9/16/2017

A ideia da comadre Mônica (Contos), de Fialho de Almeida


A ideia da comadre Mônica

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Logo nos fins de setembro, quando tinham caído as primeiras gotas de chuva, o Canelas tratou de encetar a sua vindima. Não era cedo já, a falar sério. Havia duas semanas que o Garrocho começara, e que muitos lavradores tinham aberto os seus lagares. A novidade prometia. O Verão ia temperado, no Inverno não chovera de mais, e desta moderação de clima provinha a riqueza dos cachos e a vigorosa maturação dos frutos. Feitas as contas, o Canelas devia seis moedas ao todo. O da Vanga emprestara-lhe três libras para comprar o jumento na feira da Vidigueira; devia quatro meias coroas ao boticário, da doença da mulher; devia ao médico; devia uns fiados na loja; oito mil réis, das casitas. Se fosse feliz na colheita da uva, pagava tudo e ainda guardava a sua tarefazita de vinho. Deus ia ajudando um homem, dizia ele para a mulher, e quando o pequeno fosse crescido melhor passariam. Assim, uma bela manhã, o Canelas com a mulher e o filho deitaram caminho das vinhas, mais o burro. Pela estrada iam encontrando os ranchos de vindimadores; os rapazes trigueiros e musculosos da freguesia, ceifões e polainas, os chapéus, de grosseiro feltro, derrubados para diante; grupos de raparigas, de sangue vivo, grandes olhos ardentes de meridionais, os cestos ao quadril; velhos trabalhadores corcovados, de barrete, alforje ao ombro, atrás dos seus jumentos vagarosos, felpudos e pacíficos; pesados carros de duas rodas calçadas em chapas de ferro, luzentes do atrito no saibro das estradas e pejados de enormes cestões de verga, para o carrego das uvas. A cada volta do caminho convergiam veredas por onde os magotes derivavam, dando “Boa fortuna!” aos que se dirigiam para outro sítio. O campo naquele tempo começava a perder o viço. Entre vinhedos de um verde carregado, emaranhado e pitorescamente confuso, alastravam-se a perder de vista os ferragiais amarelos, secos de raízes do trigo ceifado, onde as ovelhas mansíssimas, sonoras de chocalhos, pasciam destroços, as ervagens finas dos barrancos, os fenos fibrosos dos córregos e as gramíneas deixadas nos valados. A região, sem grandes depressões atrevidas, sem cordilheiras de arestas a prumo, oferecia à contemplação um aspecto sereno de ondulações graduais, moldadas quase na mesma curva regularíssima; toda a zona abrangida num olhar, sofria o cultivo solícito e amigo da aldeia próxima, branca aglomeração de casinholas de taipa, sem estrutura regular, desenhada no fundo cinzento, metálico e um pouco triste das grandes oliveiras de troncos fendidos. A leste, no esfumado anil da massa de ar, linhas quebradas de vales distantes esboçavam-se risonhamente na luz da manhã. Nos limites da freguesia, a herdade assinalava-se com azinheiras gigantes e sombrias, grandes braços peludos de musgo, contorcidos como numa desesperação sem remédio, contra o risonho céu transparente, bordado pelo algodão das nuvens em farrapinhos tênues, como um capricho de criança. O Canelas dirigiu-se à sua vinha, que ficava distante.

— Olha se nós recolhemos este ano um potinho de vinho!... Vendido, dava bem para um porco de quatro arrobas.

— O vinho há de estar barato — disse a Luísa, a esposa.

— E eu hei de ter uns sapatos — gritou o garoto, saltando com os seus rijos pés imundos, na poeira da vereda. O burro, de orelha pendente, o passo refletido, o olhar tristonho e lírico, ia caminhando, todo coberto de moscardos. À frente de todos, o cão Bedelho corria e ladrava às perdizes. O ar aquecia, o Sol rebentava no céu a cascata da sua luz crua e candente, enquanto nos silvados e nas faias do próximo ribeiro os garotos dos melros, na frescura úmida das folhas espalmadas, faziam troça da companhia. 

A vindima durou-lhes quatro dias, e a novidade fundira-lhes bem. Foi um tempo alegre, o que passaram. Enquanto a Luísa, toda arregaçada, de chapeirão nos olhos, colhia os frutos mais o filho, cantando, o Canelas, com uma vara de marmeleiro, dirigia o burro carregado com dois cestões cheios, da vinha para a aldeia, e com outros dois vazios, da aldeia para a vinha. Quando acabaram o tráfego, houve jantar de carne, para que foi convidada a vizinha Mônica, madrinha do rapaz. E à noite, na banca da casa de fora, jogaram-se cartas, a Padre-Nossos.

