serviu aos nossos prazeres, a velha árvore nem por um instante nos traiu. A cortiça do balouço era ocupada às vezes por três rapazes. Quebravam-se as cordas e vínhamos ao chão; a árvore, porém, nem nos metia susto, estalando. Boa e velha amiga que parecia feliz deixando-nos pender nos seus ramos metálicos, como esses cachos vivos de que falam as histórias maravilhosas!... 

Uma noite, depois da ceia, estando todos ainda sentados à roda da mesa, o meu pai, fazendo a voz solene, disse-me que eu estava um homem e precisava cuidar do futuro. Eu tinha uma forte admiração pelos carpinteiros, naquele tempo. A arte com que eles punham branca, nova e polida uma velha tábua com que o meu canivete nada podia!... A habilidade para tudo ajustar e o gosto com que arranjavam os carros com que brincávamos, arrastando carretadas de trigo, pelas eiras, davam-me um pasmo sem limites e um desejo sério de lhes seguir a profissão.

— Eu cá quero ser carpinteiro — disse eu todo grave.

Meu pai bateu na mesa, e o senhor prior, que estava presente, riu da minha ambição.

— Estás tolo, ou que diabo tens? — disse o meu pai de sobrolho hirsuto, olhando-me.

— Vais mas é para o colégio, como os meninos do cirurgião — disse o prior com bondade.

Eu abri os olhos sem entender, ou tremendo de entender. Ir para o colégio, numa terra distante onde ninguém me queria, deixar o Manel da Pomba e o Zé Estrelo, e a horta, a casa, o olival, o balouço e a árvore amiga e tolerante? Quê? De cabeça baixa, a minha mãe não dizia nada. Puxei-lhe a saia devagarinho, ferido de grande medo:

— Não quero ir, mãe, não quero ir! 

Os olhos dela fecharam-se e, aos cantos das pálpebras comprimidas, lágrimas silenciosas caíram de uma saudade que ainda hoje me entristece.

Tinha já nove anos e parti.

A lembrança que no colégio, à noite e após todo um dia de aulas que a dureza dos prefeitos me enlutava de, amargos desalentos, me vinha mais viva, mais inconsolável e mais triste, era a da árvore velha do olival, que sem queixa me aturara tanto!

Bons tempos da infância, purpureados de risos e cheios do casto aroma da inocência — que vos não verei mais!... 

No colégio, à medida que os anos corriam e enraizava dessas leais estimas que servem para toda a vida, as puerilidades da aldeia apagavam-se-me pouco a pouco, como lâmpadas sem óleo em templos desertos. Da segunda vez que vim a férias, vestido como um pequeno senhor, de luvas e relógio, pareceram-me desprezíveis as minhas velhas afeições. Fui uma tarde à escola, de chapéu na cabeça e bengalinha de junco. O mestre tratou-me por senhor e sentou-me ao seu lado, corando da superioridade desdenhosa que eu mostrava. Os rapazes ergueram-se respeitosamente como se tivesse chegado o comissário dos estudos. Aquela gentalha de sapatos cardados, véstias de saragoça e camisas de pano cru fez-me nojo, e tive humilhação, pensando que fora assim também, por tanto tempo. Lá estavam nos seus bancos de pinho o Zé Estrelo, o Manel da Pomba e o Rato, de cabelo hirsuto, punhos sebentos e livros amachucados, olhando-me com esses grandes olhos doces que certos cães-d água fitam nos donos em os vendo a comer. Pouca gente entrara de novo na escola. De vez em quando, o mestre batia com a régua na mesa e gritava: 

— Ó lá do canto! Temos paulada não tarda um instante. 

A casa imunda, cheia de cuspo e papéis rasgados, era de uma nudez ignóbil. 

— Aqui não aprendem francês? — perguntei eu com uma superioridade que os meus dez valores na disciplina não justificavam muito.

E nessa noite à ceia, enquanto o meu pai olhava para mim num êxtase e a ternura da minha mãe orvalhava de lágrimas o casto lenço branco que se lhe encruzava no seio, disse passando a mão pela testa e cabelo, como via às vezes fazer aos de Matemática no colégio:

— Lá fui à escola fazer o meu bocado de troça.

Aos catorze anos estava um homem, espigado e pálido, com as olheiras sintomáticas da transição de idade. Era bonito e meigo, com mãos de mulher, que veios azuis reticulavam, como em certos mármores sagrados. As gengivas tinham-se-me descarnado um pouco, fazendo mais compridos os dentes. 

