9/27/2017

Ao soprar à vela (Conto), de Marques de Carvalho


Ao soprar à vela

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I
Às 8 horas da noite, quando chegou o marido, veio a Cândida, a saltar alegremente, recebê-lo à porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do penteador de cambraia branca.

Quanto se demorara ele!... Por que não voltou mais cedo? A sua Candinha já sentia tantas saudades!... Ele não imaginava o que era estar uma pobre mulher metida em casa, durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!...

E afagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça, causando-lhe uns arrepios sensuais pelas costas, eriçando-lhe os cabelos dos braços e pernas.

Que não pudera vir mais depressa,— objetava o marido, sentando-se numa poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscência para a mulher. — Bem esforços fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por espaço de meia hora, brincando com as crianças, para entreter-se. Os pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as mãos gordurosas... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e à mulher.

— E aceitaram? — interrogou a Cândida, saltando para as pernas do marido, a rir muito, com os lábios abertos lindamente, frisando-se graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.

— Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum, máxime sabendo que nós a desejávamos para a libertar. Aquela gente está cada vez mais negreira! Enfim, escolhe-se outra qualquer, contanto que seja o dia de teus anos digna e liberalmente solenizado por mim. Continuemos, porém. Estava eu disposto a sair, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquele sujeito vermelhudo, cuja cabeça está mais limpa de cabelos que os teus joelhos...

— Deixa-te de tolices...

— Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo porque levantei-me e saí à viva força!... Agora,— concluiu sorrindo,— aqui tem você o seu Roberto, cheio de amor e paixão, disposto a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!...

Sempre sentada sobre as pernas dele, Cândida semicerrou os olhos numa vertigem lúbrica, e estendeu para a boca de Roberto os seus lábios frescos e perfumados desse olor esquisito e bom, peculiar às mulheres que se tratam.

Mas ergueram-se de súbito, num enleio: aparecera à porta que dava para o corredor o moleque Euzébio, com o bule de chá...

II
Depois do chá, Roberto acendeu um charuto, foi buscar um livro e, acomodando-se numa grande voltaire, pôs-se a ler. Ficou a Cândida defronte dele, a mirá-lo.

Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois bicos de gás encerrados em globos de cristal finamente lavrado. Com os cotovelos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas aflantes descansando nas palmas das mãos, Cândida continuava a olhar para o marido com uma expressão estranha, suave, repassada de ternuras dulcíssimas.

Parecia lançada à contemplação da própria felicidade. Era justamente aquilo que, anos antes, fantasiara a sua sonhadora imaginação de burguesinha estragada pelos mimos de seus pais extremosos e pacóvios: viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom coração; estar sempre junto dele, para o consolar em todos os desgostos, rir com ele nas horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irrepreensível e, sobretudo, contemplá-lo a todo instante, silenciosa, longamente, envolvê-lo nas sentimentais suavidades do seu enlanguescido olhar de crioula amorável! Nunca sentira-se tão feliz como depois de seu casamento com o Roberto, havia quase dez meses. Nem uma só contrariedade tivera após aquela noite comovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo no silêncio de uma discreta alcova toda cheia de flores, rendas, fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha infantilidade não ficou, na manhã imediata, quando leu no Diário de Noticias as linhas seguintes, que decorou à força de as repetir baixinho? — "Uniram-se ontem à noite em matrimônio, na igreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado comerciante da nossa praça, e a excelentíssima senhora D. Cândida Anunciada Seixas, filha do nosso amigo Sr. Pandolfo Seixas, proprietário abastadíssimo. Foram padrinhos os senhores Silvino Cunha e Antero de Mendonça e suas excelentíssimas consortes. Aos jovens cônjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades a que têm jus por seus dotes distintíssimos." Ficou a nadar em júbilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornais, comovidíssima pela lembrança de que, aquela hora, a cidade inteira estava sabedora da realização de seus íntimos desejos de moça apaixonada!... Daí em diante começaram a viver como dois anjinhos, como ela queria. Roberto era sempre de uma delicadeza afetuosa e séria para com a sua Candinha, que também, valha a verdade, contribuía, segundo seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ela achava impossível que duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas por dá cá aquela palha... Entretanto, assim acontecia às vezes. Aí estava, mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más línguas, era uma jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estefânia, era outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domiciÍlio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dor de coração! Mas com ela assim não sucedia, graças a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador à hora de recolher ao lar: às 5 da tarde mandava fechar o armazém, tomava o bonde e vinha logo para junto dela, de onde não se arredava senão ao outro dia pela manhã, a fim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ela conhecia demais o gênio do marido para recear qualquer mudança futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a importante notícia que ela tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se necessário contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a garganta assim que ela abria a boca para falar... Mas hoje diria, estava resolvida! Quando? agora? — Agora não; deixá-lo com a leitura, que está tão entretido... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para ele!... para ele, que era tão lindo, tão bom, tão amado!...

Tudo isto pensava ela, continuando a fitar o esposo num enlevo apaixonado.

III
De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surpreendida, a Cândida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler num livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto dele o seu ardente olhar, como se desejasse cobri-lo com toda a veemência da paixão.

Ouvindo soarem no sino de Sant'Ana as 10 horas, Roberto fechou o livro.

— Vamos dormir? — prepôs.

Cândida estremeceu e levantou-se.

O moleque veio fechar as portas e janelas e apagar o gás.

No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcova. Em cima do velador, uma vela cor de rosa ardia num castiçalzinho de porcelana de Sévres com pinturas alegóricas de Amores alados e Quimeras volitantes. No centro, uma causeuse de cetim azul estava cheia de laços, corpinhos de renda, brochuras esparralhadas, num abandono adoravelmente dessimétrico. Vidros de perfumarias com rolhas de cristal reluziam em cima do toucador de jacarandá, lançavam cintilações cambiantes ao espelho inteiriço do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das paredes laterais.

Ao fundo erguia-se a cama,— pudicamente oculta entre as rugas de um cortinado de labirinto finíssimo, suspenso do teto por uma passadeira doirada.

Levantava-se daquela cama um quê de evaporação de felicidade inenarrável, que penetrava no espírito dos dois esposos pelos sentidos do olfato e da vista. Parecia-lhes acharem-se diante do tabernáculo de seu amor, do altar de sua existência feliz e encantadora. Para Cândida, sobretudo, ela tinha uma importância transcendental: evocava-lhe uma recordação agridoce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove meses de agradabilíssima co-habitação conjugal...

***

Quando iam deitar-se, Cândida enlaçou a cabeça do marido com os braços descobertos,— mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de cambraia enfeitada de rendas do Ceará.

Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos eflúvios,— essas queridas exalações de mulher amada,— num enlanguescimento concupiscente.

— Olha, murmurou ela conservando-se na mesma posição, beijando-o na testa. — Quero dar-te uma notícia muito boa...

— Qual é? — perguntou Roberto estreitando-a nos braços.

— Tenho tanta vergonha!...

Esta exclamação pronunciou-a Cândida desprendendo-se do amplexo do marido e dando um pulo para o leito.

— Anda, fala, menina, que tolice é essa?

— Então apaga a luz, primeiro; pode ser que às escuras eu me sinta mais animosa!...

Roberto soprou a luz da vela e disse deitando-se:

— Agora...

Cândida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as pontas dos frios dedos trêmulos. Depois, a súbitas:

—É que,— murmurou com umas brejeiras risadinhas reprimidas,— é que eu... estou grávida!

Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,— o beijo com que o esposo tenta revelar a indizível alegria de ver convertido em realidade o seu mais persistente anelo,— respondeu aquela confissão prazenteira, na propicia escuridade da alcova matrimonial...

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