O Preste João das Índias
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Não
basta que os contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo tempo que
deleitam, ensinem.
Este
que vou contar não sei se satisfará à primeira condição; a segunda porém, há de
por certo preenchê-la, por isso que o leitor, que o levar a cabo, ficará
sabendo quem era o Preste João das Índias, do qual todos falam, e pouquíssimos
são os que o conhecem, a não ser de nome.
Pois,
senhores, havia nas Índias um rei mui poderoso, cujo único sucessor direto era
uma filha de três ou quatro anos. Como o monarca se sentisse muito mal,
chamou todos os grandes do reino, e falou-lhes do seguinte modo:
— Ando tão adoentado, há tempos a esta parte,
que milagre será não esticar a canela antes de oito dias, e confesso que essa
partida tão repentina para o outro mundo, me penaliza em extremo, por quanto
desejava deixar casada a minha augusta filha; e no entanto Sua Alteza não passa
por ora de um comecilho. Asseguro-vos que pouco me importa morrer,
porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz morrer hoje como
amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena se casasse para aí qualquer
dia, em virtude de altas razões de estado, com um Príncipe, que não fosse muito
do seu agrado.
— Senhor, lhe tornou um dos homens políticos
mais importantes do reino, faz Vossa Majestade muito mal em estar a afligir-se
com essas coisas. Quando a Princesa chegar à idade de tomar estado, há de
casar-se com o Príncipe, que for mais do seu gosto; e se houver no reino quem
se atreva a querer opor-se à libérrima escolha de Sua Alteza, esteja Vossa
Majestade certo de que tem que se haver conosco.
— Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo
essas patranhas? replicou o rei, traduzindo a sua incredulidade
numa estrepitosa gargalhada. Nem que eu não soubesse o que são os partidos
políticos! Aquele que então estiver no poder apresentará a minha filha o seu
candidato, e a pobre pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais for
do seu gosto, mas sim com aquele que mais convier aos seus ministros, os quais,
só por satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão capazes de a
obrigar a casar ainda que seja com o mouro Musa.
— Mas, senhor, Vossa Majestade deve lembrar-se
de que este país é um país essencialmente monárquico...
— Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo,
todos os dias, homens políticos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito
divino, e que, se um belo dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente, a
negar o direito de pessoas decentes!
— De acordo, mas é que esses são
uns vilões que nunca deveram ter parte na luta dos partidos.
— Mas o grande caso é que a têm no gozo dos
direitos constitucionais.
— Em suma, ordene Vossa Majestade o que lhe
aprouver, e eu lhe assevero, que pode marchar tranquilo para o outro mundo, e
sem o menor receio de que deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens.
— Pois bem, nesse caso escutai-me: quando
minha augusta filha estiver em idade do tomar estado (e isso é coisa, que
facilmente se conhece), deveis dar-lho a saber, tendo em vista todo aquele
recato com que se deve falar dessas coisas a uma donzela; em seguida fareis
apregoar por todas as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu
casar-se, e dará a sua mão ao Príncipe, que mais for do seu agrado.
— Até aí estamos bem; mas Vossa Majestade sabe
que o mundo se divide principalmente em três religiões, a saber: a religião
cristã, a maometana e a judaica. Devo portanto supor que Vossa Majestade terá
já formado o seu juízo, acerca da religião a que deve de pertencer o seu
augusto genro.
—
Homem, francamente, ainda nem tal coisa me passou pela cabeça.
— Ah! pois isso é coisa muito séria!
— Vai-te daí com esses teus escrúpulos de
freira! Vós todos sabeis que no meu reino não há religião alguma. A falar a
verdade, já por vezes tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse,
porque há muito quem diga, que não pode haver sociedade sem o freio da
religião; porém, no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os
meus botões: “deixar correr; quem me manda a mim meter a redentor? Que religião
pode haver num país tão desmoralizado como este, onde todos os dias se manda
gente à forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui, por exemplo, a religião cristã,
segundo a qual todos os homens são iguais: haviam de marchar bem as coisas,
desde o momento em que os escravos, que tiram os coches, soubessem que valem
tanto como os senhores, que vão dentro deles, mui repimpados!”
— Visto isso, entende Vossa Majestade que a
melhor religião... é não ter religião nenhuma, não é verdade?
