Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A
vidraça tinha batido na casa fronteira, sacudindo um relâmpago pelo quarto
adentro, e foi como a voz do patrão que o despertasse com todas as peripécias
de um carão em regra.
Depois
de ter percorrido o quarto, com o lençol de chita forradinho de branco
arrastando como uma capa de rei, à procura do paletó de alpaca, do colete de
fustão, da calça de gazineta, da gravata e do chapéu cinzento, desenterrando
tudo isso do meio da desordem geral, como de uns escombros, enfiou a bota. Esta
parecia ter o rosto inchado, como o do dono, sem lustro, como se lhe houvessem
esfregado uma lixa, ela, a bota que ontem à noitinha luzia como uns olhos
negros!
Quando
ele alçou a perna, enfiando o dedo na presilha do cano suarento, o solado
amostrou uma grande parte roída que punha em evidência os pontos até à
palmilha.
Aquele
sapato nem mais rangia! Coitado, era como a maior parte dos rapazes, depois que
se casam. Ai da rangedeira, do lustro, do tacão, do elástico, da integridade da
sola e do couro!...
O
rapaz filosofava assim, cochilando sobre a outra bota, que apanhou, de perna
estirada, e o pé já na meia cor de café com a pontinha branca.
O
poder gigante da inércia calcava-o; e o dedo magnético dos sonhos descia-lhe
de novo as cortinas dos olhos. Como num engenho d'água o fio de magro corrente,
caindo, incute o giro veloz à ingente rodeira, assim, breve a modorra foi
despertando a espantosa engrenagem daquele cérebro.
As
ideias da gente ficam, às vezes, como fogo de monturo...
Vinham-lhe,
como em ópera mágica, as apreensões de antes da festa, quando o carnaval era
ainda o amanhã; as comoções do primeiro momento; as emoções, os desvarios, a
espécie de abstração, de alheamento, que nos assalta em dados instantes no
forte, do bom do prazer.
Sonhando
a dormir repetiam-se-lhe episódios do sonhar acordado... E, como se fosse
passado, intrometia-se por ali mefistofelicamente o futuro, isto é: o
escritório, o pavoroso, o soturno escritório com a sua carteira bestial, com
os seus livros sem inteligência e a sua pena sem luz...
Do
cantinho da prensa do copiador, entretanto, saía, distintamente, uma senhora...
aquele escritório era dele agora... que ventura, ele se transformava no patrão...
aquela era a esposa dele que vinha reforçá-lo com os segredos do seu ser...
chamava-o para almoçar, e ele voltava-se risonho:
—
Já vou.
Os
livros e as penas agora para ele chegavam a sentir: não tinham inteligência,
nem luz, mas eram os seus amigos...
E
tinha rancor a tudo que não fosse ela. Qual baile, qual nada...
O
sapato caiu-lhe da mão... Diabo, o salto bateu oco, indiferente, maquinal, frio
como um aviso de despedida... O coração bateu... Faltava banhar o rosto e
passar a escova nos dentes, pentear-se, escovar-se... porque enfim até isso a
casa exigia.
A
bacia e a moringa apresentavam-se na janela, por onde entrava o ruído da vida
ressurgida na quarta-feira de cinza...
O
sol parecia ondular com o vento por cima dos telhados como no pano de um circo...
Ao
contato da água fria nos dedos, à carícia do ar exterior, o rapaz, esfregando
os dentes na sua janela, vestido como um tresnoitado boêmio, foi que começou a
acordar apenas... o sangue, chamado às gengivas pela fricção da escova, a
mucosa da boca vasculejada pela água, o movimento do braço, — como um cheiro
que se aplicasse ao nariz, numa síncope, — chamavam-no à vida muscular...
Porém
as ruas ainda estavam caladas.
No
meio do quarteirão parava uma velha carroça roxo-terra; e sentia-se
asperamente o chiado seco da vassoura da limpeza pública.
Pausadamente
caminhavam os caixeiros, em número escasso a abrir as lojas. Ouvia-se
espaçadamente grunhirem as linguetas, rosnarem os gonzos, em um quase silêncio.
Passavam rareados convalescentes para as vacarias; e distribuidores de pão com
as cestas de vime ao ombro com a costumeira manta encarnada.