— Quando for tempo — disse a Luísa à comadre — há de provar um copinho do nosso. — A Mônica arrebitou a penca, um riso guloso.

— Agora para o Inverno, que é para aquecer. — E vieram as confidências, os orgulhos do bom governo de casa, a feliz plenitude de não deverem nada a ninguém, senão obrigações. Tinham pago ao médico, tinham pago à botica, ao da Vanga os oito mil réis das casas... E ainda, na despensa, ao canto, fervia a talhita de mosto, objeto das mais caras esperanças e base de uma abundância de chouriços em casa pobre, no Inverno que ia entrar.

A Mônica, seca figura de viúva pobre, seios chatos e estéreis, um grande lenço de chita preta no pescoço, as contas de louça desfiadas a Glórias e a Salve-Rainhas durante a monotonia dos serões, roía-se de inveja, um riso amarelo de comilona e de desamparada. E formulando bons desejos que não sentia, ia pedindo a Deus desse aos compadres tanta fortuna como desejava para si própria. O casal agradecia. O Canelas, a espaços, esfregando as grossas mãos de cavador, observava:

— Esternos pagos e satisfeitos! Cinco senhoras! 

— Esternos pagos e satisfeitos! — E, em coro, todos formulavam planos de futura propriedade: a compra de uma courela à Barrada, a aquisição de uma adega e a postura de bacelo, nas terras da Pichaleira. A Luísa tinha precisão de um capote de pano para ir à missa; indagava da comadre qual era o preço, queria do bom!

— O meu — dizia a Mônica — custou-me quatro sobranos. Ainda foi no tempo do meu homem, que Deus tenha. Que hoje!... Quero um trapo de uma saia e tenho de o ganhar.

Desde aquela festança, a Mônica cresceu de desvelos para o afilhado, vinha todas as manhãs saber como tinha passado a comadre, e como estava o pote do vinho.

— Nada para sustância como dois dedos de sumo. Logo pela manhãzinha, que regalo!...

E armavam grandes palestras a respeito do tempo, das lavouras, dos casamentos e dos escândalos. A filha do Cardoso estava maluca pelo Francisco da Balsa. Contavam-se coisas bonitas. O mundo ia por água abaixo. E, por transições sutis, aludiam ao pote da despensa. Um domingo provaram. Era todo vermelho, transparente e fluido, de um aroma delicado de roupeiro e moscatel. “Boa gota, comadre! Sim senhoras. Boa gota!” dizia a Mônica, beberricando. E com um estalo de língua: “É de rachar pedras, caramba!” — De tarde sentiram a cabeça pesada e foram-se deitar muito vermelhas. No outro dia, outra. Cada vez sabia melhor. O rapazito estava na escola, a tratos com o Monteverde. À noite, depois da ceia, o Canelas ia logo para a cama, cansado de cavar desde o romper do sol nas fazendas dos senhores proprietários da terra, e não dava pela falta. Elas, as duas, em se apanhando sós, era aos quartilhos. E dilatadas em narrativas eróticas de frades, de estudantes e mulheres infiéis â honra conjugal, passavam as tardes juntas e os serões, com grandes risadas, uma profusão de gestos e de palavras, certa licença de epítetos, reparável. 

Finalmente, pelo Natal, o Canelas foi emechar o seu vinho, segundo o uso. Destapou o potito: Que diabo!... Estava quase meio. Chamou a Luísa, todo desconsolado.

— Ó mulher, não sabes? Temos o pote em meio. Quem tirou daqui o vinho?

A Luísa debruçou-se, muito admirada. 

— Santo nome de Deus! — exclamou. E com um acento choroso: — Ora vejam a nossa desgraça! 

— Tu bebeste-lo, mulher! — afirmou o Canelas. Ela encarou-o duramente, sem resposta. O Canelas aprumou-se, colérico. 

— Tu vendeste-lo, mulher! — A Luísa voltou-lhe as costas, desdenhosa. À tardinha, depois de uma cena violenta, o Canelas saiu. A mulher foi a casa da comadre contar tudo, pedir conselho. A Mônica depôs a meia, tirou os óculos gravemente. 

— Ai, não tenha receio. Esta noite, arranja-se.

