9/10/2017

O ódio (Conto), de Manuel de Oliveira Paiva



O ódio

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes
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Junto à amurada engoiava-se uma gaiola de paus, onde, como um pêndulo, sombras de velas e cordagens iam e vinham vagarosamente ao bel prazer da flutuação.
Rondava dentro da jaula um gato maior que um cachorro grande.
Perto, quando clareava, reluzia o olhar de um negro, acocorado no sopé do mastro, com as mãos cruzadas abarcando os joelhos.
Via-se bem o animal preso, movendo-se com pés de seda e garbo de mulher.
Passeava desdenhosamente. Amarelo fulvo, lindamente mouriscado com patacos pretos, como não há veludo. Quando alguém aproximava-se, a fera largava uma roncaria por entre presas, e dava botes nos paus, ex­plodindo búfidos espantosos.
O comandante muitas vezes desanuviava a sua cerveja fazendo-se espectador da eterna aversão e tolhido orgulho do bicho feroz, de cujo cativeiro abusavam; faziam-se trejeitos, cutucavam com um bastão, da­vam-lhe um pau a morder, de modos que o animal parecia chorar de raiva.
O piloto, muito chalação, desandava-lhe descomposturas:
— Anda lá marafona! Pensavas qu'isto qu'era a furna? Olhe que ela pega-o, comandante!
E daí, amabilizava com uns nomes feios — filha desta, filha daquela, como se fosse entre duas pessoas:
— Eu não lhe tenho medo, porque lá arrebentar esse nicho é o que ela não pilha.
Nessa noite, o negro notou um lume que boiava no escuro do oce­ano, como um pirilampo; e o seu pensamento, que por uma certa sim­patia de gênios e de condição costumava ater-se à onça presa, apega­va-se agora a esse nonada fosforescente.
Muito depois, o foguinho crescia, e o negro foi obrigado a sair de ao pé do mastro, por via das manobras de bordo. O diabo do lume tinha coisa: o navio evitava-o como se estivesse cheio de pólvora e essa tocha distante fosse uma faísca a persegui-lo perversamente.
O negro, sentindo que havia um perigo qualquer, volveu de novo o pensamento para o tigre.
Antegustava uma satisfação feroz, prevendo um belo horror de destruições. Apertavam as vozes de comando, e o mestre enfurecia — qui­sera ter os punhos do mundo inteiro para torcer o rumo do vento! Era uma vela meter-se onde eles queriam, e bambeava com os paroxismos de um soçobrante. Havia um demo no espaço negro a embirrar com o barco.
O comandante e oficiais ainda estavam bêbedos da orgia que tive­ram ao sair do porto.
O escravo, supersticioso, jurava entre si que o lume que se apro­ximava era o espírito maligno, em feitio de macaco, às cabriolas de onda em onda, com uma brasa na boca. Ele via até os ziguezagues na traje­tória do farol movediço.
Assombrado pela incerteza do perigo, ele desceu, e voltou com um machado. No pescoço conservava o seu amuleto. Estava armado para o desconhecido. Fazia muito frio. Começou a espalhar-se um medo, insinuativo no meio da treva, e mais tarde o pavor.
De repente a luzinha estava mesmo em cima deles, emaranhada no porte alevantado de um paquete a vapor.
Um estremeção prolongado, como um desabamento, saiu do navio todo, que rangeu nas ínfimas veladuras do cavername. O pessoal ficou um instante bestializado. E, depois, como um bando turvo de vampiros no seu voar frouxo e mortuário, saía de todos os poros a ideia da morte. O vapor, cujo era o farol fatídico, havia metido a pique o barco, e talvez tivesse também soçobrado, matando-se ambos sem reconhecer-se, ar­rastados pelo demônio das colisões marítimas, um daqueles que ao cair do céu ficaram nos ares prestando ao gênero humano o relevante serviço de fazer-lhe o mal.
O negro levou as mãos à cabeça. Sob a noite estrelada, ele via os borbolhões do horrendo por toda parte. Escaleres ao mar, salva-vidas, aconchego e desespero dos que se amam, considerações para com os delicados, heroísmo dos fortes, num rápido.
Dele não se lembravam. A noite de sua pele casava com a do es­paço entremeadas pela de sua vida. Sua alma hostil armara-o de machado, porque ele, desde menino, ouvia falar em lutas de corso e de piratas. Isto sim, lhe seria um triunfo. Entanto, restava-lhe boiar, e ainda se fosse possível. Não podia prestar serviços, porque ninguém se entendia, assim nas goelas da morte.
E achava-se de braços cruzados, sobre o abismo, ele, o forte, o va­lentão, o calmo, o herói, o hércules. No véu das sombras viu bruxulear os olhos do tigre. Ah! e a fera não teria direito ao salvamento? A desor­dem a bordo era insuperável. Um salve-se-quem-puder! E o possante bruto humano ergueu o machado e descarregou um golpe sobre a jaula. Ébrio de sua majestade, arriou novo golpe, e repetiu. A fera recuara para o fundo, e quando viu o rombo que a desagrilhoava, atirou-se... ávida por beber sangue e doida de fome. Rolaram no convés a onça atracada com o es­cravo.
O navio empinava para a profundez. Na voragem, a fera remontou à gaiola, que flutuava nas águas, enquanto o cadáver do escravo descia no abismo, talvez com a íntima satisfação de ter libertado uma fera, entre eles perdurando uma certa simpatia de gênios e de condição.
Era ele quem tratava do tigre. Amava-lhe o rancor eterno. Achava-o formoso, tão dourado, tão liso, tão forte! Comprazia-se em matar-lhe a sede e a fome. Amava-o porque o bicho indicava ser insensível ao amor. E foi um grande prazer desaparecer da vida deixando em seu lugar um bruto que era uma concretização do ódio, humor necessário à vida social, como o fel à vida individual!

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