9/20/2017

A Torre de Caim (Conto), de Rebelo da Silva


A Torre de Caim

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I - DE UM BOM IRMÃO UM MAU CRISTÃO

O monge começou assim a sua história:

No tempo em que os vális de Córdova tinham quase todo o reino sujeito é que sucedeu o que vou contar. Estava o conde d. Henrique a entrar por dias, e com ele vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder dos infiéis as Províncias de Portugal. A essa hora nos castelos da fronteira não se descansava dê dia, nem de noite; ninguém despia as armas; e quer luzisse a manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das almenaras, ou o rebate das trombetas não consentia nem de leve repouso aos defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou no campo de peleja, não se sossegava um momento. Os melhores castelos ainda tinham a voz dos descridos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as belas tapadas do Minho e do Alentejo eram para eles correrem os veados, os cursos dos javalis. Do mármore de nossas pedreiras arrancavam as colunas e as ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera deste formoso jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso infantil, e o céu brilha radioso corno olhar de virgem namorada, a tristeza até parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo é, o árabe sensual passava pelo paraíso, que nos tinha roubado! Por isso a saudade do que perdeu lhe punge tão viva hoje o coração!...

— E não havia cavaleiros, que lhes escalassem as lanças no peito, bradando: esta terra é nossa! — acudiu Martim Pais.

— Havia! — redarguiu o frade. — Mas eram poucos. Naqueles dias de cativeiro todos inclinavam a fronte, regando de lágrimas os sulcos da charrua, guiada por mãos de escravos. Deus exalte o braço vitorioso, que nos deu outra vez a terra de nossos pais, que fez nossos a casa em que abrimos os olhos, o cemitério onde dormem os que nos amaram, a árvore que nos cobriu com a sombra a infância e a velhice, e a fronte que ferve ao pé do rosal!... Naquele tempo, quando o mouro passava, baixavam todos a vista, porque ele era o senhor.

— Mas a terra havia de ser então quase um deserto, padre?

— Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos vestiam-se de relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados pastavam nos montes. Mas a terra, tão alegre por fora, toda era mágoa e desconsolo por dentro; porque a terra, em que somos escravos, mesmo que seja a da pátria, parece-nos mais só e vazia, do que um ermo. A casa alheia, a courela que é de outro, e o fogo aceso na lareira a medo, fazem-nos chorar porque nada daquilo é nosso, e hoje, ou amanhã, podem dizer-nos: sai! O reino vivia, como vive agora; o que estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo sol, corriam as mesmas águas, nasciam as mesmas flores; porém as crianças não brincavam por baixo dos pâmpanos da vinha, como brincam estas; e a donzela assustada, tremendo de se ver formosa, não se assentava tranquila, como aquela, debaixo da amendoeira em flor ouvindo descantar o rouxinol por cima da cabeça. O harém do sarraceno, aberto diante dela, como um abismo, fazia-a empalidecer. De um momento para outro podia ser obrigada a escolher entre a desonra e a morte.

— Que martírio não seria a vida assim?!

— Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos anos!... O dia declina. Faz-se tarde. Quereis que continue?

— Oh, decerto. Falai!... Todos vos ouvimos.

— No tempo que disse, lavrava a discórdia entre dois ricos-homens nas terras de além-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de certa dama, juravam outros que por causa da aposta de um cavalo. De seus castelos dois inimigos, postos defronte, corriam o campo talando vinhas, pomares e searas, e mal um se descuidava, o outro, assaltando-o, vinha logo acordá-lo a ferro e fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de homens de armas, ardia a guerra em toda a fúria. Nos casais assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se ao anoitecer recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao clarão das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinados.

Por fim o cavaleiro mais velho acometeu o paço acastelado do contrário, tomou-o à traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas ameias. Aconteceu isto véspera de São João, por alta noite, quando todos festejavam o bendito santo com fogueiras, cantigas e folias. O cavaleiro tinha um filho e um irmão. O filho de idade tenra; o irmão temido pela índole e pelo braço. Entraram e saíram os anos assim; a criança fez-se homem; e de parte a parte a aversão das duas famílias cada vez crescia mais. O rio que as separava tingiu-se de sangue por muitas vezes, e os sinos não cessavam de dobrar na igreja pelos que morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, parecia avivar mais aquela rixa. A este tempo o herdeiro do cavaleiro assassinado era já um mancebo louvado pela destreza nas armas e pela presença gentil a cavalo e nos saraus. Chamava-se d. Moço Ansures, e vendo-o passar, esbelto e afogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzelas sorriam-se e coravam, e os homens saudavam-no admirando a fiel imagem do rico-homem morto na véspera de São João.

