9/16/2017

O tio da América (Conto), de Fialho de Almeida


O tio da América

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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“Há tempos — escrevia Sabino de Sousa Pancada, comerciante de secos e molhados no Pará, ao seu único sobrinho e futuro herdeiro, Alfredo Carvalhosa, já naquele tempo pai de dois pequenitos e esposo da boa Maria do Resgate —, há tempos que medito uma viagem à Europa, com residência demorada no meu país natal. Vai em trinta anos que aqui estou e nem uma só vez tornei a ver Lisboa. A velhice traz-me saudades. De forma que por estes três ou quatro meses mais próximos aí me tens, prezado sobrinho. Arranja-me quarto ao pé dos teus pequenos, de quem me lembro tanto como se os tivesse visto alguma vez. O Artur, principalmente, é a minha paixão. A fotografia que me mandaste ultimamente pinta-mo como um querubim, pobre criança!...” 

— Aquilo é homem de ouro! — ponderava o Carvalhosa para a esposa, mignonne sadia e fresca, que tornava o ninho sonoro da música dos seus risos. — Honrado a mais não! E homem inteligente! Quando daqui saiu não passava de um pobre rapaz sem proteções e sem chelpa, infeliz no ofício de seleiro que lhe mandaram ensinar e devorado de febre e desgostos. Isto contava o meu pai que Deus tem, de uma vez aparece-nos em casa, de chapéu à brasileira e xale-manta, a pedir a bênção aos tios e declarando que se partia para o Pará, na barca Ligeira, do Neves. Cada qual fez por tirar-lhe semelhante mania dos cascos. “É morte certa!” dizia a minha mãe. “É tolice de meter os tampos dentro!” ponderava o meu pai, que fora da alfândega de consumo. 

Apesar de tudo, o tio Sabino abalou. Quatro anos depois tinha o estabelecimento na Rua de Gonçalves Dias, e hoje é rico como os primeiros negociantes do Pará, despacha gomas, jinguba e óleo de palma, negocia em velames e cabos, tem fazendas no interior e dinheiro nos bancos, subscreve com grandes quantias para os monumentos e obras úteis do seu país, socorre os parentes, estudou nas horas vagas e sabe onde tem a cabeça, coitado!

— E homem de sessenta anos! — juntou Maria do Resgate, afagando os cabelos louros do Artur... 

— Deus lhe acrescente a vida, que por me julgar habilitado à herança e não esqueço da amizade com que o bom velho me tem recebido. 

— Nem eu!

— Nem eu! — gritou o Artur, que era tido em casa como um precoce extraordinário, e já tocava no piano pedacinhos da Madame Angot.

— São horas, vou-me para o serviço — disse o Carvalhosa dando nas testas da família os três beijos sacramentais.

Era do correio havia dez anos, vida trabalhosa mas sofrivelmente paga. Nessa noite tinha de seguir para Elvas em comissão de serviço. Estava-se em Fevereiro, tempo úmido e lamacento. O Carvalhosa andava um pouco encatarroado. À porta do correio tirou o lenço para se assoar, e à volta para casa, caminho do jantar, notou que perdera a carta do tio Sabino. Não lhe deu aquilo grande cuidado, a falar verdade. Tinha-a metido no bolso da inglesa provavelmente e, ao sacar o lenço, caíra-lhe. Nunca Deus lhe desse maiores cuidados! Esteve até à noite com a família, rindo das doidices do Artur e contemplando, com deliciosa emoção de pai, o soberbo grupo de Maria do Resgate com o mais pequenino ao peito. Tivera sempre pelo lar aquela adoração lírica e sã que o devotava corpo e alma à família, e o parecia guiar no trabalho como essas grandes estrelas cujo deslocamento conduz através do deserto as pobres caravanas melancólicas. Era feliz, realmente. Nunca passara os tempos maus de certos desgraçados surpreendidos no berço pela pobreza árida ou pela desolada orfandade. Perdera o pai quando o emprego lhe rendia quinhentos mil réis, já o Artur era nascido. Anualmente, nos meados de Julho, o tio Sabino presenteava o aniversário do pequeno com uma inscrição de cem mil réis, várias latas de doce de tijolo, uma dúzia de cuias pintadas a escarlate e branco, e basta coleção de plumas e cofres com embutidos Índios. 

