9/28/2017

A estreia de Cinira Leste (Conto), de Medeiros e Albuquerque


A estreia de Cinira Leste

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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O empresário Simões tinha tido uma ideia. Caso raro e digno de menção, porque ele não se abandonava frequentemente a tais violências. Era um tipo calmo, metódico, absolutamente destituído de imaginação. Dessa vez, porém, saíra do sério e resolvera fazer uma coisa à europeia. Pelo menos lhe haviam dito ser essa a prática de alguns empresários europeus.

Um dia, cada mês, decidira dar um pequeno espetáculo no qual atrizes, figurantes, coristas ou empregadas do teatro poderiam representar qualquer coisa, à sua escolha. Alguém lhe falara do êxito desse sistema em um teatro de Paris.

Tratava-se de uma coisa sem publicidade nenhuma. No meio do dia, aceso apenas o palco, sentadas na plateia às escuras as raras pessoas que desejavam assistir à prova, a candidata à exibição representava para aquele grupinho. Era assim um ensaio privadíssimo.

O primeiro espetáculo desse gênero não foi um sucesso. Simões e quatro amigos vieram para a plateia e duas coristas arriscaram-se. Uma exibiu-se dançando. O seu ideal era tomar parte em algum bailado e quis mostrar o seu talento. Foi medíocre. A outra manifestou mais ambição: recitou um monólogo: — A caça da borboleta.

Em verdade, ela não o disse mal. Infelizmente, porém, era extremamente gorda e, quando fazia os movimentos destinados a ser leves e graciosos, o sacudir das suas rotundidades anteriores e posteriores comprometia tudo.

Um dos assistentes perguntou baixinho, no ouvido, ao Simões: "Você está bem certo de não ser a caça do elefante?"

Simões o fez parar:

— Cala a boca, maledicente.

E encorajou, em voz alta, a candidata.

— Assim se começa!

O maledicente ainda perguntou a Simões:

— Tu achas todo aquele monte de toucinho apenas um princípio? Safa! Marcou-se a nova audição para daí a um mês.

Sucedeu então uma coisa pouco banal: orna atrizinha sem importância, Cinira Leste, precisamente naquele momento desaproveitada, pediu para representar. Queria — nem mais, nem menos, pequena de topete! — representar a peça em exibição.

Era um drama condensado em três atos breves. No primeiro, a heroína figurava como uma rapariga ingênua chegada de fora para uma grande capital. Divertiam-se com a sua inexperiência. No segundo ato, já figurava como uma cortesã de renome. No terceiro, a roda tinha desandado: estava pobre, doente, desdenhada.

O que havia de literariamente bom no trabalho do autor era ser cada ato quase inteiramente cheio com uma só grande cena, escrita do mesmo modo nos outros. O talento da atriz incumbida de representar essa peça estaria em fazer diversa a atuação de um fraseado quase completamente idêntico, mostrando primeiro a ingênua, depois a dama galante, cínica e petulante e, por fim, a desdenhada, caída na miséria.

O papel estava entregue à atriz Lídia Sorrento. Era uma mulherona grande, gorda, vistosa, sem talento algum. O empresário a suportava, porque o amante dela, um sujeito rico, a impunha. E como mais de uma vez ele emprestara dinheiro ao Simões, não havia remédio senão ceder-lhe.

Cinira era o contrário dela. Podia quase caber dentro do regalo da grande atriz. Não tinha, como o Simões dizia, meio metro de altura, mas teria, quando muito, entre 1,30 e 1,40. Era levezinha, fina, vibrante. As colegas lhe chamavam "o mosquito elétrico" E o apelido, vulgar e tão mal empregado em outros casos, no dela não podia ser mais justo.

Mas era um mosquito encantador. Colega excelente, sempre, ao chegar ao teatro, tinha uma frase amável para cada pessoa. Nunca se zangava com as pilhérias feitas com ela. Colecionava-as, repetia-as. Desarmava assim os que pretendiam irritá-la. Quando alguém lhe repetia qualquer desengraçada sensaboria, ela lembrava outra no mesmo gênero, mas de muito mais espírito.