— Mas como, comadre, como? Se ele sabe de tudo, ai espinhela! — Foi para casa cheia de medo. O Canelas voltou à noite para cear, taciturno, abatido, sem dar palavra. Bateu no pequeno mal achou pretexto, atirou o chapéu com mau modo ao entrar no quarto da cama, resmungava:

— Estas bêbedas, senhores!... — Não dormiu toda a noite, a pensar no seu vinho e a amaldiçoar a hora em que casara. Mas não vira nunca a Luísa alegre, não tinha motivos de suspeita. Havia bons anos que não guardava vinho. O pote, de barro, estava talvez seco, era poroso, tinha seis gatos no bojo, podia ser que absorvesse, ou deixasse sair o mosto. Mas tanto!... Deram dez, deram onze, deu meia-noite, e ele às voltas na cama. De repente sentiu correr no telhado. Pôs o ouvido à escuta. Ouviu rir. Uma voz gritou: “Canelas! Canelas!” Riam, aos pulos, nas telhas. “Canelas!” Santo nome de Jesus! Era o diabo! Chamou a Luísa: — Ó mulher! Não ouves? “Canelas! Canelas!” — Começou a rezar o Credo, enganava-se no meio, começava outra vez, não sabia concluir. Diziam:

— Vamos ao vinho! — E a correria continuava. — Vamos ao vinho! — O pobre estava em apuros, varado de medo.

No outro dia, mal luziu o buraco, saltou fora da cama, vestiu-se às apalpadelas, pôs a manta ao ombro, agarrou nos alforjes, desprendeu o burro e partiu para o trabalho. Tinha a cabeça em água, não se lhe tiravam da mente os gritos e as risadas. Canelas! Canelas! Então, as bruxas andavam com ele? Vamos ao vinho! Vamos ao vinho! E senti-las-ia correr no telhado todas as noites, aos berros e às gargalhadas, distribuindo os seus pobres almudes pela comunidade, e ainda em cima escarnecendo. Durante o dia viram-no metido consigo, acabrunhado, carrancudo, dando enxadadas na terra desesperadamente, a suar como um cavalo. 

Ao cair da noite entrou em casa; a Luísa estava ao canto da chaminé, diante do lume de azinho, o xale pela cabeça, aspecto adoentado e beato, o rosário entre os dois dedos. Demais, grávida de cinco meses...

— Ora santas noites!

— Santas noites! 

Reparou na postura da mulher, tão finadinha como um carapau. 

— Que é isso? Estás doente? 

— Deixa-me, ando morrendo, mesmo morrendo. Todo o santíssimo dia com febre, calafrios, dores. Ai!... e nas cruzes.

— Mas o que é? 

Ela disse choramingando: 

— Não vivo muito, não! 

O Canelas comoveu-se: 

— Estás doida! — E solicitamente, achegando-se: 

— E a respeito de vontadinha de comer, há? 

— Nem nada, marido. Ainda hoje me não entrou migalha nesta boquinha de Deus. Tudo me sabe mal. 

— Mas não apeteces nada? Chá e fatias; mata-se o galo. 

— Ai, não! Só apetecia uma coisa. Mas não, é melhor não. 

— Diz o que é, anda. Se for caro, compra-se ora!...

Ela ficou calada, rezando automaticamente.

— Então, que dizes? Que apeteces? Vamos. 

— Olha, o que eu comia bem agora eram uns peixinhos da ribeira das Sormarias. Tenho mesmo vontade, mesmo de dentro. — O Canelas foi logo albardar o burro, agarrou num cesto e pôs-se a caminho, sem querer ouvir mais.

— Não tenha algum desmancho — ia ele dizendo. 

Apenas lhe não sentiu os passos, a Luísa correu a chamar a comadre. Entraram ambas na despensa. Tinham metido o resto do vinho num odre; uma agarrou por um lado, outra por outro, e arrastaram o couro túrgido até à porta. Era noite fechada e ninguém passava na rua. Das chaminés evolava-se o fumo dos lares, ouvia-se rir nas habitações das famílias, e um cão latia no campo, sem eco, enquanto, acalentadas no berço, as crianças choravam. Dali a pouco as duas viram chegar o Coxo, taberneiro, pesada figura de velhaco, apoplético, gorro sebento, um riso desdentado de patife, ironias bestiais, navalha.

— Venha o bago! — disse a Mônica. — O Coxo quis roubar-lhe um beijo. A Luísa ocultara-se atrás da porta.

