Tradução
publicada na revista “O Echo”, em 1916. Pesquisa, transcrição e adaptação
ortográfica: Iba Mendes (2017)
Vivia outrora
um cavalheiro muito rico. Tinha muitos criados que o louvavam, dizendo:
— Não existe
sob o manto do céu amo nenhum como o nosso. Dá-nos fartamente de comer,
veste-nos bem, distribui-nos o trabalho na medida das nossas forças, jamais nos
constrange com palavras ríspidas. Não é como os demais senhores que tratam os
seus servidores como se fossem animais ou coisa pior.
Assim o
elogiavam. Suspeitou o diabo que esses criados viviam em camaradagem com o seu
amo e lhe eram muito afeiçoados, o que o não agradava, e para impedi-lo se
apoderou de um deles, chamado Aleb, encarregando-o de corromper os seus
camaradas.
Um dia,
enquanto os seus companheiros se desmanchavam em louvores ao arrogante, exclamou:
— Fazeis mal,
amigos, em decantar o nosso patrão; servimo-lo fielmente, demonstrando-lhe a
nossa gratidão. Do mesmo modo que nos deseja ele o bem, auguramo-lho também.
Obrando assim, como quereis que não reine a melhor harmonia entre ele e nós? Se
não fôssemos bons, faria como outros, pagando-nos o mal com o mal; seria mesmo
pior do que os outros.
Os criados
discutiram com Aleb e propuseram uma aposta.
Aleb se
encarregou de atormentar o seu excelente senhor, com a condição de perder o traje dos dias de festas se não conseguisse enfurecê-lo, obrigando os seus companheiros
a presenteá-lo com os deles caso obtivesse a vitória.
Ficou assim acertada
a aposta.
O serviço de
Aleb consistia em pastorear um pelotão de ovelhas, vigiando contudo alguns
cordeiros, de alto preço, com mais carinho.
No dia
seguinte, o senhor acompanhado de vários forasteiros foi ao campo ondo pascia o
rebanho, mostrando-lhes os magníficos carneiros que possuía e que tinha em alto
apreço.
O criado a serviço
do diabo fez então sinal a seus companheiros, como quem dissesse: "vou
agir contra o nosso amo”. Todos os criados se haviam postados sobre o muro
fronteiro.
O diabo subiu
numa árvore, vendo do alto dela todo o parque para apreciar a conduta do seu servidor.
O dono entrou radiante, mostrando a seus hóspedes aquela leva de lindos
carneiros.
— São todos de
raça apurada, disse. Um deles tem os cornos retorcidos em espiral, e não o
cedereis por nenhum preço; quero-o tanto como às meninas dos meus olhos.
Assustados com a presença de tanta gente, os animais puseram-se a correr,
tornando-se impossível aos hóspedes contemplar o famoso cordeiro de que se
falava. Viu o criado do diabo que o carneirinho se apartara do rebanho;
perseguiu-o, fazendo mesclar-se com os demais, impossibilitando descobri-lo de
novo.
Então disse o senhor a Aleb:
Aleb, querido
amigo, rogo-te que procures o carneiro de chifres retorcidos e o tragas aqui.
Como se fora
um leão, Alob se lançou sobre o rebanho, pegou o animal pela lã, prendeu-lhe as
patas dianteiras e com tamanha brutalidade, que o pobre carneiro caiu de chofre.
Tão brusca fora a queda que se lhe arrebentou a pata.
Os hóspedes e
os criados gritaram horrorizados. O diabo se regozijou vendo a audácia com que
se conduzira o seu escravo.
Um velo de
tristeza ensombrou o rosto do patrão, que se inclinou triste sobre o carneiro
em estertores, sem que lhe escapasse dos lábios uma palavra. Os hóspedes e os
criados calaram-se religiosamente: esperavam o que deveria suceder. Calou-se
por mais um momento o senhor, e depois, subitamente, como se rechaçasse um
pesadelo, alevantou altaneiramente o rosto e contemplou o céu; apagaram-se-lhe
as rugas do rosto, e volvendo-se risonho para Aleb, disse-lhe com ternura:
— Aleb Aleb! Ele,
que é agora o teu dono, ordenara-te que me encolerizasses; meu Senhor, porém, é
mais poderoso que o teu, e serei eu quem vai dar padecimentos para aquele
que te governa. Não esperes, pois, Aleb, que te imponha castigo pela falta
que cometeste. Desejavas a liberdade: desde agora concedo-a perante os hóspedes;
vá em paz e deixa a tua roupa dos dias de festas.
E o bom senhor
recolheu-se à casa, acompanhado dos seus hóspedes.
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