—
Não digo isso, homem; nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O que eu te digo é
que não tenho querido quebrar demasiado a cabeça, pensando em coisas tão
delicadas. Que escolha, minha augusta filha, marido do seu gosto, e ainda mesmo
que seja perro judeu...
Assim
terminou a conferência do rei com os próceres da república, e avisado andou Sua
Majestade em não a deixar para o dia seguinte, porque naquela mesma noite teve
um ataque tão forte, que esticou a canela, sem ter tempo sequer para dizer
“Jesus”.
Como
era natural, apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha de uma
regência, que devia tomar as rédeas do governo, durante a menoridade de sua
excelsa filha, e então é que foram elas!
Sobre
se a regência devia ser de três, ou de um único estadista, e se este
deveria ser Pedro ou Paulo, levantou-se tamanha tempestade, que ia tudo
pelos ares. Por último optaram pela regência una, e por então
terminou a contenda; porém os partidos políticos, para os quais ver os seus
contrários no poleiro e ver o diabo é tudo uma e a mesma coisa, começaram
novamente a tecer os pauzinhos. Era o regente um soldado destemido e honrado de
uma vez; porém como homem de estado não passava de um simplório, que
entendia tanto de governo como eu entendo de lagares de azeite; os seus
inimigos, aproveitando-se da inépcia com que ele dirigia a política, não
descansaram enquanto lhe não deram um pontapé, e o expulsaram do palácio.
Nomeou-se
novo regente. Este então era um pássaro que cantava na mão, porém ao mesmo
tempo, tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz de se meter cem braças
pela terra abaixo; daí resultava que cada dia havia um pronunciamento.
Por
efeito de um desses pronunciamentos, caiu o regente, e organizou-se então uma
regência composta de três magnatas.
Até
ali era um só a criar nichos para empregar os seus amigalhotes, um só a querer
enriquecer à custa da nação, um só a monopolizar os favores da jovem Princesa,
e um só a governar mal; multipliquem agora esse um por três, e imaginem a
poeira, que se levantou com a tal regência trina!
Conheceu
finalmente a Princesa que estava em idade de casar-se, e correu voz, por todas
as nações, de que ela punha a sua mão a concurso e a daria ao
Príncipe, que mais lhe agradasse.
Os
primeiros, que acudiram ao reclame, foram os judeus, os quais trajavam rica e
vistosamente, e tinham o cuidado de fazer tinir bem o dinheiro diante da
Princesa, supondo talvez, que o vil metal teria para ela
tantos atrativos como para eles; e, enquanto os que iam à mostra faziam
sua corte à Princesa, andavam os rabinos pelos cerros pedindo a Deus, que desse
a algum dos da sua casta aquela boa pequena, que tão belo partido era.
Chegaram
em seguida os maometanos, e era muito para se ver, tantos mouros
montados em cavalos, mais ligeiros que o vento, escaramuçando e jogando
canas, a ver se, assim, engodavam a Princesa.
Afinal
apareceram os cristãos, que, com suas justas e torneios, e o seu porte cheio de
garbo e gentileza, sabiam encantar o coração das donzelas.
— Então, em qual das três religiões escolhe
Vossa Majestade marido? perguntou o presidente do conselho de ministros à
rainha.
— Homem, nem sei o que te diga, respondeu a
rainha. Bem se diz que quem tem que escolher tem que fazer. Se queres que te
fale verdade, gosto de todos.
— Vamos, mas Vossa Majestade precisa
decidir-se por um.
— Asseguro-te que sinto realmente deveras não
poder decidir-me, sequer ao menos, por três. Olha, que entre os cristãos há
alguns rapazes bem guapos!... mas entre os judeus e os mouros... não te digo
nada!...
— Em suma, disse o presidente do conselho,
isto não é sangria desatada; deixe-os Vossa Majestade penar, uns e outros, por
espaço de alguns meses, e depois, então, poderá Vossa Majestade escolher,
com perfeito conhecimento de causa; isto de escolha de marido é, para as
raparigas, operação muito delicada...
O
presidente do conselho teve a honra de que Sua Majestade seguisse o seu
parecer, e cristãos, maometanos e judeus, continuarem a fazer as suas zumbaias
à real moça, cuja mão ambicionavam.
