9/28/2017

O Testamento (Conto), de Medeiros e Albuquerque


O Testamento

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Alguém batia com toda a força à porta de entrada. Edmundo admirou-se. Acabavam de soar as 10 da noite. Quem podia vir àquela hora insólita?

Levantou-se do leito onde estava e perguntou, um pouco irritado:

— Quem é?

— Sou eu, o Luiz. Abre.

O Luiz era o irmão. De caso muito grave devia tratar-se, para ele vir procurar o Edmundo em momento tão impróprio. Não precisou, porém, fazer pergunta alguma. O irmão foi logo mostrando um telegrama de poucas palavras:

"Tio Eduardo muito doente perigo de vida. Convém virem." E assinado "Margarida".

Luiz morava em uma pequena casa com dois quartos, duas salas e uma cozinha. Vivia com uma companheira da qual tinha dois filhos, um de 7 e outro de 5 anos. Vida perfeitamente conjugal. Razão para não a regularizar?

Por causa precisamente daquele tio Eduardo, a cuja doença aludia o telegrama. Na intimidade, tanto Luiz como Edmundo não lhe chamavam senão "o tio rico"

A sua riqueza não era, decerto, formidável. Devia oscilar entre duzentos e trezentos contos. Vivia na roça. Viúvo, passara muito mal o seu tempo de casado e criara por isso verdadeiro ódio ao casamento. Os dois sobrinhos constituíam toda a sua família.

Certa vez, anunciou-lhes ter feito testamento em favor deles. Não deixava mais nada a ninguém. Mas o testamento tinha uma condição: estariam solteiros ao tempo da morte do doador. Se um casasse, a fortuna passaria ao outro. Se ambos fizessem isso, tudo ficaria para uma instituição de caridade.

Era formal.

Diante de tal cláusula, assentaram os dois em não casar O tio rico não poderia durar muito — isso pelo menos lhes parecia — e, sendo assim, mais valia esperar por sua morte. Casariam depois. No entanto, seria impossível achar pessoas mais próprias para o jugo matrimonial. Cada um deles achara uma companheira com a qual vivia conjugalissimamente.

Edmundo tinha tido um filho, Luiz dois. Luiz era linotipista. Ganhava o bastante para a sua vida. Não dava para grandes coisas, mas, em última análise, era suficiente. Ademais, a companheira era boa, simples, alegre. Resignada com a sua vidinha modesta, suportava-a de bom humor. Mostrava-se, sobretudo, muito cuidadosa com os filhos, sempre pobremente vestidinhos, mas limpos e direitos.

Edmundo tinha sido também feliz na escolha de companheira. Ele era marceneiro em uma oficina onde fabricava móveis finos, e como, não só tinha grande perícia, mas ainda desenhava admiravelmente, criava modelos, pagos pelos patrões com generosidade, porque em hipótese alguma o quereriam perder.

Juntava-se a isto o fato de as duas famílias, com os seus chefes à frente, entenderem-se admiravelmente bem. Luiz era o padrinho do filho de Edmundo e este o dos dois filhos de Luiz. Quando um chegava à casa do outro já contava com festivo alarido para recebê-lo.

Mal o Luiz começou a falar, o pequeno filho do Edmundo, quase adormecido, reconheceu-lhe a voz e saltou da cama para abraçá-lo. Vinha metido no seu camisolão de dormir, alegre e risonho. Pendurou-se ao pescoço do tio, abraçando-o e beijando:

— Tio Luiz! Tio Luiz!

Mas os dois irmãos precisavam conversar e preparar a viagem para a madrugada seguinte. Partiriam pelo trem das 5 horas da manhã.

A companheira do Edmundo veio também do quarto, apertou a mão do Luiz e, sabendo o motivo da visita, disse sem nenhuma dissimulação:

— Leve-o o Diabo! Já não é sem tempo.

Porque as duas mulheres detestavam o famoso tio rico: era quem lhes atravancava o caminho para a felicidade. Na esperança da riqueza, a provir do testamento, estava o grande empecilho para o casamento dos dois irmãos, regularizando-lhes a vida.

Luiz e Edmundo iam sempre no princípio do ano visitar o tio. Nesse, como nos outros, tinham prestado essa homenagem ritual. O tio Eduardo a prezava muito.

Quando a mulher morrera, ele ficara com uma rapariga, afilhada desta. Tomava conta da casa. Tinha então 25 anos. Nenhum parente. O viúvo resolveu conservá-la.