Ardia na aspiração intensa de usar cabelo crescido e fatos de casimira clara. O uniforme negro do colégio e o cabelo à escovinha da ordem torturavam-me o orgulho de rapazinho elegante. O meu grande desejo era ser externo, fumar e ir ao teatro. Um, de Introdução, já crescido, caíra uma vez de um cavalo e a queda fizera-o ídolo da rapaziada. Quem pudera gozar também de semelhante triunfo! — pensava eu por vezes, sentindo um ciúme ardente do herói. Uma mágica das Variedades, onde fomos todos numa noite de Carnaval, patenteou para mim o amplo cenário de um mundo com que o meu temperamento nervoso já sonhara confusamente. O de Introdução emprestara-me um binóculo, o que me permitiu observar miudamente as decorações, os figurantes e os camarotes. As bailarinas e os deuses vestidos de malha apertada, que lhes desenhava todas as linhas dos corpos, fizeram-me palpitações de artérias e securas de garganta. Havia um príncipe louro, de uma beleza sem rival. Amei-o cá fora, anos depois, quando já perdera a frescura e subira em preço — ai de mim! Era uma atrizita de dezessete anos, boca vermelha e falas musicais, vestida de rapaz. Nada mais gracioso que os seus pequenos pés ligeiros, que pulavam ondas, rochedos, abismos e perigos — tudo de lona, é claro. A sua cinta era fina e flexível, e as ondulações do seio cintilavam numa armadura de galão, às escamas. Essa noite foi uma febre para mim, impetuosa, alucinada e tremenda. Que revolta, Santo Deus! Estendido no leito do dormitório, onde seis ou sete dos meus condiscípulos tranquilamente dormiam, eu experimentava dentro de mim o que quer que era de um desabamento. Faltava-me o ar e tudo me andava à roda. Que miserável aquela clausura, regulada a sopa, vaca, arroz e duas peras verdes! E dez horas de estudo, madrugadas peníveis, repreensões, opressões e malquerenças!... Sim, para além do colégio com a sua monotonia de claustros, as suas apostilas, as quintas, os domingos de folga e a roupa lavada duas vezes por semana, outra existência auriflamante tumultuava em amores, em pompas, em perigos e doidas fantasias preconcebidas e logo realizadas. E aquele príncipe louro, aquelas fadas azuis, e as aspirações que o magnésio idealizava de uma fascinação irresistível, viviam, cantavam, amavam ao seu bel-prazer assim vestidos, lançando à roda o cheiro da carne viva e sadia, que chama os famintos de deleites, e faz rolar as libras dos perdulários. O candeeiro apagou-se por noite velha. Ergui-me cautelosamente, em camisa de dormir.

— Quem anda aí? — perguntou, com voz de porta-machado, o Carvalho, prefeito, que fora de lanceiros. 

Aquela voz enregelou-me, e tornei para trás, como se por mim houvesse passado a maldição de Israel.

O de Introdução trouxe-me romances. E a leitura frutificou no campo que a mágica das Variedades havia irrigado. A Filha do Parricida — que esplêndido! “Já leste?” dizia eu a toda a gente. O Filho do Diabo fez-me sonhar. E os Bastidores do Mundo, o Doutor Negro, e os Mistérios de Londres! Todo eu era escadas de corda, alçapões, raptos, personagens mascaradas e juramentos solenes.

No quintal, às vezes, reproduzíamos as cenas terríveis que Íamos lendo às escondidas. Fingindo irmos a cavalo, encontrávamo-nos num recanto da rua. 

— Quem sois? — perguntava um. 

— A lua romperá — respondia outro. 

— Deixai passar, irmãos — fazia o primeiro, e cada qual seguia o seu destino.

Doutras vezes, ao chá, um de nós exclamava arremessando ao Outro um lenço:

— O senhor é um cobarde! 

O insultado erguia o trapo, bramindo: 

— Ah, que essa afronta só se pode apagar com sangue. Amanhã no Bosque de Bolonha, às sete.

— Lá estarei, senhor! 

E íamos dormir em seguida, com o maior sossego. 