Tendo pensado em representar o mesmo papel atualmente em exibição por Lídia Sorrento, foi logo, com a lealdade habitual do seu caráter, a esta e disse-lhe a sua intenção, perguntou-lhe se se zangava com isso. Lídia Sorrento, enfatuada como de costume, divertiu-se muito com a ideia e zombou implacavelmente da sua modesta coleguinha:

— Então, tu, mosquito, queres me macaquear? E dava risadas escarninhas.

Cinira lhe respondeu. Precisamente, a sua escolha provava como era grande a sua admiração por ela; mas, se a coisa a contrariava, desistia absolutamente.

— Contrariar? Não! Nada! Eu acho intensamente cômico.

Simões se aproximava e Lídia Sorrento, eombando sempre, falou-lhe no caso, mesmo na vista de Cinira.

— Deu-lhe para aí. — disse o Simões filosoficamente. — Mas se V*** se zanga. Lídia repetiu o que dissera. Achava a tentativa divertida. Quanto a assistir ao ensaio, isso, não. Tinha ocupações sérias. Cinira estimulava-se com estas alfinetadas; mas não deixava perceber nada. Era sempre a mesma criatura risonha, encantadora.

O momento do ensaio chegou. O Simões, mamando um grosso charuto, instalou-se na terceira fila da plateia. Com ele estavam cinco outras pessoas entre as quais o Ildefonso, último anista de medicina e — a sua ocupação mais séria — o amante de Cinira.

— Vieste ver o brilharete da pequena? — perguntou-lhe o Simões, troçando.

— Ou o fiasco — emendou ela modestamente.

Mas a peça ia começar. Cinira obtivera dos dois atores, que deviam dar-lhe as réplicas, que o fizessem. Abriu-se o pano e a representação começou.

Digna de ver-se foi a atitude de Simões. Ao princípio, só estava empenhado em uma coisa: em chupar o charutão, a entupir-lhe a boca. Depois, esqueceu-o inteiramente e ficou a olhar para a pequena Cinira. Alguém, perto dele, disse qualquer coisa. Agitou a mão no ar, impaciente:

— Cala a boca!

Quando o primeiro ato acabou, ele deu a mais formidável prova de emoção: agarrou o charuto e jogou-o no chão, a distância, com toda a força.

— Mas esta rapariga tem talento!

E tomando o Ildefonso, com quem tinha a maior intimidade, pelo braço, empurrou-o para os bastidores:

— Vai lá dentro dar uns beijos em tua pequena. Ela os merece.
E voltando-se para os outros, comentou:

— Mas é uma revelação!

E foi mesmo. De princípio ao fim, Cinira se mostrou uma grande artista. Todos saíram, comentando o fato. Ninguém dava nada por aquela vaga pessoinha, a quem distribuíam ou papéis de criada, com duas ou três frases, ou até papéis mudos.

O mais espantado era o Simões. Em certo momento, ele teve, na sua linguagem nunca apurada, esta confissão:

— Eu pensei que não fosse uma besta e soubesse conhecer quem era e quem não era uma boa corista. Esta pequena estragou-me a minha opinião sobre mim mesmo.

Não parecia, porém, do fato pudesse advir nenhuma consequência. À noite, Lídia Sorrento, entrou, escarninha como sempre, perguntando:

— Então o Mosquito me macaqueou menos mal?

Deram-lhe respostas evasivas.

Cinira, quando ela lho perguntou, foi gentilíssima:

— Só tive um merecimento; foi fazer todos estarem pensando na Senhora e lastimando sua ausência.

Lídia não se abalou com essa delicadeza. Pelo contrário. Replicou orgulhosa.

— Isso sabia eu.

Mas sucedeu uma coisa absolutamente imprevista. Lídia tinha nos últimos tempos tomado uma casa em um subúrbio longínquo, porque a fraqueza pulmonar de um filhinho a assustava. E talvez a única nota boa nessa mulher fosse o amor materno. Era carinhosa, dedicada, sempre pronta para tudo por amor do filho pequeno.

A casa em que estava, embora confortável e boa, ficava isolada, até mesmo sem comunicações telefônicas. O menino tinha então cinco anos.