O asseio e o bom gosto de Maria do Resgate rebrilhavam na disposição dos móveis, de uma conservação viçosa, na simetria dos quadros de gravuras ou oleografias, na brancura dos umbrais, na nitidez dos papéis, na graça simples dos reposteiros de cretone e das cortinas de cassa, na harmonia impagável dos bouquets de rosas e dálias cortadas no quintal e radiantes à vista em jarras de porcelana esmaltada, sobre a cimalha do velho aparador de carvalho, a preciosidade da casa, que a esposa trouxera. 

Desde os quinze anos que tinha sonhado o futuro assim — uma casa limpa, uma mulher fresca e risonha, bons dentes e hálito suave, dois pequenos fortes, braços brancos e olho ingênuo, em cujo azul cerúleo revisse, como num espelho, a sua ventura pacífica e doce, de casado. E mais tarde a riqueza bafejá-lo-ia, trazida pelo tio Sabino, bom velho cuja solicitude lhe dava uma comoção. Poderia ver o Artur num palacete de jardins umbrosos e rumores de cascatas, médico ou engenheiro, e de bigode, com um coupé bem polido e uma parelha bem gorda. E o mais pequenino, também, de militar, com prêmios e galões atravessando ao entardecer a Baixa sobre um cavalo branco, no meio dos suspiros das herdeiras ricas. Por esse tempo seria ele um velho e Maria do Resgate também. Vinha-lhe um pena sincera de não ter vinte anos quando os pequenos os fizessem, uma espécie de ciúme da intimidade que eles viessem a dispensar aos amigos, e do amor que prodigalizassem infrutífero a qualquer dos alegres pecados mortais de Espanha, que a matilha cerca de um prestígio canaille de bacantes. 

Às quatro horas jantaram. Era uma quinta-feira fria, sol límpido e grande pureza de ares. Ao largo o rio, visto daquela altura, tinha um espanejamento de enseada, em leque. Um pano de fundo, de cordilheiras e nuvens às camadas, caía de cima, fechando o horizonte. Os barcos corriam à vela no rio, e o fumo dos vapores da carreira enodoava o azul plácido. — Subia o pregão das ovarinas descalças e o rumor dos trens, circulando. Uma espécie de bondade despregava bênçãos, de cima do azul em cúpula, que as pombas cortavam de adejos castos, como lenços saudosos que palpitam, fazendo adeuses à terra. 

Abriram uma garrafa de porto, à sobremesa. O Carvalhosa quis saber se estava o farnel aviado — partia às oito horas no comboio de Santa Apolônia, e demorava-se três dias. — Escusava de gastar no bufete.

— Tanto tempo! — disse amuada Maria do Resgate. 

— Mas é serviço, que remédio, senão obedecer...

— E eu que fique sozinha para aqui!

— Manda chamar a tia Prazeres — aconselhou o marido. — Já te fica companhia.

— Não está em Lisboa. Foi acompanhar o genro a Vila Franca. 

— Ora! três dias correm num momento. Deixa lá, filha. 

Bebiam a pequenos goles aquela alegria cor de opala, que polvilhava carmins de vida nas faces e reluzia nos olhos com uma cintila garota. 

— Quando chegará o tio Sabino? — perguntou o Carvalhosa. 

— Tem tempo — respondeu a mulher. 

— Damos-lhe o nosso quarto, quando ele vier. É o mais espaçoso e o que tem melhor papel. Demais fica ao pé da sala... 

— Exato. É preciso comprar dois metros de alcatifa, que a nossa está velha. E outro candeeiro, de globo. 

— Isso depressa se faz. Estava-me agora a lembrar de uma coisa, que tinha imensa graça.

— Que é? 

— Se ele chegava por aí amanhã ou no outro dia; enfim, quando eu estivesse fora.

— Mas nunca o vi! — disse Maria do Resgate. 