Estes devaneios eram positivamente um estado patológico. Estávamos magros e pálidos, adorávamos as noites de luar e as inglesas de olhos claros e tornozelo másculo, que nos domingos de Inverno víamos sair da missa dos Ciprestes, loiras e frescas, apanhando os vestidos. Um piano, uma voz de mulher, qualquer namoro e o menor pormenor da vida das ruas, era para nós um tema de sentimentalidade. Suspirávamos por coisas etéreas e por aventuras trovadorescas. Estudávamos pouco e tomávamos óleo de bacalhau e ferro em pílulas. Aos quinze anos acabei os preparatórios, e, nas férias grandes que se seguiram, o meu pai faleceu. Nas cidades, a morte do chefe da casa chega a ser um episódio sem consequências mais altas que o luto da praxe e duas missas rezadas — quando a família não fica a morrer de fome. Muda-se logo de casa por via de regra, os filhos alargam a esfera dos seus hábitos livres, e fazem aquisição dos vícios que não tinham. Em quatro meses, o fim de cada membro da casa destroncada é comer alegremente as rendas que um trabalho agro porventura acumulou, no espaço de uma existência de acérrima labuta. O campo, porém, conservando muitas das virtudes patriarcais, dá a esta perda um caráter de fatalidade sem conciliação. A viúva envelhece de lágrimas e estiola como uma trepadeira queimada; um dos filhos, se é homem, empreende e continua a tarefa do pai, adquirindo nos hábitos, no amor e no respeito da família o mesmo grau de fervor cego e de obediência dedicada. Senta-se à cabeceira da mesa nas refeições, dirige os trabalhos do campo, recebendo as rendas, ordenando as colheitas e levantando-se mal o buraco luza. Mas o seu governo é todo nominal. Quem ali impera, quem a tudo preside, quem julga tudo e tudo ordena, é o velho, o marido, o pai, o outro, querido fantasma evocado a toda a hora e a propósito de tudo, cujo sudário até vem estender-se de noite, numa alvura de neblina, a encher de fecundante orvalho as vegetações que ele próprio plantou. Quando o meu pai fechou os olhos, eu estava bem pouco apto a retomar o arado que a sua mão exausta deixara cair. Era franzino e branco, de um temperamento irritável à menor emoção, medroso, fantasista e indolente, a quem as duras profissões repugnavam como uma vileza, e a ideia da vulgaridade cheia de um terror supersticioso. A minha mãe chorava a toda a hora com dois irmãozitos ao colo. A casa, silenciosa, parecia um túmulo profanado. Pobres como éramos, se um dia não velássemos a horta e o olival, a miséria bater-nos-ia à porta. E justamente quando ia a entrar na Politécnica!... Não sei como aquele tempo passou. Há coisas que até em ideias são sinistras. Lembro-me que perdi o ano e amei minha prima Marta, uma loira diáfana, que viera para nossa casa, da herdade em que nascera.

Esse amor, que era doce, sincero e casto, deu a nota mais alta na escala romântica daquele período da minha vida. Envergonho-me de o dizer, mas lemos Paulo e Virgínia, Rafael e o Átala em comum, ela vestida de branco porque eu lho pedia, eu de cabelos crescidos e grande lustro de pomadas nas poupas.

Marta, com a sua natureza contemplativa e triste, propendia àqueles lances patéticos da minha imaginação de colegial. Era de uma simplicidade doce e de uma serena beleza, que os seus olhos azuis enchiam de esplendores religiosos. Em ela olhando para mim, eu corava. Toda a minha ambição agora era fazer-me bonito e cidadão, para me impor à sua ingenuidade. Que Primavera a daquele ano! Depois do jantar íamos de braço dado através dos laranjais em flor, num tapete de campainhas, fumárias e malmequeres, ao rumor das noras e sentindo cair a água nos tanques da horta. Os meus irmãos corriam adiante, com chapéus de palha, fazendo chiar os seus carros de pinho. Nós, devagar, sentíamos no aroma nupcial das árvores o quer que era de bênção que vinha em golfadas, sobre as nossas cabeças. E debaixo da velha oliveira secular, que já me protegera os brinquedos de garoto e cujas ramarias artísticas, de tons cinzentos, abriam ao sol o seu toldo amigo, o nosso amor eflorescia tranquilo, como se de cima o olhasse, das folhas e dos ramos, o bom Deus de bondade com que os pequeninos sonham a sorrir.

Aos vinte anos o meu espírito sofrera mais uma transformação. Criara amor pelo estudo e sentira a necessidade de um ponto de vista em ciência, que lhe permitisse sugar dos seus ásperos labores um certo número de noções práticas para a vida de cada dia. O curso de ciências naturais conseguiu destruir o mundo romanesco e labiríntico que eu idolatrava em arte, dando-me certo gosto afinal pelos estudos de observação. Comecei por queimar todos os romances inverossímeis dos srs. Terrail, Reynolds, Féval, Montépin e Zaccone. Depois executei os srs. Feuillet e Feydeau; em seguida fui-me aos poetas e vendi-os a oitenta réis o volume — por escárnio. Nas férias herborizava com um amor de que um ano antes me julgaria incapaz; partia de manhãzinha levando os cadernos de dissecação na bolsa de caça, e um estojo de tubos de vidro, munido de compridos alfinetes no bolso — para as coleções de insetos. Ao cair da noite voltava com duas perdizes à cinta e alguns coelhos, os tubos cheios dos coleópteros caçados, uma multidão de plantas curiosas esmagadas no álbum.

