9/11/2017

De pena atrás da orelha (Conto), de Manuel de Oliveira Paiva









De pena atrás da orelha
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A vidraça tinha batido na casa fronteira, sacudindo um relâmpago pelo quarto adentro, e foi como a voz do patrão que o despertasse com todas as peripécias de um carão em regra.
Depois de ter percorrido o quarto, com o lençol de chita forradinho de branco arrastando como uma capa de rei, à procura do paletó de al­paca, do colete de fustão, da calça de gazineta, da gravata e do chapéu cinzento, desenterrando tudo isso do meio da desordem geral, como de uns escombros, enfiou a bota. Esta parecia ter o rosto inchado, como o do dono, sem lustro, como se lhe houvessem esfregado uma lixa, ela, a bota que ontem à noitinha luzia como uns olhos negros!
Quando ele alçou a perna, enfiando o dedo na presilha do cano sua­rento, o solado amostrou uma grande parte roída que punha em evidên­cia os pontos até à palmilha.
Aquele sapato nem mais rangia! Coitado, era como a maior parte dos rapazes, depois que se casam. Ai da rangedeira, do lustro, do tacão, do elástico, da integridade da sola e do couro!...
O rapaz filosofava assim, cochilando sobre a outra bota, que apa­nhou, de perna estirada, e o pé já na meia cor de café com a pontinha branca.
O poder gigante da inércia calcava-o; e o dedo magnético dos so­nhos descia-lhe de novo as cortinas dos olhos. Como num engenho d'água o fio de magro corrente, caindo, incute o giro veloz à ingente rodeira, as­sim, breve a modorra foi despertando a espantosa engrenagem daquele cérebro.
As ideias da gente ficam, às vezes, como fogo de monturo...
Vinham-lhe, como em ópera mágica, as apreensões de antes da festa, quando o carnaval era ainda o amanhã; as comoções do primeiro momento; as emoções, os desvarios, a espécie de abstração, de alheamento, que nos assalta em dados instantes no forte, do bom do prazer.
Sonhando a dormir repetiam-se-lhe episódios do sonhar acordado... E, como se fosse passado, intrometia-se por ali mefistofelicamente o fu­turo, isto é: o escritório, o pavoroso, o soturno escritório com a sua car­teira bestial, com os seus livros sem inteligência e a sua pena sem luz...
Do cantinho da prensa do copiador, entretanto, saía, distintamente, uma senhora... aquele escritório era dele agora... que ventura, ele se transfor­mava no patrão... aquela era a esposa dele que vinha reforçá-lo com os segredos do seu ser... chamava-o para almoçar, e ele voltava-se risonho:
— Já vou.
Os livros e as penas agora para ele chegavam a sentir: não tinham inteligência, nem luz, mas eram os seus amigos...
E tinha rancor a tudo que não fosse ela. Qual baile, qual nada...
O sapato caiu-lhe da mão... Diabo, o salto bateu oco, indiferente, maquinal, frio como um aviso de despedida... O coração bateu... Faltava banhar o rosto e passar a escova nos dentes, pentear-se, escovar-se... porque enfim até isso a casa exigia.
A bacia e a moringa apresentavam-se na janela, por onde entrava o ruído da vida ressurgida na quarta-feira de cinza...
O sol parecia ondular com o vento por cima dos telhados como no pano de um circo...
Ao contato da água fria nos dedos, à carícia do ar exterior, o rapaz, esfregando os dentes na sua janela, vestido como um tresnoitado boêmio, foi que começou a acordar apenas... o sangue, chamado às gen­givas pela fricção da escova, a mucosa da boca vasculejada pela água, o movimento do braço, — como um cheiro que se aplicasse ao nariz, numa síncope, — chamavam-no à vida muscular...
Porém as ruas ainda estavam caladas.
No meio do quarteirão parava uma velha carroça roxo-terra; e sen­tia-se asperamente o chiado seco da vassoura da limpeza pública.