Ora, justamente no momento da peça ir começar, uma mulher do povo entra no teatro, fez esforços para falar à Lídia e comunicou-lhe terem raptado o filho da atriz.

Lídia ficou alucinada. Declarou ao Simões não poder ficar. Sairia... Não se importava com consequências. E, de fato, disparou por ali a fora. Disparou como uma doida, tomando o primeiro automóvel. Nada a pode conter.

O Simões ficou esmagado. Que fazer? O teatro estava cheio. Era a hora do espetáculo. Mudar de peça? Mas para qual?

Nesta atrapalhação, valeu-lhe uma sugestão de Ildefonso para experimentar a Cinira. O Simões hesitou. Mas o Ildefonso tinha toda a liberdade com o empresário. Concitou-o à experiência e empurrou Cinira para explicar o caso ao público. E ela o fez.

De repente, viram o pano abrir-se e a atrizinha apareceu, dizendo que um acontecimento terrível, absolutamente imprevisto, impedia a grande atriz Lídia Sorrento de representar Ela, Cinira, fora designada para substituí-la. Era a primeira a reconhecer quanto a substituta estava abaixo da substituída. Sendo assim, os espectadores, desejando sair, podiam fazê-lo, porque receberiam na bilheteria o preço de suas localidades.

Estava visivelmente comovida.

O Ildefonso, que se esgueirara para uma cadeira vaga na primeira fila da plateia, mal ela acabou, pôs-se em pé e gritou bem alto:

— Ninguém sai! Ficamos para vê-la!

Aquela voz imperiosa, respondendo por todos, embora sem procuração de ninguém, teve um efeito mágico: ninguém, de fato, saiu. E como já estava na hora e soaram as pancadas do contrarregra, o espetáculo começou.

Começou — e foi magnífico. O primeiro ato era precisamente aquele no qual a heroína, uma rapariguinha desembarcada do interior, estava ainda canhestra, tímida. Cinira representou o papel tanto melhor quanto outra não era a sua situação psicológica.

O público, ao princípio desconfiado, seguia o desenrolar da peça com crescente simpatia. Foi sob grandes, sinceros, unânimes aplausos que ela acabou o ato.

Simões rejubilava. O susto de ter de restituir as entradas passara. Em certo momento, ele disse nos bastidores ao Ildefonso:

— Como seria bom se os bandidos raptassem também a Lídia!
O espetáculo acabou de um modo triunfal. Cinira foi chamada à cena várias vezes. Nunca se tinha visto aquilo.

Havia duas sessões. Acabada a primeira representação seguia-se imediatamente a segunda. Os espectadores da segunda estavam admiradíssimos.

Ia precisamente entrando essa turma, quando Lídia Sorrento voltou. Não tinha querido deixar o Simões em embaraço e, tendo verificado ter sido um engano, pois não havia nada, nada, absolutamente nada com o filho, voltará, para ver como as coisas se tinham arranjado e se era ainda precisa.

— Quem foi que me substituiu?

— Cinira!

— Pobres espectadores! Eu imagino a macaqueação indecente feita por ela.

E correu para o camarim, a fim de vestir-se. Chegava a tempo. Vendo o Simões, gritou-lhe de longe.

— Previne o público!

Que remédio!? Era quanto havia a fazer. Simões desempenhou-se a contragosto da sua missão.

Mas o público da segunda sessão tinha ouvido os aplausos a Cinira e houve um que gritou:

— "Queremos Cinira Leste!"

Foi um rastilho. A sala inteira começou a dizer, em compasso, escandindo bem as sílabas: — Ci-ni-ra Les-te! Ci-ni-ra Les-te! Ci-nira Les-te!

Com isso o Simões não contava. Alguns marcavam cada silaba, batendo com as bengalas, mas o coro não parava:

— Ci-ni-ra Les-te! Ci-ni-ra Les-te! Ci-nira Les-te!

O Simões estava doido. Como ia ser para prevenir Lídia. Nisso, aproximou-se do camarim dela. E Lídia simplificou as coisas aparecendo à porta. Dali se percebia o rumor, mas não se ouvia distintamente o que a plateia estava gritando.