D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por desgraça, viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração esquecido da vingança guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pai derramado à falsa fé, as malquerenças de tantos anos, as promessas da meninice e da juventude, tudo daí em diante se apagou da sua alma para não ver outro sol, outra luz, senão o dos belos olhos, que o tinham feito seu cativo. Segredos de Deus! Do maior ódio rebentou o mais constante amor!... Correram meses, e o afeto escondido saltou aos olhos de todos. Os parentes lançaram em rosto ao mancebo a sua fraqueza, mas a paixão pôde mais que as memórias do túmulo, que deixava sem vingança. Por último, cansados das guerras dilatadas, os rancores cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veio unir as duas casas inimigas. O sorriso de uma dama Veio aplacar no sepulcro os que não podiam dormir o sono eterno, e os que haviam jurado não perdoar. Aprazou-se para a véspera de São João o ditoso enlace. Seria propósito, ou acaso? Nesse dia contavam-se justamente catorze anos, que o pai de d. Moço de Ansures fora assassinado.

O homem põe e Deus dispõe!

O cavaleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do que a própria vida. Haviam nascido ambos na véspera de São Pedro, e escusado fora procurar mais do que uma vontade e um afeto nas duas almas. D. Inigo Lopes, era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou chegar de longe, quando estavam pregando as tábuas do caixão do infeliz. A dor fez de d. Inigo uma estátua, e sete dias com sete noites o viram todos jazer deitado sobre a sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe os ossos do irmão, consumia ao mesmo tempo nele tudo que tinha de humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se levantou, trazia a cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecera ali um século em sete dias! Nem uma lágrima nos olhos secos! Nem um soluço do peito mudo. Deixou sobre a campa espada e arnês, e levou só consigo o punhal. Ao entrar ainda fizera o sinal da cruz, mas, saindo, Jesus! voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam!

O que fez sete dias com sete noites d. Inigo só e encerrado na capela? Se alguém o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na última noite vira a pedra do túmulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo crescer da sepultura e a mão do morto apertar a mão do vivo. Ilusões! Quem vai nunca mais torna. O que não foi fábula, porque todos o presenciaram, foi ao oitavo dia rebentar com o primeiro raio de luz uma roseira do centro da cova, tão viçosa e robusta como se existisse há muitos anos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos! Mas se queriam apanhá-los os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. Em cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que outros tantos dias se contavam também desde que o corpo do valente cavaleiro descera à sepultura trespassado de sete feridas.