Chegou
notícia a Roma do que se passava nas Índias, e o Padre Santo ordenou que se
fizessem preces, para que Deus inspirasse a rainha a fim de que casasse com um
cristão, coisa que redundaria em glória e aumento da cristandade.
Havia
naquele tempo em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço, conhecido pelo nome
de Preste João, o qual era a admiração de toda a gente, em razão do seu saber e
virtudes, zelo religioso e galhardia.
O
Preste João apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe:
— Santíssimo Padre, o que se está passando nas
Índias é, quanto a mim, coisa mais seria, do que parece, à primeira vista.
Aquilo é um país desgraçado, onde ninguém crê em Deus, nem em Santa Maria;
onde todos são ímpios e ateus. Se a rainha se casa com algum perro judio,
estamos bem aviados; vai tudo para o diabo. Se porém a rainha der a mão de
esposa a um cristão, corto a cabeça, se todos os índios, dentro em poucos anos,
não forem tão cristãos como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a Vossa
Santidade.
— Se for coisa que eu possa conceder-te...
— Que vossa senhoria me deixe ir às Índias,
para ver se faço entrar aquela gente no bom caminho.
— Estás servido, filho; podes partir quando
quiseres.
— Pois, nesse caso, vou imediatamente tirar
passaporte.
— Toma cuidado, filho; vê lá que esses infiéis
te não preguem alguma peça... particularmente os judeus...
— Isso não me mete medo, que por muito que
saibam, sempre hei de saber mais do que eles.
— Pois vai na graça de Deus, e leva contigo a
minha bênção paternal.
—
Graças, Santíssimo Padre!
Foi
dito e feito; o Preste João, acompanhado de um luzidíssimo séquito de
sacerdotes, em cujo número se contavam os melhores cantores de Roma, e munido
de riquíssimos paramentos e decorações de igreja, inclusive um órgão, que era o
melhor que, até então, se tinha visto naquele gênero, tomou o caminho das
Índias.
Felizmente
os ingleses não eram, naquela época, tão filantrópicos, como o são agora, do
contrário não teriam deixado de lhe armar alguma ratoeira, na ideia em que
estão, de que, para civilizar os cipaios, são mais eloquentes os seus canhões,
carregados de metralha, do que os hissopes dos missionários católicos,
ensopados em água benta.
Os
judeus e os mouros souberam que o Preste João se dirigia para as Índias, e
estavam atrapalhados da sua vida, porque havia muito tempo que a fama
trombeteira lhes tinha levado notícia do saber, da virtude, do zelo
religioso, e da extremada galhardia do Preste João.
Chegou
este, afinal, com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada da graciosa
dignidade, com que ele a saudou, a ponto de não poder ter mão em si, que não
dissesse, baixinho, ao presidente do conselho:
— Olha que este cristão não é nenhuma
asneira!...
Vendo
o Preste João a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se de Sua
Majestade, e disse-lhe:
— Senhora, vejo que Vossa Majestade vacila sobre
se há de casar-se com um cristão, com um mouro, ou com um judeu. Creia Vossa
Majestade que a religião de Cristo é a única verdadeira, grande e salvadora, e
que as outras são umas religiõesitas de três ao vintém, que nem com
cem varas chegariam ao céu, de onde procede, e onde apoia sua augusta fronte o
cristianismo. E se Vossa Majestade se quer certificar de que isto que lhe digo
é a pura verdade, não tem mais que ordenar, que nos reunamos, na sua presença,
judeus, maometanos, e cristãos, a fim de discutirmos qual das três
religiões é a melhor, e, sobretudo, qual é aquela, que mais favorece as
mulheres, pois essa é a grande questão, nas circunstâncias atuais.
— Com muito gosto; não tenho a menor dúvida em
aceder aos teus desejos, respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-eis todos
diante de mim, e veremos, então, quem é que leva a melhor.
Com
efeito, no dia seguinte, estava a rainha sentada no seu trono, e as três
religiões, representadas pelo Preste João, e pelos judeus e maometanos mais
sábios, dispostos a discutir na sua presença.
— Está aberta a sessão, disse a rainha. E como
era o Preste João quem tinha provocado aquele certame, devia considerar-se como
o primeiro, e por esse motivo que pedira a palavra, a rainha acrescentou: “Tem
a palavra o Preste João.”