Lídia, radiante, perguntou ao Simões:

— Estão reclamando por mim?!

Simões, fora de si, não sabendo como descalçar aquela bota, gritou-lhe desorientado:

— Estão sim. Vai ouvir.

E Lídia foi. Teve então uma crise de furor. Entrou no camarim, tomou seus objetos e precipitou-se para a rua a tomar um automóvel. Ia como uma jararaca assanhada, furiosa, fora de si:

— Nesta bodega ninguém mais me apanha! Cinira, não sabendo bem o que se estava passando com a colega, ia-se preparando para sair sorrateiramente, quando Simões a viu, precipitou-se, tomou-a pelo pulso:

— Pequena, não me ponhas ainda mais maluco. Tu vais representar.

E foi anunciar o caso ao público: a peça seria levada à cena pela jovem artista Cinira Leste. O anúncio foi acolhido com uma salva de palmas.

E o espetáculo correu como nunca no teatro até aí nenhum outro. Cinira ficara inteiramente senhora de si. Pela terceira vez, naquele dia representava a peça. Estava, pois, com ela na ponta da língua. Animada pelos aplausos do público, não tinha mais hesitações. Foi estupenda. Foi maravilhosa. Espectadores, tendo visto aquilo várias vezes, experimentavam a sensação de assistir uma coisa inteiramente nova.

Dos lados do palco havia dois camarotes. Em parte ficavam mesmo sobre ele. Eram da direção do teatro.

Quando o último ato estava em meio, num desses camarotes entrou o autor da peça. Era o Guilherme Pires, um homenzarrão de quase dois metros de altura, um verdadeiro gigante. Alcunhavam-no dantes por isso o "Pirão". Depois dos triunfos de um boxeador italiano gigantesco, Primo Carnera, passaram também a chamá-lo assim.

Alguém lhe disse na cidade o que estava sucedendo com a peça dele, e o Pirão, o Primo Carnera, correra, apavorado, para ver o desastre. Quando entrou no camarote, Cinira começava a última cena, a grande e longa cena decisiva. Não o viu. Foi bom, assim não se perturbou.

O Pirão ficou assombrado. Era admirável. Nunca ele imaginara aquilo. Estava em êxtases, seguindo o jogo da pequena Cinira.

Quando a cena acabou e com ela a representação, houve uma tempestade de aplausos. Muitos na sala conheciam o autor e começaram também a chamá-lo. Ora, gritavam: "A cena o autor!" ora, gracejando: "A cena o Pirão!", "A cena, o Primo Carnera!" — porque todos lhe conheciam as alcunhas.

Guilherme Pires, com uma pernada das suas pernas enormes saltou para o palco. O público, pronto para partir, — todos de pé, ajustando as capas, pondo os chapéus — aclamava Cinira e ele. Mas o Pirão fez um gesto rindo e gritou:

— Cala a boca, pessoal!

Fez-se um grande silêncio e ele lhes falou:

— Ninguém tem razão para me aclamar.

Eu tinha feito uma pecinha insignificante, aplaudido por complacência, por generosidade do público. De repente, surge este pedacinho de gente (nem se sabe se é mesmo gente ou um mosquito, ou um miquinho — o mais lindo dos micos) — e faz da minha baboseira uma grande peça. Quem o público deve aplaudir não é a mim: é esta admirável criaturinha.

E antes que Cinira pudesse prever esse ato, ele a tinha tomado pela cintura, levantado e sentado em um dos seus largos ombros de gigante. Cinira esperneava como uma criança, o público delirava de risos e de aplausos. Nessa apoteose, o teatro se escoou.

No automóvel, voltando para casa ao lado do Ildefonso, Cinira lhe disse:

— Afinal, foi uma sorte aquele engano, graças ao qual a Lídia saiu.
O Ildefonso replicou:

— Não houve engano nenhum: quem mandou levar a notícia falsa fui eu.

— Ah! bandido!

Mas deu no "bandido" um longo e gostoso beijo, em cheio, na boca, borrando-o bem de carmim.

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