Nunca mais se soube, ou se falou de d. Inigo. Dizia-se que sete anos com mais cinco vagueara como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, comendo das ervas do monte, bebendo da água das nascentes, dormindo às inclemências do tempo. Que vida penitente a daquele santo! Vozes do mundo! O Senhor, que lê nos corações, há muito que tinha desviado os olhos dele. Com ser cristão nascido nunca mais ajoelhara à cruz ou se encomendara à Virgem. Quase ao cabo do longo desterro anoiteceu-lhe no deserto da tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina. Valha-nos Maria Santíssima!... De repente as areias inflamaram-se em um mar de fogo; o céu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das altas rochas dançaram, cruzando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então na vasta solidão do ermo um brado imenso. D. Inigo respondeu, e o pacto, que ali firmou, foi tão negro, que a lua tornou-se cor de sangue e sumiu-se, que as estrelas esconderam trêmulas a sua luz. O cristão acabava de vender ali a alma ao inferno pela vingança. Desde aquela hora seguiu sempre por toda parte, como a sombra segue o corpo, a imagem do irmão assassinado. Ajoelhado ao poder de Satanás, ele que não se prostrara diante da cruz, e rasgando as veias afirmara o juramento. Quando se ergueu soou o cantar do galo por três vezes rio espaço, repetido pelos ecos, e risadas tremendas, levantando-se das águas imóveis do mar Morto, aplaudiram a vitória do espírito do mal. O réprobo escarneceu do passado. Uma blasfêmia atroz saltou-lhe da boca. Mas ele que se ria de Deus e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe a terra debaixo dos pés, como horrorizada do peso do seu crime. Aos primeiros passos o clarão dos relâmpagos cegou-lhe a vista. O temporal rebentava ao mesmo tempo no mar onde as ondas se empolaram como serras; no céu onde os trovões estalavam uns após outros; na terra, que se abria em voragens; e no deserto, onde o furacão, bramindo, cavava abismos, e alteava montanhas, revolvendo em vórtice as areias. Cedros antigos, como os do Líbano, desabavam de pancada. As feras, tímidas que nem cordeiros, acoitavam-se submissas nos povoados. Os homens elevavam suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia humilde e pequeno para a súplica, por que riria só o orgulho do culpado? Dali em diante não passou uma hora sem ele se despenhar mais e mais fundo no precipício. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão, debruçava o cântaro e enchia-o. As ramas das árvores enfezadas torciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distância caíra um velho desfalecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota daquela água para lhe restituir a vida. D. Inigo negou-lha entornando-lhe de propósito o cântaro diante dos olhos para lhe exacerbar o tormento diante dos olhos que estavam tragando de longe a água, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe por mofa: “chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de ti!” O Senhor não acudiu com prodígios ao seu servo. Quis que expirasse vencedor do inferno. Mas desde aquele crime, a sede intensa atoada nas entranhas do réprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e as fontes convertiam a fresquidão em fogo para o abrasar. A gota de água negada no deserto pesara na balança do Senhor largos séculos de culpas.

Cumpridos doze anos, d. Inigo voltou, sem se saber como, à terra em que nascera. Disseram que um cavalo da cor da noite com os olhos todos chamas, o trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda varria o pó, a respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. Diante dele as mais altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se outeiros; o mar e os abismos solidificados aplanavam-se; e no perpassar do galope infernal os carvalhos inclinados tremiam e beijavam o chão, flexíveis como juncos. Cavalo e cavaleiro não corriam, voavam! Debaixo da ferradura mágica as águas tomavam a dureza do diamante: a terra oscilava, e mil faíscas, saltando da cratera dos vulcões, vinham coroar o rei do fogo. Ao romper da aurora o corcel retraiu-se, e estacou. Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou dali. À medida que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e ao primeiro raio de sol dissolveu-se desfeito em fumo.

Quando acabou de desaparecer, tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu o sítio. Estava junto da igreja onde fora sepultado seu irmão. Ao primeiro passo que deu, descerrou-se portal por si mesmo; ao segundo iluminou-se a capela repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas caíram secas e as brancas floriram juntas. Um cântico suave dentro levantava o Ave maris stella. Estava aplacada a vingança do morto. A fé, porém, debalde chamava ali por Inigo; ele não a ouvia. A voz do céu em vão lhe oferecia o perdão; ele, surdo, não escutava a palavra de misericórdia! Orava naquele momento a Deus muito longe, um santo ermita pelo maior pecador. Arrebatado em espírito, viu um homem cuspindo por ódio na cruz porta de uma igreja. O anjo Custódio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de lágrimas as vestes luminosas; mas o desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as asas, subiu na aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente.

“A tua demência, Senhor, é infinita! — exclamou o justo. — Haverá perdão para o que renega o teu santo nome?”

Neste ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com estrondo; e uma voz, semelhante à da tempestade, bramindo nas selvas, repetiu ao longe: memento, homo, quia pulvis es!


II - NÃO HÁ GOSTO SEM PESAR

Naquele tempo, em terras de além-Douro, que rico-homem era mais poderoso e rico do que d. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castelo por vales, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavaleiros metiam o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu pendão. Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Astúrias, raça de bronze nos ódios, e de ferro nas vinganças. A idade gasta os mais fortes, e açor velho não se remonta às águias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas, d. Ordonho sentia que os anos não haviam passado em vão. Só a neta, a formosa Ausenda, único amor da sua vida, podia distraí-lo das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, um sorriso dela quebrava-lhe a vontade, e uma lágrima só daqueles olhos lindos transformava em cordeiro o leão embravecido.