— Era por isso que tinha graça. As dúvidas em que havias de ficar!... Mas espera. E o retrato que vinha dentro daquela maldita carta, que perdi? lá se foi também, com os demônios!

— Deixa. Não se perca o tio, o mais não faz transtorno. 

— Egoísta! 

— Tens os olhos luzidios, agora reparo. 

— E tu as fazes tão coradas, menina! 

O Carvalhosa tornou a encher os cálices. E, tomando o seu, tocou-o com o de Maria do Resgate, para uma saúde. 

— Pela felicidade dos nossos pequenos! — disse o marido. 

— Vá lá — acrescentou Maria do Resgate —, pela felicidade dos nossos pequenos! 

Beberam. Então o Carvalhosa mudou de lugar para vir sentar-se entre a mulher e o Artur. E baixando a voz disse: 

— Sabes que falta uma menina no nosso rancho. Não gostavas? 

Ela corou toda, e baixou a vista, rindo com os seus dentinhos gulosos. 

— Toleirão — murmurou, torcendo-lhe a orelha. 

— Artur! — disse o Carvalhosa. 

— Papá! 

— Ficavas muito contente se eu te desse uma irmãzinha, meu filho? 

— Oh papá, eu antes queria um cavalinho. Dê papá dê... 

— Que destempero! — fez Maria do Resgate com riso doce. 

Eram seis e meia da tarde, noite já.

— Vou vestir-me — disse o Carvalhosa. — Pois não sabes? Tenho a cabeça leve.

O corredor estava às escuras, e os passos do Carvalhosa soavam, já no quarto. Maria do Resgate acendeu uma vela e entrou com o pardessus de viagem. O marido assoprou a luz, e ergueu-a ao colo, vigorosamente. 

— Não faças bulha, que a rapariga está na casa de jantar — segredou-lhe ela, toda trêmula.

Às sete horas, o Carvalhosa beijou os pequenos e partiu. 

— Ó papá! — gritou da janela o Artur.

— Que é isso?

— Não se esqueça da manazinha, não?

— Já a encomendei, descansa.

No dia seguinte, quase duas horas da tarde, bateram à porta e a criada veio dizer que estava um senhor de idade. Maria do Resgate foi ver. Apenas ela apareceu, um homem já ruço depôs no corredor uma pequena mala de couro, e abrindo os braços estreitou com a maior franqueza a pobre rapariga, pespegando-lhe três beijos muito repenicados nas bochechas.

— Querida sobrinha! querida sobrinha! — fazia ele repetindo os abraços, com uma ternura que os seus cabelos brancos tornavam honesta. E detendo-se a notar o embaraço e o rubor da pobre mãe, observou:

— Tu não me conheces, hem? E toda espantada a olhares para mim? Eh! Sou o tio Sabino Pancada, o do Pará, o que escreveu há duas semanas. Não te mandei um retrato? Vê lá se estava parecido olha bem.

Mais risonha já, Maria do Resgate levou-o para a saleta, bem ao pé da janela e esteve a mirá-lo. Era homem alto e magro, maçãs salientes e enormes suíças em cipreste, óculos escuros e cabelo à escovinha. Tinha as grossas mãos de um trabalhador, dedos nodosos e unhas chatas, o olho sereno dos fortes e a pele requeimada.

— Pois é o tio? — disse ela adoravelmente. — Ah, como estou contente em o ver, não faz ideia! Tanto que lhe devemos tanto! Sucedeu justamente o que o Alfredo pensava... justamente! Uma coisa assim, não.

— Então que pensava o meu sobrinho?

— Ontem à noite, antes de partir...

— Quê? — fez ele com espanto, penalizado — partiu?

— Às oito da noite de ontem para Elvas, em serviço do correio. Que ele é do correio, há mais de dez anos. O tio deve saber.

— Sim, sim, é do correio. Mas que pensava o excelente rapaz?

— Disse-me assim; muito havia de rir se por estes dias, enquanto eu andava por fora, te aparecia aí o tio Sabino.

— A passagem tem graça; palavra que tem!

