9/11/2017

De preto e de vermelho (Conto), de Manuel de Oliveira Paiva


De preto e de vermelho
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Um jaquetão encarnado, com enormes botões de papelão, estava a cair das costas da cadeira. Enroscava-se pelo tijolo uma calça de chita. Um colete azul, com um correntão fofo, escanchava-se, como por acaso, no punho da rede, e no relógio levíssimo escapado da algibeira lia-se uma hora e uns minutos mais adormecidos que o próprio dono. A camisa, toda manchada, como se fora de um assassino, esparramava-se no pó, e adivinhava-se por baixo dela a forma de um chapéu de feltro. Um sapato pisava na mesa, revirado, entre os livros e os frascos.
Da porta entrecerrada estendia-se uma nesga mais clara, e pelas telhas penetrava em pequenas linguetas simétricas o dia exterior.
O tinteiro, entornado, com o fundo azul para cima, com a larga boca embeiçava a tinta derramada como um lago de água preta. Erguida sobre a mesa a estante, com os livros silenciosos de rótulos disparados com a ocasião, uns em pilha, uns escorando-se nos outros como bois de carro.
Engoiavam-se no cabide roupas de linho servidas, uma robe de cham­bre de chita alegre, e andainas diárias. Algumas peças caídas redobra­das pelo próprio peso. Num gancho um paletó branco retesava as man­gas bilateralmente. Sentia-se um odor de raízes, de poeira, e de suor.
As varandas da rede não denunciavam o menor movimento, e den­tro dela se estendia um corpo quase na direção das águas tranquilas.
Entretanto, positivamente, o rapaz não dormia, embora estivesse insensível à cócega que fizessem as patas de uma mosca passeando-lhe pelo nariz.
Ele estava era num baile de máscaras, melhor do que verdadeiro, aumentado, completado, com delícias e com horrores...
Ele sentia atroar pelos salões a pancadaria da quadrilha pavorosa e danada e louca, vermelha como o sangue vivo, e negra como uns olhos que conheço.
Donzelas trajadas fantasticamente... mancebos de máscara levan­tada...
Através da vidraçaria colorida ele, do seu galope onde o assoalho fugia, avistava duelos sob as espirradeiras do jardim à luz do gás notívago,
Aconteceu encontroar num par cuja dama vestia de rainha do oriente... Havia grupos de homens de ponto em branco nas portas. Além sobressaía um resplendor nuns cabelos castanhos... Tremeluziam as co­res das fantasias... Viam-se braços nus, colos nus... E um adorável cheiro de virtude envolvia tudo como a luz dos grossos candelabros.
De mãos dadas, apertava e afrouxava o cordão dos pares en avant tous... O círculo entrava a ondular-se na grande chaine como as escamas de uma cobra que caminha. De vez em quando uma enluvada mãozinha demorava-se mais na dele, e, temendo o choque dos olhares, punha-se a vista era no peito alheio com uma polidez disfarçada... E sen­tia-se ali uma irresistível atração virtuosa de sexo a sexo. Que enorme diferença entre aquele sarau cearense no pleno gozo das regalias da ins­tituição da família e as danças orgiáticas onde ele oxidara o rijo ferro da sua juventude!...
Positivamente, o rapaz não estava dormindo... Agora ia de braços, com outros muitos, e no jardim, na grande luz das lanternas, debaixo da grande noite das estrelas, libavam, trocavam ideias, gargalhadas, senti­mento...
Ali sob aquele galho de jasmins rutilava um barrete frígio num rosto moreno... por trás de uma cadeira encostada à abundante copa de uma palmeirita branqueava uma grinalda de penas, donde desciam cetinosos cabelos castanhos para um traje canadense... ia, pujante e simples como a lei de Moisés, uma Raquel por aquela avenida e duas outras donzelas metamorfoseadas em duas grandes flores.
Luze acolá o alfanje de uma Judite e o gume de um ferro de ceifar. Pela vidraçaria gótica, como se fossem pinturas semoventes no vidro, passam mascarados valsando... um anjo vestido de diabo, e uma nobre menina com oavental e a touca de servente... aquela conduz a rede e o gorro de pescador... uma, de olhar brandamente sublime, tem a tiracolo um cantil de vivandeira onde naturalmente está o néctar do batalhão das musas...
Treme no tumulto das cabeças a pluma de um chapéu de caçador...
A orquestra agora é branda e sinistra, depois garganteia, ora empurra os pares, ora os deixa correr como a baleia fisgada... Sente-se peito contra peito o arfar de respirações... eterniza-se o minuto bronzeamente gravado na memória... a pobre nudez humana está completamente transubstanciada pelo milagre das vestimentas e da nevrose... e é-se obri­gado a admitir a ideia necessária de um paraíso...
Há meninas tênues como a garça e singelas como as grandes mag­nólias e da vozinha tépida como um afago de rolas, que parecem satisfa­zer-se apenas e bastante com o calor irradiante do grande sol do prazer que a todos inunda... são como os serafins, cujas almas subiram pela sua própria leveza ao morrer o corpozito nos braços das mães de infinito olhar sentido.
Há outras que se tivessem asas iam estas de uma porta a outra... e são como os arcanjos valentes dos combates miltonianos... E nuvens surgiam, e clareamentos dourados. Debaixo dos pés ele sentia o longe trovão das coisas terrenas. Estava como em um balão que passou o li­mite dos vapores adensados...
A sonharia foi-se esbatendo até empastar-se no nada... O rapaz dormia... positivamente.
Como ele estava de seu!
Mas súbito um relâmpago fulge pela rótula da janelinha e segue-se a pancada estridente de uma vidraça que bateu no sobrado fronteiro. Foi como a voz do patrão.
Pouco depois arrastava ele o lençol, como uma capa de rei, pelo quarto em roda, à procura da roupa.
E enchia o mesmo quarto com o irresistível — ah — de um prolon­gado bocejo, que tinha para ele o valor inestimável de uma descarga ner­vosa.

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