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Junto à
amurada engoiava-se uma gaiola de paus, onde, como um pêndulo, sombras de velas
e cordagens iam e vinham vagarosamente ao bel prazer da flutuação.
Rondava
dentro da jaula um gato maior que um cachorro grande.
Perto,
quando clareava, reluzia o olhar de um negro, acocorado no sopé do mastro, com
as mãos cruzadas abarcando os joelhos.
Via-se bem
o animal preso, movendo-se com pés de seda e garbo de mulher.
Passeava
desdenhosamente. Amarelo fulvo, lindamente mouriscado com patacos pretos, como
não há veludo. Quando alguém aproximava-se, a fera largava uma roncaria por
entre presas, e dava botes nos paus, explodindo búfidos espantosos.
O
comandante muitas vezes desanuviava a sua cerveja fazendo-se espectador da
eterna aversão e tolhido orgulho do bicho feroz, de cujo cativeiro abusavam;
faziam-se trejeitos, cutucavam com um bastão, davam-lhe um pau a morder, de
modos que o animal parecia chorar de raiva.
O piloto,
muito chalação, desandava-lhe descomposturas:
— Anda lá
marafona! Pensavas qu'isto qu'era a furna? Olhe que ela pega-o, comandante!
E daí,
amabilizava com uns nomes feios — filha desta, filha daquela, como se fosse
entre duas pessoas:
— Eu não lhe
tenho medo, porque lá arrebentar esse nicho é o que ela não pilha.
Nessa
noite, o negro notou um lume que boiava no escuro do oceano, como um
pirilampo; e o seu pensamento, que por uma certa simpatia de gênios e de
condição costumava ater-se à onça presa, apegava-se agora a esse nonada
fosforescente.
Muito
depois, o foguinho crescia, e o negro foi obrigado a sair de ao pé do mastro,
por via das manobras de bordo. O diabo do lume tinha coisa: o navio evitava-o
como se estivesse cheio de pólvora e essa tocha distante fosse uma faísca a
persegui-lo perversamente.
O negro,
sentindo que havia um perigo qualquer, volveu de novo o pensamento para o
tigre.
Antegustava
uma satisfação feroz, prevendo um belo horror de destruições. Apertavam as
vozes de comando, e o mestre enfurecia — quisera ter os punhos do mundo
inteiro para torcer o rumo do vento! Era uma vela meter-se onde eles queriam, e
bambeava com os paroxismos de um soçobrante. Havia um demo no espaço negro a
embirrar com o barco.
O
comandante e oficiais ainda estavam bêbedos da orgia que tiveram ao sair do
porto.
O escravo,
supersticioso, jurava entre si que o lume que se aproximava era o espírito
maligno, em feitio de macaco, às cabriolas de onda em onda, com uma brasa na
boca. Ele via até os ziguezagues na trajetória do farol movediço.
Assombrado
pela incerteza do perigo, ele desceu, e voltou com um machado. No pescoço
conservava o seu amuleto. Estava armado para o desconhecido. Fazia muito frio.
Começou a espalhar-se um medo, insinuativo no meio da treva, e mais tarde o
pavor.
De repente
a luzinha estava mesmo em cima deles, emaranhada no porte alevantado de um
paquete a vapor.
Um
estremeção prolongado, como um desabamento, saiu do navio todo, que rangeu nas
ínfimas veladuras do cavername. O pessoal ficou um instante bestializado. E,
depois, como um bando turvo de vampiros no seu voar frouxo e mortuário, saía de
todos os poros a ideia da morte. O vapor, cujo era o farol fatídico, havia
metido a pique o barco, e talvez tivesse também soçobrado, matando-se ambos sem
reconhecer-se, arrastados pelo demônio das colisões marítimas, um daqueles que
ao cair do céu ficaram nos ares prestando ao gênero humano o relevante serviço
de fazer-lhe o mal.
O negro
levou as mãos à cabeça. Sob a noite estrelada, ele via os borbolhões do
horrendo por toda parte. Escaleres ao mar, salva-vidas, aconchego e desespero
dos que se amam, considerações para com os delicados, heroísmo dos fortes, num
rápido.
Dele não se
lembravam. A noite de sua pele casava com a do espaço entremeadas pela de sua
vida. Sua alma hostil armara-o de machado, porque ele, desde menino, ouvia
falar em lutas de corso e de piratas. Isto sim, lhe seria um triunfo. Entanto,
restava-lhe boiar, e ainda se fosse possível. Não podia prestar serviços,
porque ninguém se entendia, assim nas goelas da morte.
E achava-se
de braços cruzados, sobre o abismo, ele, o forte, o valentão, o calmo, o
herói, o hércules. No véu das sombras viu bruxulear os olhos do tigre. Ah! e a
fera não teria direito ao salvamento? A desordem a bordo era insuperável. Um
salve-se-quem-puder! E o possante bruto humano ergueu o machado e descarregou
um golpe sobre a jaula. Ébrio de sua majestade, arriou novo golpe, e repetiu. A
fera recuara para o fundo, e quando viu o rombo que a desagrilhoava, atirou-se...
ávida por beber sangue e doida de fome. Rolaram no convés a onça atracada com o
escravo.
O navio
empinava para a profundez. Na voragem, a fera remontou à gaiola, que flutuava
nas águas, enquanto o cadáver do escravo descia no abismo, talvez com a íntima
satisfação de ter libertado uma fera, entre eles perdurando uma certa simpatia
de gênios e de condição.
Era ele
quem tratava do tigre. Amava-lhe o rancor eterno. Achava-o formoso, tão
dourado, tão liso, tão forte! Comprazia-se em matar-lhe a sede e a fome.
Amava-o porque o bicho indicava ser insensível ao amor. E foi um grande prazer
desaparecer da vida deixando em seu lugar um bruto que era uma concretização do
ódio, humor necessário à vida social, como o fel à vida individual!
Sinistramente belo.
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