— E vai, disse-lhe: “Oh filho, mas eu nunca o vi mais gordo!” Modos de dizer! “Pois era por isso mesmo que tinha graça. A cara com que tu ficavas!...” Porque na verdade não o fazíamos em Portugal tão cedo. A carta dizia por estes meses. Já o tio vê...

— Decerto, decerto. Mas uma pessoa não faz sempre as coisas como as premedita, filha. Às vezes pensa-se assim, e sai assado. Principalmente no comércio! De modo que recebi um telegrama do meu correspondente em Paris e tive de embarcar no paquete mais próximo. Cheguei agora mesmo. Venho enjoado do mar e aborrecido da vida a bordo. Que maçada, não imaginas! Vocês dão-me cá cômodo em casa, como eu lhes mandava pedir? Apesar de viver só no Pará, tenho sempre pena de não haver arranjado família. É como um homem vive feliz. Eu fico em qualquer canto, não se incomodem vocês.

— Eu mando arranjar o quarto num momento. E venha o tio ver os pequenos, o seu afilhado e a casa. E tomar alguma coisa, que deve trazer vontade.

— Não será mau, não será mau.

— Artur! — chamou toda radiante a Maria do Resgate.

Uma criança apareceu de bibe curto às preguinhas, todo garrido de rendas e entremeios. Era forte e vermelha, de grandes olhos e boca pequenina. Tinha uma barretina de cartão na cabeça e uma espada na mão, meias de lã às riscas, ares de guerreiro vitorioso.

— Eh maroto! — fez o tio Sabino com um movimento para agarrar o pequeno.

— Quem é, mamã?

— O teu padrinho, pateta; pede-lhe a bênção e dá-lhe um beijo. — O pequeno obedeceu.

— Gostas de mim, gostas? — inquiria, fazendo inflexões ternas de voz, o velho comerciante. E para o entreter prometia-lhe caixas e caixas de bonitos que trouxera na bagagem, para ele só. Cobria-lhe as faces de beijos, dizendo: — Pareces-te com o teu pai, tens o ar e os olhos da nossa gente, marotinho. E louro e valente, eh!... 

Maria do Resgate dava ordens na casa de jantar, revolvia as gavetas do linho rico para a cama do hóspede; ia-se estrear a colcha de damasco amarelo, com pássaros, que o Carvalhosa adquirira num leilão. E dos guarda-louças saía a melhor porcelana inglesa, quase transparente, com filetes delgados, de caros esmaltes em mosaico. Quando tio Sabino entrou na casa de jantar teve como um deslumbramento. As crianças saltavam-lhe nos joelhos fazendo perguntas sobre tudo; as cortinas de cassa, afastadas para a banda, deixavam entrar o sol tépido de Inverno e a pureza incomparável do ar. Pelas janelas, abrangia-se o panorama mais vasto e pitoresco da cidade e do rio; os canários cantavam celebrando a alegria da hora e comendo a alface fresca e tenra presa nos arames das gaiolas; no aparador de carvalho, de ferrarias cinzeladas, as frutas e as passas, às pinhas nos açafates das Caldas e umas fruteiras de vidro, sorriam em disposições simétricas; tinham posto flores frescas nas jarras e descoberto a face de cristal polido do faqueiro de prata em estojo de veludo cereja. Um gesto, um conforto e um asseio aromáticos pareciam cristalizar naquele interior a felicidade doméstica, como um diamante nos três dentes de um engaste. Havia um só talher, mas as crianças pediram mais lanche e foi preciso, para as satisfazer e agradar ao tio Sabino, sentá-las à mesa, aos lados do velho, doido de alegria e cheio de comoções de ventura.

— Vocês aqui devem ser muito felizes — dizia ele mirando tudo. — Vê-se de tudo isto que devem ser bem felizes. Ah!... eu nunca tive família, senão criança. Que bem que isto faz!

E dilatado referia a sua história, os contratempos dos primeiros anos, a avareza febril com que são contadas, embrulhadas e adoradas as primeiras economias, a cidade de projetos construída à medida que se avança no negócio, a doida embriaguez com que se recebem as primeiras felicitações quando nos pressentem ricos. Que mundo de aéreas fantasias, que titilamentos de ambição sem termo!... 