Os atalaias vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de armas cruzam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa cavalgada, que se espera?

O sol já se escondeu detrás do último outeiro; desmaiaram os derradeiros clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas, e nenhum cavaleiro, ou sombra dele, se avista em larga distância ao redor.

No castelo era véspera de noivado. Ausenda, a bela Ausenda, ia casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a festejada véspera de São João, e por horas também estavam a cumprir-se catorze anos desde que os monges negros rezaram o ofício de finados em volta da tumba do cavaleiro assassinado.

Por que se via Ausenda tão pensativa olhando do seu balcão para a coroa do outeiro, que fica defronte? Córdova e Granada, os dois Édenes da formosura, entre mil não se ufanavam de possuir pérola de igual valia. Aquela beleza era sem par. Sorria-lhe o céu nos lábios; ondeavam os cabelos em tranças de ouro soltas à brisa; e os olhos azuis, onde amor suspira, oh! quem pudera vencê-los depois de vencido por eles! Delgado cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O véu de tisso bordado ora folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da alva tinha saído. Os pés, como os da corça gentil, que a acompanha, fogem tão leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra íngreme. As rosas acendem o rubor na face acetinada desmaiando os lírios. Boninas e cecéns tecem a coroa silvestre pousada na fronte. Ajoelhou à cruz solitária, e a oração matinal subiu casta e pura do coração ao trono do Senhor, nu meio das fragrâncias da aurora. O vestido branco desenha confusamente as formas, e visto de longe flutua nos vapores da madrugada. Dir-se-ia visão celeste que os raios da primeira luz vão desvanecer. Ela a chegar, e um cavaleiro a correr do lado oposto. O açor do Douro remata-lhe o capelo de aço. É d. Moço Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos oferecem a Deus as primícias do amor.

— Voltais logo? — perguntou a donzela corando.

— Ao cerrar da tarde! — responde metendo-a na alma com apaixonado olhar.

— Tão tarde!?

— Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!...

— Não! Mais...

— Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!

Separaram-se. Ele despediu o cavalo pelas gargantas da montanha, ela seguiu com a vista saudosa até desaparecer por trás do último outeiro.

Por que chora a bela Ausenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a donzela cismava sozinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva a combatê-la, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noite, e quando as estrelas começavam a tremer na abóbada do céu, recolheu suspirando. Quase ao mesmo tempo soava a sineta da atalaia. Donas, cavaleiros e pajens principiavam a entrar no castelo atraí dos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de cores diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos à luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebréus, os relinchos dos cavalos, e as vozes dos peões animavam de mil ruídos alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobressaía no meio de todos pela estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O seu brado vencia o estrépito.

— Pajens! Escudeiros! Fazei honra! — exclamava cortejando os recém-chegados com a boca cheia de riso.

Falta, porém, um homem na festa e com ele tudo falta. A última hora do dia, segundo sua promessa, deveria tê-lo trazido aos pés de Ausenda, e com a noite cerrada não chegava!... Do lado das montanhas não havia rebate de mouros. As almenaras apagadas não davam sinal de inimigos. Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e desejado? Por que se ausentara naquele dia, em que tantos extremos o convidavam a não se apartar dos belos olhos que o prendiam? Um juramento sagrado! Um voto! Prometera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o túmulo de seu pai. Por isso deixara Ausenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da noiva as contava tão vagarosas!

III - DEUS SEJA CONOSCO

Na sala de armas do castelo soam mil vozes de júbilo. Que luz faísca das malhas polidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados capelos! Cavaleiros moços falam de amores, inclinados sobre os estrados das donas e donzelas. Violas e doçainas acompanham as cópias dos trovadores. Mais adiante, em turbilhões de cem cores, em colos ondeados e graciosos, giram e volteiam as danças, e o olhar furtivo de alguns pares promete, em breve, dias semelhantes a mais de um solar.