Os
judeus e os mouros começaram logo a murmurar, acusando de parcial a augusta
presidente; esta porém fê-los entrar na ordem, a poder de muitas razões, e
toques de campainha.
— Senhores, disse o Preste João,
trata-se de orientar a Sua Majestade acerca de um assunto mui grave, qual
é a escolha do homem a quem, de preferência, deve ligar o seu futuro. Ora, o
que mais interessa a Sua Majestade, é saber o que mais lhe convém, se um marido
cristão, se maometano, ou judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para
Sua Majestade, desde o momento em que esta augusta senhora, ou para melhor
dizer, senhorita, souber qual é das três religiões aquela, que mais
protege e favorece os fracos em geral, e a mulher, em particular.
Comecemos
pela religião judaica.
A
mulher, no povo de Israel, era escrava submissa do homem, e não sua
companheira. Quase nas primeiras páginas, nos testemunha isso o velho
Testamento, pois nos diz que Abrahão, marido de Sara, recebeu Agar por mulher,
ainda em vida da primeira, e logo adiante nos conta que Esaú casou, ao mesmo
tempo, com duas irmãs cananeias. O Decálogo, revelado mais tarde a Moisés, no
alto do Sinai, dizia: “não desejarás a mulher do teu próximo”; mas não dizia:
“terás uma única mulher”, e Salomão, que era o protótipo da sabedoria
hebraica, teve milhares de concubinas. Pergunto eu agora a Sua Majestade se
está disposta a sofrer que o seu futuro marido lhe dê uma, ou mais
substitutas?!
— Substitutas! a mim!... exclamou a rainha
indignada. Tenho bom gênio para isso! Mais fácil seria enterrarem-me viva!
— Pois eu continuo...
Aqui
interrompem os judeus o orador, descontentes do caminho que leva a sua causa; a
rainha porém fá-los entrar na ordem, à custa de repetidos toques de campainha,
e com ameaça de os fazer expulsar do salão.
O
orador continua:
— Ficarei por aqui a respeito de judeus, os
quais, em verdade, me causam dó, ainda que não seja senão por os ver condenados
a esperar o Messias, até à consumação dos séculos; com isso já não estão mal
castigados por haverem crucificado a Cristo, porque lá diz o rifão: “quem
espera, desespera”. Passemos agora aos maometanos. Quem era o tal Mafoma?
— O profeta de Deus! exclamam
os maometanos, pondo a mão no peito, e dobrando-se reverentemente.
— Qual profeta, nem qual cabaça!...
Aqui
é que foram elas! Dizer isto o Preste João, e arrancarem os mouraços
dos chanfalhos, rugindo de cólera, foi tudo obra de um momento; a rainha
porém sacudiu a campainha, mandou entrar o piquete da guarda, e graças a esta
energia da presidência, acomodaram-se os perturbadores da ordem, e o orador
pôde, afinal, continuar:
— Mafoma era um sujeito que
passava por sábio e grande, entre os seus compatriotas, pela razão muito
simples de que na terra dos cegos, quem tem um olho é rei! Um dia, disse ele
com os seus botões: Como hei de eu arranjar a dominar estes barbaças,
que não tratam senão de se divertir com as moças?... como?... esperem lá... já
sei. Engendro-lhes uma religião baseada no grosseiro sensualismo, e meto-lhes
na cabeça, que ela me foi revelada por um anjo.” E dito e feito: arranjou o tal
alcorão, segundo o qual, a mulher e o cavalo vem a ser, para o homem,
uma e a mesma coisa, por isso que apenas servem para o divertir; e fez
acreditar aos asnos dos seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam de
encontrar moças às dúzias, e obra desenganada.
— E é que as havemos de encontrar! gritam
furiosos os maometanos.
— Deixemos-nos de lerias!... que hão de vocês
encontrar?! Só se forem alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns
bárbaros como vocês, que atravessam séculos e séculos, sem dar um passo na
senda do progresso! Vamos porém agora a ver o que é a mulher, segundo a
religião estúpida de Mafoma.
— Lancem-se essas palavras na ata! gritam,
afogados em cólera, os maometanos.