Falariam daquela situação? Era inevitável. Mas ele tinha um profundo desprezo pelas murmurações. Deixou a rapariga em casa. No fim de algum tempo, todos se habituaram. Não parecia, de fato, fosse Margarida mais que uma governante, uma criada apenas um pouco mais graduada.

O Luiz e o Edmundo tinham, entretanto, por ela uma certa antipatia. O Luiz comentou:

— Margarida deve estar bem assustada.

— Por quê?

— Porque, com a morte do tio, ela terá de rodar A não ser (ajuntou sorrindo) desejes tomá-la para ti.

— Isso não! Posso cedê-la a quem quiser.

O Luiz terminou conciliadoramente:

— Podemos rifá-la.

Não havia, porém, motivo para essa prevenção com a pobre mulher. Ela ficara na casa do velho Eduardo do qual recebia o teto, o pão e uma mensalidade insignificante. De veras, a pobre não sabia como poderia fazer qualquer coisa fora daquela prisão, onde nascera, crescera, envelhecera. Ninguém suportaria o velho com a paciência igual à dela.

Mas as duas companheiras dos sobrinhos a envolviam na mesma antipatia, votada ao tio rico. E os maridos haviam acabado por partilhar esse sentimento injusto.

Morto o tio, passando eles a ser os herdeiros, como procederiam com ela? Dar-lhe-iam um mês de salário e pô-la-iam na rua. Ali mesmo o decidiram. E firmaram a partida para a madrugada seguinte.

Luiz ficou de ir ao telégrafo e anunciar a resolução.

Feito isso, só se reveriam de madrugada na estação da estrada de ferro. O trem das 5 os levaria até certo ponto, onde se baldeariam para uma linha de bitola estreita. Durante três horas seriam sacolejados barbaramente. Do leito da estrada, de simples terra batida, o trem ao passar levantava uma nuvem densa de poeira. Era frequente ver as locomotivas puxando apenas carros de carga, os de passageiros — carros divididos em uma parte de 2ª e outra de 3ª — viajavam muitas vezes vazios.

Não houve, portanto, nada de estranho quando, feita a baldeação, Luiz e Edmundo verificaram não ter companhia alguma. O caso não lhes desagradou. Luiz, sobretudo, um pouco mais fino que o irmão, dispensava companhias com facilidade.

— Vês tu o luxo? disse o Edmundo. Vamos em trem especial, só para nosso uso.

— Tanto melhor, opinou o Luiz; mais vale só. Mal acompanhado não serve.

— Mas há uma terceira hipótese, e eu tive o bom gosto de escolhê-la. Vou acompanhado, mas em boa companhia. E sacou do bolso do sobretudo uma garrafa de parati, comprada na estação.

— Levo aqui Dona Branquinha!

Luiz não bebia álcool de espécie alguma. Teve um muxoxo de desdém.

— Bom proveito te faça!

Edmundo desarrolhou a garrafa e, pondo-a sumariamente à boca, engoliu um bom trago.

O carro atravessava então regiões áridas e desertas. Era verão. Um sol implacável calcinava tudo. Fazia um calor tremendo. De espaço a espaço, alguma árvore — algum esqueleto de árvores sem folhas erguia os ramos em ziguezagues para o céu inclemente, muito azul. Nem uma nuvem.

O trenzinho era jogado de um lado para o outro, com violência.

Os dois irmãos começaram a conversar. Lembraram a vida do tio Eduardo.

Como fora estéril!

— Afinal, disse o Edmundo, ele foi mau para si mesmo e para nós. Podia ter-nos ajudado.

Luiz mais conciliador e inteligente, ponderou:

— Não era maldade; era ignorância. Ele não sabia viver senão assim.

O álcool fazia efeito em Edmundo, naquele forno horrível. Irado, replicou:

— Mau, sim; muito mau. Não queiras adulá-lo: não te deixará mais por isso.

— Nem eu quero. Deixe quanto quiser.

Edmundo saltou, escarnecendo:

— Olha o santinho desinteressado. Se tu pudesses, tomavas tudo para ti.

— Tu sabes bem como eu seria incapaz disso.

Edmundo estava possesso, furioso:

— Nem serias tu capaz de outra coisa. Mas eu não deixo.

E com uma obstinação de bêbedo, dando punhadas no ar gritou:

— Não deixo! Não deixo! Não deixo!

Luiz calou-se. Edmundo sacou do bolso um canivetão, em cuja companhia sempre andava, e abriu-lhe a larga folha, quase uma faca. E ele se gabava sempre de trazê-la afiadíssima.