Na vasta quadra aparelhada para o festim, enquanto os convivas não entram, o vento geme por entre frisos e laçarias dos delgados colunelos. A lua, alta no céu, entorna pelos vidros corados das frestas golfadas de luz branca. De repente as trompas quebram o silêncio. Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas tochas. Povoa-se a sala inundada de luz subitamente. Os escansões enchem as taças e fazem-nas circular em roda. Saúdes, aclamações, e vozes cruzam-se, trocam-se e voam em confusão jovial de um a outro extremo da casa. D. Ordenho parece remoçado. À sua direita senta-se Ausenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda d. Moço Ansures. Defronte, em outro escanho, também vazio, estaria o pai do noivo, se pudesse deixar a sepultura. Cobre-o um véu de luto.

A meio do banquete as danças tornam a entrançar os pares como grinaldas vivas do festejo. Pelas portas abertas do alçáçar enxameiam incessantemente donas, cavaleiros e monges, convidados pela hospitalidade quase régia do rico-homem. As taças cheias de licor espumoso correm de mão ira mão. D. Ordonho, de pé, alça a sua, e com a fronte erguida brada:

— À paz dos cristãos! À ruína e confusão dos infiéis!

Uma longa aclamação responde à sua voz:

— Assim findem todas as discórdias entre irmãos!

Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou um grito. Os convivas olharam também ficaram imóveis com a taças suspensas.

No lugar vazio destinado a honrar a memória do pai de Ansures, apareceu de repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira calada e na cota o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a primeira taça cheia, ergueu-a lentamente.

— Bem falado, conde Ordonho! — exclamou. — À paz da noite de São João!...

Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se vermelho vivo como sangue. No sítio em que pousou a taça uma malha de ferro em brasa queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os olhos, as feições e os modos eram exatamente os do cavaleiro assassinado havia catorze anos; porém os cabelos e as barbas brancas lembravam que por cima do seu corpo passara o frio da sepultura.

Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petrificados por um poder oculto, não puderam mover-se. O horror gelava a todos.


IV - ENTERRO POR NOIVADO

Aqui frei Munio fez uma pequena pausa. Depois prosseguiu:

Dava meia-noite. A sineta da ermida repicou três dobres compassados. Ao primeiro as danças estacaram. Homens e damas, suspensos e petrificados, ficaram imóveis como estátuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas das violas e alaúdes. A última nota tremeu solitária e reboou pelos vãos profundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos jograis transformou-se repentinamente em dies irae que retumbou. Os cabelos erriçaram-se de horror. Ao terceiro dobre o castelo tremeu e vacilou nos alicerces, como se um terremoto o abalasse. Os eirados jogaram, as torres inclinaram pendidas. E o cavaleiro negro? Ainda o sino dobrava já tinha desaparecido. Que susto! Que pavor! Que imensos clamores! Muitos intentaram fugir. Debalde! As portas, sem ninguém lhes tocar, fecharam-se diante deles. O portal maciço gemeu nos quícios e cerrou-se por si mesmo. Mãos invisíveis alaram as dobradiças.

Ai noite de São João, noite aziaga! Valiam remos os olhos que por amor de ti choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de esperança; o palmito simbólico, em vez de rosas e de frutas, só ramas de cipreste esfolhou sobre o leito do noivado. Nos paços do conde ninguém se entendia. Estava sobre eles o poder do inferno. O suor frio borbulhava nas faces dos cavaleiros, e o tremor dos mais ousados fazia tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma pluma de fogo na escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos tetos. Jesus! Acudi! O castelo está a arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados tão altos, e o fosso tão fundo! Neste momento rompeu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velava, e o seu clarão pálido lançou como um sudário sobre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a curta distância sobranceiro ao castelo. As águas, rebentando ali à sombra de antigos choupos, ferviam de encontro às fragas, e despenhadas espumaram batendo em cachões no leito da ribeira, que lá embaixo bramia arremessada por entre a bronca penedia.

Onde está d. Ordonho? Junto de Ausenda desmaiada! Com ela nos braços por entre as chamas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou baixando de andar em andar, até ao terreiro. Aí, olhando, viu tudo cerrado, as labaredas serpeando cada vez mais vivas e o castelo pedra por pedra quase a desconjuntar-se. Os cavaleiros escondiam as lágrimas, envergonhados.

Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! — clamou o senhor de Santa Olaia. — Este pulso pode com ela. Nem diamantes a embotaram. Aqui todos! — gritou depois em grande brado.

Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados. Ergueram-se as achas... Golpes de cem machados, vigor furioso de cem robustos braços ferem a um tempo com ânsia mortal a porta maciça e chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou fogo, os gonzos tremem... Mas nas tábuas nem sinais dos finos gumes. Os machados, estalando, lascam até aos cabos. Por cima do ruído das pancadas e do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa do rochedo campeia o cavaleiro negro. As águas espumavam por baixo dos pés do corcel; a mão direita brandia um facho; a esquerda sopeava com as rédeas o cavalo preto, quase no ar sobre o abismo.

— Conde Ordonho! Esta fogueira faltava à tua festa de São João. Acendi-a eu. Pago as arras da formosa noiva.

— Maldito!...

— Esquecias já d. Pedro Ansures, morto por ti há catorze anos?! Chegou o dia e a hora das últimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue dos meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes.

Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chamas em vagas furiosas investiram o castelo por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. No ombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Ausenda sem sentidos. As faces desbotadas da donzela tocavam o rosto queimado do velho; as tranças de ouro misturavam-se com as madeixas brancas, os olhos lânguidos, em que expirava a doce luz da vida, cerravam-se mortais.

— Castigai-me, Senhor! — bradava o conde, chorando como criança. — O sangue verteu-o esta mão culpada... Feri a cabeça do pecador saciado de anos e de amarguras! Mas esta inocente! O que fez para acabar assim?... Poupai-a em vossa justiça!

Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria naquele instante o senhor de tantos vassalos e castelos por alguns palmos de terra livre, por uma respiração pura da brisa noturna, que nos serros vizinhos refrigerava as misérias do escravo?

O conde ergueu-se de novo. Às almas viris podem vergar um momento, mas não quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dor; o pranto enxugou-se em todos os olhos; e os mais intrépidos estremeceram, vendo passar muda e terrível aquela vingança! Ei-lo, vai o velho fronteiro! Nem capelo de aço lhe cobre a fronte nua, nem arnês lhe veste o peito descoberto. Leva porém a morte escrita no rosto. O sombrio clarão do desespero reluz nas órbitas ensanguentadas. A voz emudeceu nos lábios, brancos e descorados. Deixai-o ir! É o castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! É o santo amor de pai que o inspira!

A águia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas para depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fogo ameaçador na vista imóvel! Que fria raiva no voo lento! Guarde-se o falcão. Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim era d. Ordonho!...

A lua escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento lastimava-se soturno. A distância, nos outeiros e piamos, refletia-se o clarão avermelhado do incêndio. O fumo em rolos salpicados de faíscas estendia-se como toldo imenso. As águas e o furacão confundiam os bramidos. Os relâmpagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava em estampidos medonhos.

A asa negra da tempestade varria a face da terra... Que vulto é aquele, que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no eirado da torre Albarrã? Fogem-lhe aluídas debaixo dos pés as lájeas abrasadas e não recua. Sobre a cabeça cruzam-se mil centelhas e não as sente. Ao lado estalam e desabam os madeiros com fragor, racham-se e abatem as paredes, e não as vê! O temporal, fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os penhascos da montanha, as torrentes, crescendo túmidas, inundam as margens como rios caudalosos. Que escudo cobre, pois, aquele homem que todos os perigos e horrores da vida conjurados não o abalam? A desesperação! Que lhe importam ao desgraçado as ameaças do céu, ou as ruínas da terra? Esconde no seio a pior das mortes. Morrera em vida. O castelo de seus avós será o sepulcro do último descendente de uma grande raça.

Soltou por último do peito um rugido imenso. A cor lívida da ira dava-lhe à face o aspecto de um cadáver. Encurva o arco, retesa a corda, e a vista mede o espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um aceno para voar sibilando ao seu alvo...