Podia ter vindo mais cedo — disse a velha. Estendia as mãos ao preço do odre, dizendo:

— São três almudes, tinto; a quartinho, três mil e seiscentos. Sete meias coroas e mais um tostão. Barato como pouco. — O Coxo de o dinheiro, pegou no odre, e foi-se depois de ter cingido amorosamente o estafermo. 

— Agora — disse a Mônica — venha a minha comissão e aqui tem o dinheiro.

A Luísa deu-lhe seis tostões.

— Vamos à ribeira — disse ainda a velha. Embrulharam-se nos xales, fecharam a porta; à socapa, saíram para o campo, e apenas na estrada, deitaram a correr. Era quem mais podia, por aquelas ladeiras, acima, em direitura à ribeira. 

Ai que arrebento! — dizia a viúva, arquejante, a espaços. Afinal chegaram ao sítio. Pararam, em conferência.

— Tu vais para o outeirinho de lá. Eu fico, mesmo em frente, agachada na rocha. — Assim foi. Não viam nada à roda. O céu pesava de grossas nuvens caliginosas e trágicas. Esbarravam com as azinheiras seculares, caíam sobre carrascais e tojeiros. Nas trevas, as ramas torcidas pelo nordeste tinham gestos agressivos, de réprobas. Por todo o campo, quando passava a rajada, sentiam-se risos abafados, segredos de feiticeiras, a sombra mexia-se, ondulava, tinha transmutações sinistras. O Canelas, no entanto, estava metido à água, com o cesto no braço puxando a linha da isca, ainda não conseguira apanhar peixe; o medo agoniava-o. Se as bruxas soubessem que estava ali!... De repente, caiu uma pedra na ribeira, e esboroamentos de terra foram descendo, como deslocados por pé em falso. 

— Mau! — E o anzol não prendia. — Diabo!... 

Pareceu-lhe que diziam segredinhos nas barranceiras, acima da sua cabeça. Andava gente em cima, viu um vulto acocorar-se. 

— Ó camarada! — gritou ele, em tremuras. Tudo calado. Puxou a linha; nada! De repente, uma voz moribunda chamou:

— Berrabás! 

Outra respondeu: 

— Satanás! — O Canelas não sabia de que terra era! O que faria à sua vida? Ali acabava naquela noite. Benzeu-se. Iam dar cabo dele, espetar-lhe agulhas nos rins, meter-lhe à força um sapo nos dentes... Tornou a voz: 

— Vamos afogar o que está na ribeira? 

— Não, que a mulher está rezando o rosário à Virgem. 

— Olhem se a Luísa não tem ficado rezando ao lume, hem? Santa mulher!

— Como ele estava agradecido às suas orações!... 

— Berrabás! 

— Satanás. — Um cão uivava funebremente, no casal do Peles. O Canelas batia os dentes, deixara cair o cesto. O vento dava risadas de escárnio, dançavam as azinheiras e o céu fazia ouvidos de mercador. A voz insistiu: 

— Vamos afogar o que está na ribeira? 

— Não, que a mulher está rezando à Virgem. 

Dali a nada: 

— Berrabás!... Satanás! 

— Vamos a beber-lhe o vinho? — O Canelas pulou: — Com mil raios! 

— Vamos. 

— Vamos a partir-lhe o pote? 

— Vamos. 

O desgraçado ergueu as mãos desesperado e murmurou chorosamente: 

— Ai a minha desgraça! Ai o meu rico vinho tinto! 

Alta noite, a Luísa, enrolada sempre no seu xale, rezando sempre as suas contas ao canto do lar, viu romper pela casa dentro o Canelas esbaforido, sem peixes, sem anzóis, sem sapatos, sem chapéu, sem manta, alagado em suor, trêmulo de medo e morto de cansaço. Contou tudo à Luísa: 

— E vai, ouvi dizer: “Vamos a beber-lhe o vinho? Vamos. Partimos-lhe o pote? Partimos.” Tu sentiste alguma coisa, mulher? — A Luísa persignava-se, com os olhos em alvo.

— Eu nada — disse ela. — Não senti nada: uma coisa assim!...

Foram ver à despensa. Tinham bebido o vinho e o pote estava em pedaços. Entraram a chorar. Veio a comadre. 

— Que é lá isso de prantos nesta casa? — disse ela, aflita. Contaram-lhe. 

— Pois eu lhes juro que as bruxas nunca mais os perseguem. Sei as orações de as afugentar. 

De fato, nunca mais tornaram, nem bruxas nem boas vindimas, nem potes de vinho.

Tal foi a ideia da comadre Mônica. 

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