Corda sensível
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes
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Um fardão
de coronel estava enfiado sobre o espaldar da cadeira de balanço, e a pequena
Maria, apertando na mão uma fatia de pão com manteiga, olhava extasiada. A cor
azul escura da casimira, sob a claridade noturna que enchia a sala, modelava
macieza de veludo e fingia reflexos de roxo. Nas ombreiras do fardão pousavam
as dragonas maciças, de grande gala, com o seu chuveiro de torçais de ouro; e
na frente o papo se escancarava, deixando ver a tela de crochê, com que se costuma
proteger as mobílias. A um lado corriam-lhe os oito botões, cada um crescido
como um olho-de-boi...
Mas, quando
a pequena deu com o empastamento de condecorações que encobria lado a lado o
peito ao fardão, não pôde resistir ao chamariz, e pondo um joelho à beira do
assento e com os bracinhos estirados agarrando-se aos braços da cadeira,
subiu, apesar do balanço. As mangas da farda começaram então um movimento de
pêndulo, roçando no tapete os canhões encastoados pelas pesadas divisas de
coronel. O amor ao equilíbrio forçou a pequena Maria a ir com a mão ao tope da
cadeira, e aí, olha lá manteiga pelas abas.
Acode
naquela cabecinha castanha uma ligeira ideia de remorso, e o que há de mais
simples é deixar as coisas como estavam. A esse tempo brilhavam no escuro da
rua, à altura do peitoril da janela, os olhos da filha do cabo de ordens, que
espiava para dentro, pode ser que arrastada pelo cheiro da ceia, cujos
tirlintintins se ouvia. Que ótimo desvio! E as duas começaram a conversar-se na
janela, como pessoas sisudas; bem entendido, a pequena do cabo de ordens
comendo o enfastiado pão com manteiga, a célebre fatia.
No dia
seguinte, quando a criada veio sacudir os móveis, caiu das nuvens, coitada!
Cada rombo deste tamanho, afora uma porção de rendinhas, na casimira do fardão,
de modo que a intertela e os recheios do peitilho estava tudo estripado e
esbrugado.
Consequência:
um ódio entranhado aos ratos. Os cantos da casa povoaram se de ratoeiras. Era
um nunca acabar.
Pois,
senhores, roerem a mais linda, a mais garbosa, a mais rica, amais nobre farda
da província?! Ah! se o coronel pudesse estrepar toda a ratagem unânime das
nações na ponta de seu gládio!
Em um
amanhecer de abril, sofrivelmente belo, a criada, deixando para mais tarde a
visita às ratoeiras, aconteceu que ajuntaram-se à pequena Maria o pequeno
Manuel e o caçula, e foram despescar, por sua conta e risco, as da despensa.
O cabeça do
motim, que todos sabem ser a senhora dona Maria, como lhe chama a mãe quando
se enfeza, não teve mais o que fazer, e, cercada pelos dois bargados
consócios, assentou-se no chão, depondo a ratoeira sobre o pano do vestido que
se fazia entre as duas perninhas abertas.
A ratoeira
não era mais de que uma cúpula de arame cozida a uma rodelazinha de pinho.
Dentro, porém, havia era um bicho cinzento e uma porção de bichinhos vermelhos,
da cor dos dedinhos do caçula: fenômeno raro, que provocou uma gritaria
hilariante, aliás inconveniente, porque atrás acudiram a criada, a mamãe e até
o coronel, a ver o que fazia aquela troça de quenquéns.
Maria
estava metendo a mão para abocanhar a bicharada — em tempo de ser mordida! — e
o Manuel procurava também se havia outro buraco onde ele pudesse meter a dele.
— Virgem
Maria! — vozeava a criada.
— Isto é o
diabo! — roncava o coronel.
Recuaram
todas as mãos, e a curiosidade das criancinhas foi achar nos olhos delas o
desejado e inviolável refúgio.
A mamãe,
porém, encarando o caso, juntou as mãos enternecidamente, e, cobrindo o marido
e os três filhinhos com um daqueles olhares que só em mulheres se depara,
exclamou cheia de profundo sentimento materno:
— Espera,
que é uma ratinha que deu à luz na ratoeira!
O duro
militar ficou basbaque. Enquanto a rata puérpera, impunemente, pacatamente, com
o salvo-conduto de sua boa estrela de mãe, saía, como um anão no meio de
enormes gigantes de conto de fada, e galgava novamente as prateleiras prenhes
de queijo. A ninhada se amontoava no regaço da pequena Maria, — uma porção de
bichinhos vermelhos, da cor das carnes tenras do caçula, cujo corpinho nu
estava ali acocorado, a alma de criança aberta nuns olhos admirativos,
exclamando com jubilosa admiração:
— Uói! — apontando para os ratinhos com o dedinho
vermelho.
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