Três vezes estalou o trovão, e três vezes um lençol de fogo jorrou dos céus abertos. Soa distintamente o galope de um cavalo. As ferraduras, raspando as fragas, fazem saltar as faíscas umas atrás das outras. Armas brancas, capelo sem viseira, no peito o açor do Douro. Será d. Moço Ansures? À claridade dos relâmpagos, à luz do facho sacudido pelo cavaleiro negro, viram todos o coroei do mancebo enovelado sobre a aresta do precipício, quase a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavalo e cavaleiro arquejam suspensos de uru fio sobre o abismo. O que Inigo lhe disse, o que ele respondeu ninguém o ouviu. O vento bramia forte. Pouco depois descortinava-se d. Moço enristando a lança meio corpo debruçado para o precipício, e o renegado arremessando o facho às águas para se rodear de trevas. O braço do Maldito alçou de súbito a espada e o golpe descia já... quando uma seta passa assobiando. O mancebo viu então o seu inimigo rolar aos pés do ginete e logo após um corpo dobado nos ares, resvalar, batendo nas pontas das rochas até se atufar dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que espirram a grande altura espuma e sangue...

Do castelo, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta brados de triunfo, e por momentos avulta a estatura gigante do conde Ordonho, cozida nas chamas, imóvel e majestosa, com os cabelos soltos ao temporal. Depois abateu-se a torre com grande estrépito, as quadrelas aluíram-se, as traves acesas remoinharam e caíram, e entre os destroços, como em leito tranquilo, o velho guerreiro adormeceu do sono eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no seu pendão! Ao cabo de sessenta anos de pelejas o fronteiro sepultou consigo a orgulhosa raça de Riba de Ave, e do seu castelo só ficaram de pé aquela torre negra, que além vemos, e a ermida onde jazem os ossos de Pedro Ansures.

— E d. Moço? — perguntou Martim Pais.

— E Ausenda? — acudiu d. Nuno.

D. Moço, cumprindo já de noite o seu voto, teve um pressentimento, e, cravando esporas no cavalo, despediu a carreira veloz por cabeços, fragas, e alcantis. Já perto do castelo, deu-lhe no rosto o clarão do incêndio e viu-o arder. Apertando o corcel correu como louco, e só parou quando o facho do cavaleiro negro lhe cegou os olhos. O que sucedeu então já vos contei. Apenas Inigo expirou, desfez-se o encantamento. D. Moço buscou Ausenda. Encontrou-a, mas sem vida! Levaram-na os monges à capela, puseram-lhe na cabeça uma coroa de cecéns, e a terra comeu de quinze anos a formosura mais invejada das Espanhas.

D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir às batalhas? A glória? Não tinha com quem a repartir. A morte? Para quê? Não a sentia já no peito? A liberdade da terra do seu berço? Ai! Nem essa ideia mesmo podia fundir já os gelos daquele coração!... Sombra do que fora, o que fazia o desgraçado neste desterro cruel, sem afetos, sem amigos e sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu na força do crescimento, debruça os ramos mirrados e se torce e definha até cair, a dor e a memória, verdugos implacáveis das existências desgraçadas, minavam-lhe a vida, secando-lha na raiz.

Sobre a madrugada o sono pousava-lhe a medo nas pálpebras molhadas de lágrimas. Então a febre do delírio representava-lhe junto do leito a doce imagem, que trazia no coração. Era ela! Via-a, como nos dias ditosos. A mesma grinalda de flores do campo sustinha os cabelos louros que fugiam em ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas virginais; nos olhos sempre a luz suave do amor, que o fizera tão feliz; nos lábios aquele sorriso em botão, que se abria casto como rosa. O mancebo queria estreitar a visão querida ao peito, e acordava, chorando, porque só abraçara o ar. Neste tormento agonizou por meses até que Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, onde se recolhera.

Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o coração, um laço de cabelos; e no quarto de alva o frade que ficara orando a velar a tumba contou depois que vira aparecer uma dama, formosa como os anjos, inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do ataúde saiu um braço, e ela, com a sua mão na mo do morto, passar-lhe uru anel no dedo e cingir-lhe a coroa de boninas que trazia na fronte descorada. Um guerreiro de armas negras, e de estatura descomunal, por três vezes lutou para romper o círculo luminoso, que a rodeava, e outras tantas, vencido por braço invisível, se prostrou com a face no pó do templo. Eram as núpcias dos mortos, o noivado de Ausenda e de Ansures? Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguindo na donzela o sangue inimigo e a vingança contra o conde Ordonho? Altos mistérios de Deus. Quem ousaria perscrutar os segredos da sua justiça, e os prodígios da sua demência infinita?!

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