Por três ou quatro felizes, sessenta e mais partidos da pátria com entusiasmo, saúde e esperanças, e cedo entregues à miséria, ao envilecimento e à morte. — E referia as casas de malta das cidades americanas, onde numa promiscuidade ignóbil apodrecem dezenas e dezenas de pessoas; os miasmas das respirações acumuladas e dos corpos sem higiene; as ásperas fadigas sem paga, dos miseráveis sem proteção!

O seu ideal fora sempre um ninho como aquele de Maria do Resgate, no meio da família e entre crianças loiras. — Maria do Resgate sorria às expansões calorosas do velho, satisfeita de o ver contente e comovida da história daquele trabalhador infatigável, que só captara as simpatias da riqueza ao cabo de trinta ou quarenta anos de labuta. Sem querer, tinha reparado numa coisa — o tio Sabino não oferecia na pronunciação o menor ressaibo brasileiro. O Alfredo apontara-lho como homem inteligente e amigo de leituras; bem podia ser por conseguinte que aquela correção no dizer, um pouco lisboeta porventura, fosse esforço de estudo e evidente resultado da resistência ao contágio. Não pensou mais em tal, dali em diante. O chapéu do Chili, as botas de larga tromba, a pele seca e trigueira, a longa barba corredia e os dentes encravados em gengivas fofas de cárie, atestavam de sobejo o negociante do Pará, enriquecido pelo trabalho de toda a ordem, e filtrado durante longos anos, através as gradações que vão da miséria ao conforto. A refeição durou muito, porque o tio Sabino era falador, e a cada passo interrompia a mastigação para fazer festas aos pequenos ou dar palestra à Maria do Resgate.

Quando se ergueu da mesa, um rubor se lhe alastrara na pele. Pediu licença para acender o velho cachimbo de cipó, representando um tigre cingido por uma boa, coisa, segundo afirmava, sem que não podia passar depois da comida. Foi até à janela, e esteve largo tempo debruçado ante o panorama magnífico da cidade cheia de sol. Tinha nos dedos enormes anéis de brilhantes, e um grosso cordão de ouro lhe servia de corrente de relógio. Os cabelos, um tanto raros nas fontes, arrepiavam-se-lhe para trás, descobrindo os ângulos de uma testa abaulada, de teimoso. O nariz astuto e cartilagíneo era móvel nas asas, caindo aduncamente em gancho. Sorrindo, uma contração franzia-lhe as comissuras da boca roxa. Era antipático à primeira vista, mas a voz e a palestra insinuavam-se, agradando. Maria do Resgate foi dar a última vista de olhos pelo quarto que a criada acabara de arranjar, e voltou dizendo: 

— Que estava pronto e quando o tio quisesse...

O negociante não se fez demorar. Ia mudar de roupa e saía até ao jantar a fim de conduzir as bagagens, e encomendar camisas no Leão da Europa, mais modernas.

— Pois, vá, vá — dizia a Resgate, de aventalinho branco. E tagarelando: 

— O tio desculpa-me a desordem que vai por essas casas, sim? Como não esperávamos... E demais tenho uns engomados.

