9/11/2017

A paixão (Conto), de Manuel de Oliveira Paiva



A paixão

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Daquela varanda ela assistia perfeitamente às cerimônias. É ver­dade que ali, por ser mui alto, sentia-se toda aquela calidez incômoda todos aqueles eflúvios do corpo humano viciando o ar e subindo invisi­velmente a enrubescer-lhe a tez e a perseguir-lhe o nariguinho afilado; mas por isso o mesmo estava constantemente a agitar o seu grande leque de seda, que afastava-se e aproximava-se do seu coração como uma enorme borboleta negra.
Havia claridade pouca, suficiente porém para o livro da semana santa poder espelhar-se no olhar calmo e profundo e inocente, as carreirinhas de tipos muito negrinhos no papel branco.
Todavia, a falar verdade, aquelas palavras não podiam despertar-lhe ideia alguma, visto como em um só peito não se podem abrigar dois amo­res ao mesmo tempo, pela lei física da impenetrabilidade.
E assim, descansava o olhar, que era o veículo por onde o seu es­pírito mais se impressionava, percorrendo vagamente o grande todo do templo. Tudo era vendado.
A vidraçaria pintada do coro impregnava de palor os lados do imenso vulto escuro do órgão. Os cantores, de preto, arrumavam-se entre os fiéis que invadiam o recinto a eles reservado, e nem o pavilhão do oficlide bri­lhava com o seu reflexo de arame.
De um lado, ali no coro, muito no sombrio, aglomeravam-se em or­dem as educandas do colégio, e via-se o chapéu das irmãs de caridade, como grandes aves que querem voar. A ordem superior de varandas, bi­lateralmente, estava repleta; e a inferior, com os seus balaústres brancos e o seu coreto de linhas de cadeiras ascendentes.
Era como num teatro em que houvesse enchente à cunha.
As grossas colunas da nave pareciam caçapar-se ao peso das pa­redes altíssimas.
Grandes véus negros encobriam as duas capelas colaterais. Nas aras ardiam velas de cera de um amarelo sombrio e cru, em castiçais pretos, e cada nicho estava transformado numa janela escura.
O doirado das obras de talha destacava-se apenas, bordando o custoso emolduramento dos altares, como uns longínquos luzimentos mundanos.
Lá dentro da capela-mor as janelas de varandas auribrancas esta­vam penumbreadas. Do enorme pano que tocava no teto e erguia-se ao fundo do templo sentia-se baforar toda aquela escuridão que se equili­brava no ar, e dilatava-se por todos os cantos. O mármore róseo do arco da capela-mor abria um íris sobre aquela nuvem negra; e lá no tapete multicolorido, os padres, uns de batina e sobrepeliz de rendas, outros de alva e casulas cor do sol, diziam segredos em voz alta, ora paravam, ora iam, ora vinham, ora assentavam, misteriosos, vagarosamente, lendo em grandes livros, queimando incenso, e soltando para o espaço, como aves negras, umas após outras, as notas tristes do cantochão. A fumaçinha como prateada do incenso perdia-se logo.
Algumas vezes punham a mitra, depois de beijá-la, sobre a fronte encanecida do diocesano, e este levantava-se com o seu rico cajado de ouro. Aparecia, às vezes, com o seu roquete de finíssimo bordado, com a batina roxa, e a sua murça que lhe dava uns ares reverentes, e o grosso trancelim com a cruz cravejada caindo sobre o peito e o seu anel de es­poso da igreja; às vezes com pesadas capas de rei, com púrpura e ar­minhos; às vezes com a longa santidade das vestimentas pontifícias.
Mas o sentimento dos fiéis não estava geralmente para esse recinto dos sanctus sanctorum, para o simbólico erudito das cerimônias, para a piedade do ato. Dentre aquela multidão a mais não poder, com o es­pírito lia-se os espíritos na direção ou no vago das pupilas, na atitude dos ouvidos, nos lábios em sorriso, em conversação, ou em recolhimento, na fronte, no porte, no todo compungido ou disfarçado, religioso ou mundano.
Da capela do Sacramento ouvia-se o bater de um martelo, ensur­decido, acolchoado e, de quando em vez, a rangedeira abafada de uns passos cautelosos. Naturalmente, preparos de novas cerimônias.
Grunhiam os pesados gonzos de uma larga porta sumida num dos corredores, entrando ou saindo alguém, e um jato de claridade franca e diurna despejava-se pela igreja. Depois voltava o escuro.