Pausadamente caminhavam os caixeiros, em número escasso a abrir as lojas. Ouvia-se espaçadamente grunhirem as linguetas, rosnarem os gonzos, em um quase silêncio. Passavam rareados convalescentes para as vacarias; e distribuidores de pão com as cestas de vime ao ombro com a costumeira manta encarnada.
Assanhava-se a bem-aventurada sonaria dos sinos, tocando ao des­carrego das consciências.
E desapareciam na esquina rezadeiras apressadas.
Raparigas de vestido simples e cabelo penteado com água, as mãos Caídas sobre o ventre, com o lenço, o rosário e o manual, os sapatos co­midos para um lado, de elástico esgadelhudo; a vista para o chão como se atravessassem uma região impudica; a tez palidecida, iam, com o ero­tismo abafado de quem sorve a nevrose do templo por lhe ser inacessível a nevrose do mundo...
Os caixeiros sacudiam as trancas de ferro, e varriam os interiores.
Via-se, deles, alvos, robustos, de mangas arregaçadas. Defronte uns arrumavam peças de chita, com o olhar tresnoitado o pequenino.
Um belo dia que se alevantava na rua! Longe ouvia-se o bater de uma enxó e o chiar intermitente de uma serra. Um caixeiro moreno por demais, de cabelo à escovinha, novato, muito puxado no serviço, parecia notar longamente os transeuntes, com a vassoura em descanso, e ma­nifestava a presença desanuviada de quem conservasse ainda a doce brutalidade do sertanejo. O arzinho de chuva, que ameaçava, devia lembrar-lhes que habitar nos matos, bebendo e jantando arroz com carne odorante a queijo, respeitado não só pelo cabroeiro, que costumava tratar a meninos de família por seu cadete, como pelas autoridades e funcio­nários que soíam passar as mãos pela cabeça do filho do doutor fulano, e do capitão sicrano, era preferível a sujeitar-se aos apelidos de cabeça de toicinho, cabelo de espeta-caju, a suportar os carões do patrão e a aguentar o mau-trato dos colegas...
Enfiavam para o Mercado vários vendilhões, entre os quais destacavam-se os de hortaliça, com a luzente bacia de zinco donde re­polhava o cetim das alfaces, o crespo das couves, e repontavam os biquinhos dos quiabos, dentre a púrpura dos tomates... coentros de palminhas bordadas, e molhos de cebolas... Lá iam mulatas de xale a tira­colo com as vasilhas para as compras; marchantes, de roupa asseada e passo ligeiro com o guarda-sol debaixo do braço; meninos a distribuir jornais: pedreiros; carpinas: homens do ganho com o uru vazio: donos de casa, em pessoa para a feira... e cegos mendigos, com a mão no om­bro dos guias de roupa suja e rota...
Apertando o gargalo da moringa, o rapaz encheu a bacia, e, quando a fisionomia sentiu as primeiras mãos-cheias de água, a rede elétrica dos nervos transmitiu por todo o corpo a verdadeira e definitiva sensação do despertar. Foi como se retumbasse a voz de — sentido!por um batalhão em forma que estivesse em descanso.
E breve, no impedimento da toalha de rosto, que ele não sabia onde parava, enxugou-se no lençol."
Ensaiou os primeiros passos na direção da saída, mesmo porque já um relógio batera placidamente as sete horas. Aquilo é que era suar um coração agoniado. Sete horas, hora de horror...
 "Hora de febres fatais
Hora em que gemem saudades
Dos tempos que não vêm mais!
Quando os pálidos precitos
Requeimam lábios malditos
Em taças de negro fel!...”
Mas, enfim, saiu como um doido.
Maldita caneta, livros cínicos do comércio! A Inquisição não se lem­brou desse tormento pavoroso!
E naquela negação absoluta pelo trabalho, ele suspirava ardente­mente, imprecativamente, como o desgraçado rico, do inferno vendo Lá­zaro no céu:
— Deus, oh Deus! por que não me fizeste empregado público?!
Momento depois ouvia-se ainda o ganir dos armadores ao balanço decrescente da rede, no quarto deserto e desordenado, onde as manchas de sol iam insensivelmente caminhando por cima dos trastes e das rou­pas e das estampas coladas na parede.

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