O ar do vento, Ave Maria
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes
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Ia a lua
sumindo-se lívida, por trás de um cabeço onde se abria o roçado. Por entre as
palhas do milho, — um mar de cobraria esverdeada, com reflexos de armas brancas
em mãos de combatentes revoltos, — fervilhava um sopro álgido que saía roncando
de sob a mata cavernosa das cercanias. Pelo meio da roça bracejavam uns
gigantes magros, pretíssimos, grandes árvores cuja fronde em tempo fora roída
pela queima das coivaras. Em um dos cantos, como rico em seu sobrado, estava eu
na rede muito aereamente armada nos músculos de uma peroba. Via as árvores
salientes como se fossem rochedos, e o cerrado do bosque me fazia horror.
Palavra que me arrependia daquela caçada. Porém, tinha uma fé extraordinária no
uniforme de couro tanado que me modelava dos pés à cabeça. Me lembrava de que,
se visse uma onça, era só enluvar na esquerda o chapeirão e meter-lhe pela boca
adentro, enquanto com a destra lhe furasse corajosamente o coração com uma
facada. Eu via blocos muito escuros no meio da claridade morna que circula no
organismo da própria noite.
Verberações
de estrelas abrindo os olhos de fera. Me achava meio nada, meio ser. O
horizonte não existia a tais horas senão para as penetrações luminosas,
nascimento ou sepultação de algum astro. Não havia perspectiva.
De repente
ouvi quebrar mato e estremeci todo. Perguntei a mim mesmo: "Pois veado faz
medo assim?"
Entretanto
o ruído não procurava o roçado, como faria o cervo, para furtar milho; mas
entranhava-se para o meu lado.
Pus-me de
bruços, com a espingarda por baixo de mim e o dedo no gatilho. Os meus olhos
apavorados farejavam a direção da caça. Mas, diabo! veado faz medo assim? No
tronco encovado de uma embaúba, cessou o movimento; e em seguida vi
perfeitamente um bicho que, se espojando, rosnava, grunhia, relinchava, berrava...
— Fogo! — gritei
eu no meu silêncio de horror.
Asneira!
Estou em presença mas é de uma visage!
Por fim o
monstro arrancou numa carreira furiosa pelo ventre da floresta, e então parecia
arrastar milheiros de correntes, de latas, de caixões ocos, e relinchava com o
estridor anunciante de uma locomotiva.
— Burra sem
cabeça! cochichei eu, todo encolhido, os cabelos em pé as mãos entre as pernas
apertando o cano da espingarda, o nariz com um arrocho, e os olhos porejando
lágrimas de morte.
Entretanto,
vi que o bicho tinha deixado uma coisa no chão. O que será? Ele já vai longe,
já se não percebe mais a barulheira; desçamos. Desembainhei a faca, prendi-a no
dente, e gatinhei pela árvore abaixo. Ah! nesse momento eu sentia todas as
delícias do pavor! Entretanto, o laço irresistível da curiosidade me chamava
para o pé da embaúba. Então eu me sentia gigante, conquistador, bandido,
valente, capaz de brigar com a floresta inteira, quanto com uma burra de padre.
O que o
bicho deixara no tronco da embaúba, era justamente uma cabeça de mulher, com o
rosto enterrado. Suspendi-a pelos cabelos e ela fez umas caretas horrorosas!...
Larguei-a de repente no chão, como quem solta uma brasa e corri. Por acaso
voltei o rosto e vi que a face daquela cabeça hedionda tinha ficado para cima.
Estava eu, portanto, desgraçado; o bicho, quando viesse, talvez por descuido,
engonçaria a cabeça assim invertida. E me seguirá a pista, porque ele ficará
desesperado... visto que as visages devem ter também as suas leis e os seus
logros.
Felizmente
alcancei a estrada. Como se a massa bipartida da selva fosse adiante de mim se
desorganizando, eu ia distinguindo o que é próximo do que é longe. Me parecia
ver uma árvore, como uma montanha, debruçada sobre o pálido fio da estrada, e,
quando eu me achegava eram muitas árvores separadas, porém, na mesma
trajetória.
Havia
nuvens baixas, que pareciam nebulosas, e outras escuras, modelando selvas
suspensas. O volume absorvia à linha e à superfície. Os insetos vibravam por
todos os cantos. Uns soltavam alaridos compassados, como pulsações de um
coração. Outros um contínuo som brilhante, vivo como estrelas. De quando em vez
um sapo coaxava de lá uma voz grossa, notas do peito. E outro assobiava, como
pelo canto da boca. Tudo parecia esquisitamente embiocado na pilhéria da
escuridão. A mãe-da-lua solfejava as notas inauditas, sobrenaturais, da sua
eterna escala descendente.
Ao
amanhecer, me achei deitado no copiá de uma fazenda, e perguntei ao primeiro
passante que vinha da vila:
— A amásia
do vigário teve alguma coisa, amigo?
— Um
açulero dos diabos, seu moço! Dizem que ela amanheceu com a cabeça torta!
— Mas você
viu-a? Isto é exato?
— A
freguesia está toda cheia.
E o
vaqueiro da fazenda, que acabava de encilhar o seu cavalo de campo, foi
montando e dizendo:
— O que a
mulher tem é o ar do vento...
— Ave Maria
— concluiu o outro se benzendo.
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