Nas altíssimas janelas da nave, que dão para cima dos telhados, o dia salpicava apenas pela fímbria dos tristes véus pretos, e ornava de estrelas os buraquinhos do pano. Pedacinhos de claridade caíam esfa­rinhados na parede. O órgão às vezes mugia, às vezes balava ou solu­çava e gemia, acompanhado pelo violoncelo, pelo oficlide, pela flauta e pelo delgado violino penetrante sob o grosso esvoaçar das vozes dos cantores.
Era uma provocação desabrida para as lágrimas.
E, enfim, no púlpito suspenso na parede, cujo caiamento parecia repassado do esfuminho, apareceu o padre, um rapaz gordo, alvo, risonho, fazendo muito por tornar-se carrancudo, com as largas mangas de seu roquete caindo sobre a toalha que arrodeava o corpo da tribuna.
Virou-se para o santuário e persignou-se largamente.
E, depois, com as duas mãos nas bordas do púlpito, debruçando-se para o auditório, começou, alto e pausado e vibrante:
Et inclinato capite... tradidit spiritum!...
E toda aquela multidão distribuída e apinhada pelos corredores, pe­las varandas, pelo coro, pelo corpo da igreja, pelo pé dos altares, por to­dos os cantos, prestou olhos e ouvidos.
O pregador se destacava bem. Um pouco acima de seus cabelos crespos ficava o alto da porta, ornado de um frontão que despedia uma auréola, como um sol desabrolhando. O corpo da tribuna findava em uma maçaneta, para baixo, como um cacho de uvas de ouro atado à ponta de uma cortina. E todos olhavam para cima, e o padre continuava na pla­cidez da sagrada eloquência.
De quando em vez saía-lhe como um raio trêmulo, como uma faísca elétrica entre os rebordos das nuvens aclarados e escurecidos momen­taneamente.
E prosseguia a chuva abundante da palavra de Deus.
Como a terra ensopa com o inverno e faz nascerem as sementes no agreste, assim as almas estremunhavam, acordavam e, metidas no sombrio, na luz coada, no morno, despertavam da carne pecaminosa e esterilizada...
Em dado momento, apareceu nas mãos do pregador uma tela pen­durada, um lençol branco e nele estampada a imagem de um homem des­pido, com uma toalha nos rins.
E, em lágrimas, num trêmulo crescente, a mão vacilante, cheio de dor, o padre murmurava choroso:
— "Ei-lo, ei-lo, o vosso pai, o vosso amigo, o vosso irmão, o vosso Jesus... ei-lo... assim maltratado, assim golpeado... Esta cabeça cheia de ciência, rasgada por uma coroa de espinhos; este coração fonte do amor, atravessado por uma lança; estes joelhos, que só se dobraram para levantar os mortos e curar os enfermos, descarnados até os ossos; estas mãos repassadas de divino eflúvio, esmagadas barbaramente por duros cravos; estes pés, que palmilharam sobre as ondas, conjuntamente ar­repelados e arrebentados por um cravo dilacerante; estes ombros... estes ombros, vede-os cristãos, vede-os, como ficaram no peso da cruz... ve­de-os..."
E a mor parte dos fiéis soluçava... Já não se via aquele contínuo e embastido movimento de leques pela superfície da multidão. Ouvia-se um guincho de uma mulher nervosa e o assoar do bendito muco do choro santo...
Sentia-se uma consternação inexprimível.
Eu ajoelhava prostrado ante a divina figura do Mestre e o meu olhar trespassava-lhe também o coração fonte do amor. Mísero pecador, su­mido na multidão, quisera que me visse, que soubesse que eu lhe quero bem. E parecia-me de seu peito cair o sangue tão puro e verdadeiramente como caiu no Calvário. Eu tinha vontades de lhe gritar — Eu te amo por­que tu sofres!
Entretanto, senti que no coração dele também outro olhar estava abrigado, e que o meu espírito, que lá estava, pergunta: — Que quereis? E quase o outro olhar me pergunta o mesmo.
Inquirimo-nos, entretanto, conjuntamente: — Aqui não é a fonte do amor?
E as duas almas, feitas uma para a outra, encontradas lá dentro do coração de Jesus, disseram-se: — Bebamos, pois, da fonte do amor!...
O padre continuava, mas nós não entendíamos. O meu corpo inane caía cada vez mais sobre os joelhos, numa adoração profundíssima. E do sudário desaparecera o Jesus sanguinolento, para pintar-se ela com o seu vestidinho preto e as suas pulseiras de ouro, a olhar-me para meu coração soluçante.
O padre me apontava era para os lábios mudos de sentimento, e para sua fronte livre de pesadumbres. E gritava-nos: — Amai, arrepen­dei-vos do tempo perdido...
E eu apertava o meu peito com as duas mãos.
E adormecido, entorpecido, ignorante, alheio, tomado de dor e de ventura, ouvi as últimas palavras: et tradidit spiritum... e entregou o seu espírito.

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