— Não é da minha real vontade! responde a
rainha. Prossiga o orador no seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o
uso da palavra.
— Pois bem, eu continuo: É para cortar o
coração, e fazer cair a alma aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos
muçulmanos. Não se contentam estes senhores com ter duas ou três mulheres;
possuem centos delas, encerradas em cárceres, a que dão o nome de
serralhos, ou haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas da Turquia, e
não encontra uma mulher sequer para um remédio; e isto porque esses bárbaros
até as privam do ar e do sol, as duas coisas mais preciosas, que a natureza
concede à criatura. Horror! cem vezes horror!! Negarem à mulher, esse formoso
ser, todo amor e ternura, a quem todos nós temos dado o dulcíssimo nome de mãe,
o ar e o sol, que não negam aos mais imundos irracionais! Maldição sobre essa
lei ímpia, sobre o falso profeta, que a ditou, e sobre o povo bárbaro e
fanático, que a segue!
— Ah! perro cristão!... gritam, a um tempo,
todos os muçulmanos, ao ouvir a enérgica apostrofe do Preste João; e, rugindo
de raiva, mais furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanjes,
com ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém, mandou
entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os meteu na ordem, a
poder de muita coronhada de armas.
Apaziguada
que foi aquela rusga, continuou o Preste João o seu discurso:
— Que diferença entre o que a mulher deve à
religião cristã, e o que deve a qualquer das duas religiões, maometana e
hebraica! Maria, em cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no céu,
ao lado do Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o
dulcíssimo e santo nome de mãe. A religião cristã glorifica a mulher,
destinando-a a esmagar a cabeça da serpente do pecado, e Jesus proclama a
igualdade de todas as criaturas humanas, e diz aos meninos que se acerquem
dele, igualando, por tal forma, a mulher ao homem, e exaltando os fracos em
cujo número se conta a mulher. É pois a religião cristã a única que favorece a
mulher; é aquela que a emancipa da escravidão e do opróbrio, a que a condenam
as religiões judaica e maometana. Tenho dito; veremos agora se há aí alguém,
que seja capaz de me contradizer.
— Tem a palavra os judeus, disse a augusta
presidente.
— A religião de Moisés, replicou
um rabino, já completamente desanimado, não carece de entrar em
discussões, para provar a sua superioridade sobre todas as outras.
— Ficamos inteirados! disse a
rainha, e acrescentou: Tem a palavra os doutores muçulmanos.
— Nós cá, os verdadeiros crentes,
exclamou um turco, não discutimos senão de alfanje em punho.
— Quer isso dizer, à bruta! exclamou a rainha
indignada; e erguendo-se da cadeira, acrescentou: estando já a hora mui
adiantada, e não havendo mais assuntos a tratar, está levantada a sessão.
Ficou
a rainha quase resolvida a casar com um cristão; porém, receosa de que
houvessem murmurações e comentários que lhe fossem desagradáveis, lembrando-se
de que alguém poderia dizer que ela obrara levianamente, determinou-se a tentar
uma outra prova. Consistia essa prova em fazer com que os apóstolos das
três religiões celebrassem, na sua presença, uma das cerimônias mais
importantes dos ritos que professavam.
Cristãos,
muçulmanos e judeus, todos, com muito gosto, aceitaram a proposta de Sua
Majestade, que logo fixou o dia para as cerimônias, que deviam verificar-se no
mesmo salão, onde se tinha discutido qual era das três religiões aquela a que
mais devia a mulher.
Os
primeiros que saíram a terreiro foram os maometanos, os quais anunciaram que
iam executar a Zala.
Tinha
a rainha grande curiosidade de presenciar esta cerimônia, que julgava ser
magnífica, e que muito a divertiria; quando porém viu que a tal Zala consistia
tão somente em cruzarem aqueles ratões as mãos no peito, e fazerem
reverências e mais reverências, ficou mais fria que o próprio gelo.
— Muito engraçados são os tais moirinhos!
disse Sua Majestade, com riso desfrutador; e ordenou, em seguida, que saíssem a
campo os judeus, a ver que tal se portavam.