Assanhava-se
a bem-aventurada sonaria dos sinos, tocando ao descarrego das consciências.
E
desapareciam na esquina rezadeiras apressadas.
Raparigas
de vestido simples e cabelo penteado com água, as mãos Caídas sobre o ventre,
com o lenço, o rosário e o manual, os sapatos comidos para um lado, de
elástico esgadelhudo; a vista para o chão como se atravessassem uma região
impudica; a tez palidecida, iam, com o erotismo abafado de quem sorve a
nevrose do templo por lhe ser inacessível a nevrose do mundo...
Os
caixeiros sacudiam as trancas de ferro, e varriam os interiores.
Via-se,
deles, alvos, robustos, de mangas arregaçadas. Defronte uns arrumavam peças de
chita, com o olhar tresnoitado o pequenino.
Um
belo dia que se alevantava na rua! Longe ouvia-se o bater de uma enxó e o chiar
intermitente de uma serra. Um caixeiro moreno por demais, de cabelo à
escovinha, novato, muito puxado no serviço, parecia notar longamente os
transeuntes, com a vassoura em descanso, e manifestava a presença desanuviada
de quem conservasse ainda a doce brutalidade do sertanejo. O arzinho de chuva,
que ameaçava, devia lembrar-lhes que habitar nos matos, bebendo e jantando
arroz com carne odorante a queijo, respeitado não só pelo cabroeiro, que
costumava tratar a meninos de família por seu
cadete, como pelas autoridades e funcionários que soíam passar as mãos
pela cabeça do filho do doutor fulano, e do capitão sicrano, era preferível a
sujeitar-se aos apelidos de cabeça
de toicinho, cabelo de espeta-caju, a suportar os carões do patrão e a aguentar
o mau-trato dos colegas...
Enfiavam
para o Mercado vários vendilhões, entre os quais destacavam-se os de hortaliça,
com a luzente bacia de zinco donde repolhava o cetim das alfaces, o crespo das
couves, e repontavam os biquinhos dos quiabos, dentre a púrpura dos tomates...
coentros de palminhas bordadas, e molhos de cebolas... Lá iam mulatas de xale a
tiracolo com as vasilhas para as compras; marchantes, de roupa asseada e passo
ligeiro com o guarda-sol debaixo do braço; meninos a distribuir jornais:
pedreiros; carpinas: homens do ganho com o uru vazio: donos de casa, em pessoa
para a feira... e cegos mendigos, com a mão no ombro dos guias de roupa suja e
rota...
Apertando
o gargalo da moringa, o rapaz encheu a bacia, e, quando a fisionomia sentiu as
primeiras mãos-cheias de água, a rede elétrica dos nervos transmitiu por todo o
corpo a verdadeira e definitiva sensação do despertar. Foi como se retumbasse a
voz de — sentido! — por um
batalhão em forma que estivesse em descanso.
E
breve, no impedimento da toalha de rosto, que ele não sabia onde parava,
enxugou-se no lençol."
Ensaiou
os primeiros passos na direção da saída, mesmo porque já um relógio batera
placidamente as sete horas. Aquilo é que era suar um coração agoniado. Sete
horas, hora de horror...
"Hora
de febres fatais
Hora em que gemem saudades
Dos tempos que não vêm mais!
Quando os pálidos precitos
Requeimam lábios malditos
Em taças de negro fel!...”
Hora em que gemem saudades
Dos tempos que não vêm mais!
Quando os pálidos precitos
Requeimam lábios malditos
Em taças de negro fel!...”
Mas, enfim, saiu como um doido.
Maldita
caneta, livros cínicos do comércio! A Inquisição não se lembrou desse tormento
pavoroso!
E
naquela negação absoluta pelo trabalho, ele suspirava ardentemente,
imprecativamente, como o desgraçado rico, do inferno vendo Lázaro no céu:
—
Deus, oh Deus! por que não me fizeste empregado público?!
Momento depois ouvia-se ainda o ganir dos armadores ao balanço
decrescente da rede, no quarto deserto e desordenado, onde as manchas de sol
iam insensivelmente caminhando por cima dos trastes e das roupas e das
estampas coladas na parede.
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