— Seria capaz de tirar fatias de vento — costumava dizer, para elogiar-lhe o corte.

Edmundo bebeu os últimos goles de aguardente e pousou a garrafa no chão. Continuava a empunhar o canivete com a folha aberta.

Nesse momento o trem galgava uma ladeira. Subia arquejante como um asmático. A aridez em torno era a mesma. Quando ele chegava a esse trecho de acentuado aclive ia lentamente. Alguém que corresse ao seu lado, correria mais depressa. Em compensação, os trens ao descerem vinham sempre em uma velocidade louca.

Naquele ramal perdido de uma estrada de ferro sem importância tudo ia à matroca. O trem onde estavam Luiz e Edmundo era bem um exemplo disso: após a locomotiva e o seu tender tinham posto sete carros de mercadorias e só no fim o único de passageiros, os quais se achavam assim absolutamente isolados.

Nisso pensava com pavor Luiz, vendo a fisionomia do irmão, demudada de fúria.

Edmundo fitava-o também:

— Então, embuchaste? Não dizes nada?

— Mas se eu não tenho nada para dizer? Farei quanto quiseres, como quiseres. Obedecer-te-ei.

Aquelas palavras deviam ser de natureza a acalmar o irmão. Eram ditas com um tom de verdadeira humildade.

Mas Edmundo pareceu ficar ainda mais feroz:

— Tu estás é com hipocrisia, pronto a me enganar quando puderes.

E avançou para o irmão. Luiz viu o perigo e levantou-se, disposto a trancar-se no gabinete de toilette do trem. Esse gabinete separava as duas classes. Mas Edmundo não lhe deu tempo. Com a mão esquerda abotoou-o violentamente, empunhando-lhe a roupa, à altura do peito e vibrou-lhe uma facada tremenda. Vibrou-a, enterrando a lâmina do canivetão à direita, à altura do fígado do irmão e correndo com o corte para a esquerda, rasgando-lhe inteiramente o ventre.

O talho tinha, decerto, mais de trinta centímetros. Por ele, os intestinos, rotos, jorrando fezes, se despejaram, e Luiz caiu pesadamente num lago de sangue.

Edmundo só então pareceu acordar do seu delírio sanguinário. Levou à testa as costas da mão direita, onde ainda estava o canivetão escorrendo sangue e arregalou os olhos horrorizado.

A bebedeira se lhe dissipara:

— Luiz! Luiz!

O trem, cada vez mais arquejante, subia devagar. Ia dobrar uma curva muito acentuada. Nada se descortinava para a frente. Tinha-se a impressão de ver os trilhos dobrarem bruscamente e penetrarem na montanha, em plena rocha.

Edmundo abaixou-se e sacudiu ainda uma vez o irmão:

— Luiz! Luiz!

Mas era inútil. Estava bem morto. Só havia o recurso de fugir e Edmundo o tomou. Não era difícil: o trem ia devagarinho, bufando, resfolegando. Edmundo armou o salto e projetou-se no espaço. Mas não reparou no fato de estar justamente na curva do lado da entrelinha, por onde ia passar a toda velocidade, no sentido da decida, o trem de volta. E a locomotiva desse trem, apanhando-lhe o corpo em cheio, quando ele ainda estava no ar, projetou-o a distância, partido ao meio, em pedaços.

O maquinista nem deu por isso. Sentiu um choque; mas a tantos a máquina estava sujeita! Um a mais ou a menos não era para ser notado.

Pouco depois o trem, onde estava o corpo de Luiz, apitou forte. A estação terminal se achava à vista. Um pouco mais — e o trem parava.

Na plataforma da estação, além do agente, só havia uma mulher de preto e um molecote. A mulher era gorda, plácida, simpática. Tinha o rosto e sobretudo os olhos avermelhados de quem chorou muito. Era Margarida.

O chefe do trem, conhecendo não só a ela como a Luiz e Edmundo, falou-lhe afetuosamente:

— Bom dia, D. Margarida. Os rapazes vêm aí.

Mal acabava de dizer isso, o molecote prorrompeu em altos gritos. Ele se adiantara até o carro de passageiros, e descobrira o corpo de Luiz numa poça de sangue.

Margarida era agora a pessoa mais importante do lugar Dois dias antes de morrer, o tio Eduardo resolvera casar-se com ela e instituí-la sua herdeira universal.

Todos ali a cercaram, carinhosamente, quando transida de horror, viu também o achado sinistro e desmaiou dizendo:

— Pobre Luiz!

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