O quarto era a alcova do Carvalhosa, forrada de branco, frisos de ouro aos cantos. Ficava ao centro o leito de ferro fundido, ornado da colcha de damasco amarelo e envolto nas amplas asas de um dossel de casquinha dourada, onde dois pombos trocavam beijos em frente da janela uma consola com pedra branca sustentava um grande espelho oblongo, de moldura negra e serpentinas aos lados. Do outro lado, sobre a banca de noite havia um despertador de cristal e uma palmatória de prata dourada, com vela. O quarto era contíguo ao toilette de Maria do Resgate, e a porta aberta permitia observar a desordem daquele interior; frascos destapados, sabonetes úmidos diluindo na água das bocetas de porcelana, água suja no lavatório, uma caixa de prata fosca representando um pêssego, aberta, com pó-de-arroz, à borda do tremó em ferradura; ao canto a banheira tépida exalando perfumes de Água Farina e vinagre de Lubin, uma dúzia de anéis sobre um cofre; escancarado, o guarda-vestidos, e uma gaveta aberta mostrando um cofre de joias, lapidado, em que as pulseiras, as medalhas e os pingentes se enroscavam tremeluzindo, em volutas de serpente fantástica. Justamente, por instinto de vaidade, Maria do Resgate não fechou a porta que separava daqueles aposentos o quarto do tio, querendo que ele visse a sua riqueza, pudesse aspirar os perfumes de que ela fazia uso, ficando ciente dos mil cuidados em que envolvia o corpo branco, de burguesinha garrida. Do toilette ia-se para a sala e para o escritório do Carvalhosa. Havia no escritório um contador de charão com ferrarias maltesas que tinha abertas as portas e a chave na fechadura — era onde se guardava o pecúlio adquirido e acumulado. O tio Sabino percorreu rapidamente os três compartimentos, sala, escritório e toilette que comunicavam entre si, e por onde se podia entrar por duas portas, pela da sala que dava para a escada, e pela da alcova onde ia dormir. Bem! Lançou ruidosamente a água na bacia do lavatório, tirou o fraque de cheviote cinza, arregaçou as mangas da camisa de chita, e atirou com as botas. Lavava as ventas, bufando de satisfação. Dobrou cuidadosamente o fato que despira, e meteu-o na mala donde já fizera sair uma rica farpela de pano preto. Pôs camisa lavada e envergou a farpela nova. Diante do espelho apartou a guedelha, e sacudiu a poeira das botorras, cantarolando: 

Ai — i — ó — ai! 

Quem escorrega também cai. 

E, paramentado de rico, fez ainda sair da maleta de couro uma espécie de saco de lona com fechos de correias. Debaixo da cama, por esquecimento, tinham ficado as alpargatas do Carvalhosa. O tio Sabino calçou-as, as suas narinas palpitavam. Correu o fecho da porta cautelosamente, foi até ao escritório do Carvalhosa e sacou da gaveta do contador uns rolinhos de libras; de passagem pelo toilette arrecadou o cofre de joias, os anéis e a caixa de pó-de-arroz; de cima da banquinha de noite desapareceu a palmatória de prata dourada e tudo foi arrecadado no saco.

Ai — i — ó — ai! 

Quem escorrega também cai. 

Fechou destramente o saco, tendo-lhe metido primeiro a camisa de chita que despira, a fim de não tinirem dentro os metais. E de chapéu à banda e cachimbo na boca saiu, o saco pendente, fechando a porta e tirando-lhe a chave. Ninguém estava no corredor; Maria do Resgate engomava na saleta; as crianças na cozinha cortavam papagaios, chilreando. 

— Até logo, minha sobrinha, até logo. 

Ela veio correndo, com o seu riso afetuoso. 

— O jantar é às cinco, sim? Mas, querendo, dá-se ordem para mais tarde. 

— Qual! Não temos precisão de incômodos. Às quatro e meia estou. 

Deu-lhe dois beijos na testa, levantou ao colo os petizes dizendo-lhes calinices. A moça abriu a cancela para ele sair. 

— Tenho bem que dar às pernas ainda hoje — ia dizendo o tio Sabino. — Ir à alfândega, ir ao cônsul, ir à camisaria, ir tomar medida de roupa ao alfaiate... Até logo, até logo...

E com a mala pendente, o lenço escarlate fora do bolso do fraque e a bengala debaixo do braço, desceu a escada, cantarolando: 

Ai — i — ó — ai! 

Eram seis horas da tarde e nada do tio Sabino. 

— Talvez se demorasse na alfândega. 

Sete horas, e Maria do Resgate acaba de notar a porta da alcova fechada. Diabo...

No dia seguinte a polícia andava em campo para descobrir o larápio, que com tamanha pilhéria roubara a família Carvalhosa. Nem o hábil Antunes, nem o sagaz Castelo Branco, nem o astucioso Ferreira conseguiram coisa alguma. 

É necessário cuidado com os tios da América. 

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