Minha mãe, que não compreendia o meu interesse pelos bichitos, muita vez me olhava surpresa, vendo-me estar horas esquecidas com um áptero no alvo de um microscópio de Raspail, que eu adquirira no leilão de um classificador. Como se ergue lentamente o estore colorido de uma janela, através de que um panorama vivo se enxerga, assim os estudos de análise erguiam de sobre o meu cérebro as fantasias bizarras e piegas, permitindo-me palpar e surpreender a natureza no drama da sua gestação colossal. Longe de me dissecarem as faculdades criadoras e as aspirações saltitantes da imaginação, aqueles trabalhos minuciosos, pacientes e nem sempre coroados de êxito, davam-me às vezes concepções delicadas, de larga elegância artística. Adquiri na frase uma precisão incisiva, de pensador. 

E cheguei a classificar um homem ao primeiro golpe de vista, como fazia a um inseto posto no foco de uma bela lente de crown-glass. A aridez das primeiras tentativas não me arrastou a essa tristeza morna e aborrecida de certos padecentes de dispepsias crônicas. Por esse tempo era eu um grand gaillard vermelho e forte, com mãos sólidas e afeitas indiferentemente às argolas do trapézio, ao cabo da enxada e aos escalpelos do anfiteatro. Comia, como vulgarmente se diz, como um alarve, tinha o sangue vivo e sadio, casto além disso. A residência no campo, após a morte do meu pai, operara a metamorfose do indivíduo anêmico, seco e propenso aos delírios da imaginação voluptuosa, no útil primata de sangue quente e respiração pulmonar, capaz de derrubar a Sé com um soco e ser levado à morte pela mão de uma criança. A reclusão dos livros reporta o homem a uma simplicidade doce e austera de hábitos e emoções, e fá-lo bom, depois de o haver feito grande.

Nenhum tônico mais eficaz à saúde do espírito que a saúde do corpo. Uma enformatura de atleta tem de ordinário um rouxinol por alma. De forma que eu sentia a bondade extravasar de mim como nos tempos bíblicos o óleo de nafta da urna da santa mulher, que ajoelhada ungia os pés de Jesus. Os violentos exercícios em que o esforço muscular se despende, a carreira, a ginástica e a caça, faziam a minha paixão, dando-me o culto da minha própria forma. Erguia verticalmente os dois braços, tendo em cada mão sentado um dos meus irmãozitos — coisa que assombrava o Zé Rato e fazia contentes os garotos. Diante dos grandes espetáculos em que a natureza expende a mãos plenas o jogo ícaro das suas forças harmônicas, a minha alma tinha frêmitos de asas como as andorinhas que vão atravessar o oceano. A vacilação fatalista do período lamartiniano fora substituída por uma compreensão lógica dos fatos, por uma tranquilidade honrada à ideia do futuro e pelo testemunho da mais sã consciência. Entrei afazer religião do trabalho, o que me permitiu não pensar mais em Deus, tendo-o sempre no coração. As mulheres eram concordes em que a minha beleza era superior à minha amabilidade. Uma senhora achou-me uma noite a conversação de um lente. E algumas diziam de mim “Pretensioso!” — porque lhes não falava das locais amorosas e das revistas de modas. 

Compreende-se que o meu entusiasmo puritano por tudo quanto era grande não sobrasse para o espartilho das sirigaitas que se me agitavam no caminho. 

Assim modificado, tinha agora o mais completo desprendimento pelo que se chama gozar. Apagara-se-me o ideal pelintra de muito folhetinista imberbe, que consiste em ser cumprimentado à porta da Havanesa por três burgueses que passem, mostrar todos os Invernos três pares de calças novas sobre dois de botas velhas, e um plastron vistoso num seio tuberculado.