O
grande rabino, com o seu barrete enterrado até às orelhas,
como usam os seus correligionários, sacou de um livro, e imediatamente
apareceram todos os judeus com os seus ripanços nas mãos. Ora, os tais livros
seriam muito edificantes, mas tinham tanta côdea, que só com uma tenaz se lhes
poderia pegar. O rabino principiou a entoar um salmo, e todos os judeus o
acompanharam; cantavam porém tão desentoadamente, e davam tão insofríveis
berros, que a pobre da rainha não teve outro remédio senão tapar os ouvidos, e
mandar a toda a pressa que cessasse tamanha algaravia.
Cessou
com efeito, e os cristãos dispuseram-se, por último, a celebrar o santo
sacrifício da missa, para o que o Preste João tinha tudo perfeitamente
ordenado.
Colocaram
no salão um magnífico altar, acenderam uma grande quantidade de tochas, que
faziam belíssima vista; puseram o órgão num sítio, que tinha excelentes
condições acústicas, tossiram e aguçaram o pigarro os cantores
que haviam de oficiar a missa, e que, como em princípio dissemos, eram os
melhores de Roma; e, em seguida, subiu o Preste João ao altar,
magnificamente revestido, bem como os dois acólitos, que o acompanhavam. A
missa foi soleníssima, e tanto os celebrantes, como os cantores e o organista
fizeram prodígios, que deixaram de boca aberta a rainha e a sua corte.
Os
maometanos e os judeus olharam uns para os outros, e disseram por entre os
dentes:
— Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes
perros cristãos!
E
na verdade não se enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois, o Preste
João, e disse-lhe:
— Decididamente caso com um cristão.
— Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste
João, cheio de santa alegria. Agora só falta que Vossa Majestade escolha o
cristão, que deve ter a ventura de ocupar o tálamo de tão formosa Princesa.
— Já está escolhido, disse a rainha das
Índias, fazendo-se corada como uma romã.
— E quem é esse feliz mortal?
— Tu.
—
Eu!... Vossa Majestade não está em seu juízo!
— Então! faz-te agora de manto de seda!...
— Não, senhora; porém não sabe Vossa Majestade
que eu sou padre, e que os padres católicos não podem casar?...
— Que me dizes, homem?
— Digo-lhe isto, real senhora!
— Pois, amigo; partiste-me o coração!
— Então, por quê?
— Porque estou apaixonada por ti, e se não
casar contigo, não caso com ninguém.
— Mas, senhora, entre os meus correligionários
há moços mais bem parecidos do que eu.
— Asseguro-te que nenhum me pode agradar tanto
como tu.
— Sinto isso bem; mas eu é que não posso
casar.
— Visto isso, não terei outro remédio, senão
dar a mão de esposa a algum desses mouros... que... diga-se a verdade, entre
eles há rapazes bem tirados das canelas, e o que me não agrada
neles é apenas a religião, que professam...
Quando
o Preste João ouviu estas palavras, tremeu dos pés à cabeça, pensando, e
com razão, que, pelo fato de a rainha casar com um maometano, todas as Índias,
povoadas de milhões e milhões de habitantes, abraçariam a seita detestável de
Mafoma, ao passo que, se casasse com um cristão, toda aquela gente seguiria a
religião de Cristo.
— Senhora, disse ele, por fim, à rainha, pode
ser que consigamos harmonizar tudo. O Papa, que é o Vigário de Cristo na terra,
é o único que pode autorizar-me a casar com Vossa Majestade Vou já
escrever-lhe, pelo correio de hoje, pedindo-lhe a competente licença.
— Oh! que feliz ideia! exclamou a rainha; e
riam-se-lhe os olhos, de contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos
recursos!
O
Preste João pôs logo mãos à obra; escreveu ao Papa, contando-lhe, muito pelo
miúdo, o que se passava, e, na volta do correio, recebeu de Sua
Santidade a dispensa para casar com a rainha das Índias.
Celebraram-se,
pouco tempo depois, as vodas, com grandes festas e muito regozijo (bem
entendido, depois da rainha se ter feito cristã) e, passados anos, recebiam o
batismo todos esses milhões de milhões de índios, que os ingleses, nos nossos
dias, se fartaram de metralhar, sem dó, nem piedade.
Eis
aí a história do Preste João das Índias. Outros a contarão com mais graça do
que eu, porém com melhor intenção por certo que ninguém a conta.
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