A ostentação e a exterioridade enfastiavam-me como certos cheiros de ácidos vegetais. Odiava em geral o ruído e o luxo, não achando digna de um homem sério qualquer das lânguidas que nos passeios e nos teatros via desfilarem, monótonas e sorvadas, por diante de mim. No seio dos meus papéis ou na intimidade flagrante da natureza em festa, sentia-me outro homem, respirando saudavelmente e digerindo às mil maravilhas; uma alegria penetrava-me, com essa intoxicação anódina do gás hilariante, nos organismos nervosos, e eu crescia e revigorava, sentindo a vida como um benefício sem preço. Foi durante esse tempo, o mais laborioso, o mais infatigável, o mais útil e o melhor de toda a minha vida, que pude realizar as coleções de insetos que hoje pertencem à Escola Politécnica e me valeram os emboras dos grandes trabalhadores da Europa, e estudar quase completamente a flora continental que Brotero deixara lacunosa. Nestes trabalhos depurara-se minha sensibilidade ao extremo de me comover perante uma bela árvore ou ao cabo do estudo de qualquer complicado coleóptero. Um indivíduo vegetal cativara o meu amor ardente, apaixonado e ingênuo. Era ainda a oliveira que desde a infância me oferecia a sua sombra benéfica, a sua ramaria frondente e a enorme corpulência secular do seu tronco. Que grandeza, a desse gigante, que uma espécie de bondade envolvia e divinizava!...

Aos cinquenta anos tinha os cabelos brancos e a pele rugosa. A minha mulher, de compleição doentia, dera-me filhos sem saúde e de sensibilidade estranha. Eram pequenos pálidos, de grandes olhos ardentes, mãos febris, frágeis e curiosos, cujo futuro me fazia tremer.

Estava cansado e velho. Toda a vida sentira pelo dinheiro um desprezo sem limites, não lhe dando a honra sequer de o acumular. Perdera a vista do olho direito, aos trabalhos do microscópio. Era mais pobre que no tempo do meu pai — tinha apenas do meu o olival. Para economizar, dirigia eu mesmo os trabalhos do campo e andava vestido de saragoça. Às vezes, vinha-me o remorso de não ter alcançado uma fortuna para essas pobres crianças, que a perpétua contemplação do mesmo panorama parecia enlutar de melancolias negras e de pressentimentos funestos. Pouco a pouco, à medida que os anos me polvilharam de neve os cabelos, ia experimentando uma irritação surda pelo meu passado laborioso, mas estéril, dessa coisa vil e preciosa chamada moeda. Não tinha senão despesas; lucros, raros! Então reneguei da heroica abnegação de outros tempos, tornando-me vulgar, macambúzio e cheio de admiração pelos lavradores opulentos da vizinhança, que recolhiam vinho às adegas e trigo aos celeiros. Os filhos deles espezinhariam talvez um dia os meus filhos, vingando a imbecilidade dos pais da orgulhosa superioridade com que eu os tratara. Os filhos deles seriam felizes, cheios de confortos e prazeres, com a faculdade de estudarem onde bem quisessem, e de fazerem fortuna como bem lhes parecesse. E os meus, mal enroupados, doentios e invejosos — quem sabe se, conhecendo um dia a minha história, maldiriam a intransigência do meu caráter e a pouca solicitude com que lhes tratara dos interesses!

Os meus dias então eram levados em percorrer o olival, no cálculo dos litros de azeite que me renderia a colheita... Que desalento aquele meu! As árvores não carregavam todos os anos: enchia-as de pragas, e maldizia a minha vida. 

A oliveira secular somente, compreendendo a minha situação e adivinhando a angústia daqueles passeios solitários, procurava com frutos abundantes compensar o modesto tributo que as outras árvores tão custosamente me pagavam. Fora para mim a eterna mãe afetuosa, de cujos ramos pendera criança; a benévola confidente que cobrira do seu dossel de folhagens o meu amor por Marta, o esplêndido e vitorioso vegetal diante de que o meu êxtase de botânico tantas e tamanhas vezes tinha exultado. O amor que eu lhe votara sofrera as quatro fases de todos os amores da vida humana, em transigência sempre com a orientação do caráter e com o progredir dos anos. Fora, primeiro, o amor de criança incoerente e doido; fora, mais tarde, o amor de adolescente, idealista e rêveur, representativo da idade em que o homem desagrega da alma as crenças inocentes e começa a participar da influência dos primeiros instintos másculos. Transfeito no amor de sábio elevaram-me até regiões altívolas. — Depois, no Inverno da vida, aquela emoção arcangélica primeiro, impregnada de poesia radiosa depois, e tornada sublime por fim, decaíra no vil egoísmo, que mais prefere aquilo que mais rende, impressão sem grandeza e sem ideal, derradeira eflorescência da alma obcecada pelos interesses, pelas amarguras e pelas opressões! 

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