Freudismo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
A pequena Rute Espinosa nunca percebeu bem porque o Sr. Smith, diretor d'A Trombeta da Fama, primeiro se revelou apaixonado por ela, pareceu disposto a pedi-la em casamento, e depois, subitamente, não lhe falou mais nisso, passando até a manifestar-lhe verdadeira antipatia. De veras, ela menos compreendia a segunda parte, porque uma moça de 20 anos, incontestavelmente bonita, sempre acha natural o fato de todos se apaixonarem pelos seus encantos. Mas, se o Sr. Smith cumprira a sua obrigação de homem de bom gosto, não via razão para o seu abandono de tão nobres intenções. Teriam sido intrigas, calúnias, afirmações miseráveis, veiculadas por cartas anônimas? Tudo era possível. O mais estranho, porém, seria se alguém interpelasse o Sr. Smith... Ele também não saberia responder.
Só um homem poderia explicar o caso, mas esse precisamente nunca o faria: o atual marido de Rute, o desenhista Márcio Rafael...
A agência A Trombeta da Fama incumbia-se de publicidade em geral, sob todas as suas formas: na imprensa, nas ruas, em cartazes, pelo rádio, de todos os modos. Quem queria tornar célebre um produto dirigia-se a ela e estava seguro de que A Trombeta da Fama saberia trombetear o artigo de cuja propaganda a tinham incumbido. Todos o ficariam conhecendo. A agência tornara-se célebre pelos seus cartazes. Mario Rafael tinha uma grande originalidade e espírito. Seus cartazes faziam verdadeiro sucesso. Não era raro ver amadores de bom gosto irem comprá-los à empresa para os colecionar.
No entanto, um belo dia, certo diretor pouco inteligente tivera uma desavença séria com Márcio Rafael. Este lhe dissera meia dúzia de desaforos e saíra da empresa.
De fato, ele não podia admitir as críticas de um idiota, metendo-se a corrigir-lhe os desenhos, a pedir que fossem feitos deste ou daquele modo... O diretor comercial tinha apenas a dizer-lhe o fim visado e indicar o tamanho do cartaz.
Com a saída de Márcio Rafael, A Trombeta da Fama desafinou. A agência esteve quase a fechar O desenhista seu substituto fazia uns cartazes sem graça, calamitosos. Felizmente as coisas se concertaram, com a substituição do tal diretor e a volta de Márcio Rafael. Foi nessa ocasião que o Sr. Smith tomou conta da empresa e Márcio, voltando ao seu antigo posto, fez mencionar em contrato a sua liberdade inteira na parte artística. Desenhava à sua vontade, como queria; ninguém tinha o direito de criticá-lo. A agência funcionava em vasto primeiro andar de um prédio bem central. Smith não quisera divisões, tapamentos, gabinetes separados: era tudo uma sala só, de 10 metros de frente sobre 20 de fundo. Cada um tinha sobre sua mesa um telefone interno, com o qual podia comunicar-se para qualquer das dos outros empregados. O sinal do telefone não era sonoro: só uma lâmpada que se acendia. Era proibido levantar-se de uma mesa para ir conversar em outra. Ademais, todas as máquinas de escrever eram do tipo silencioso. Assim naquela enorme sala, com tanta; gente trabalhando, não havia barulho. Smith bem ao centro, fiscalizava tudo.
Mas o característico mais curioso dessa enorme peça clara eram as paredes coberta de cartazes. O cliente, indo contratar qualquer gênero de publicidade, podia ver os anúncios ilustrados afixados pela empresa por toda parte, no país inteiro. Todas as semanas Marcio Rafael ou os substituía ou pelo menos os mudava de lugar, mas tinha sempre o cuidado de por o melhor bem defronte da mesa do diretor.
Este, porém, parecia nem o examinar. Prestava atenção ao seu tamanho, para faze o preço aos fregueses da casa, mas não apreciava finuras artísticas. Era inteiramente destituído do sentido da beleza.
A única pessoa com quem ele conversava. Um pouco era precisamente Márcio Rafael Com o resto do pessoal lidava de um modo indiferente. E no entanto nesse pessoal havia várias moças, entre as quais não faltavam rostinhos deliciosos. Um deles impressionara Marcio Rafael: o da pequena Rute Espinosa, de Cendente de espanhóis,
Márcio procurou aproximar-se dela, várias vezes lhe falou, mas hesitava em chegar às declarações íntimas. Não tinha ainda uma situação bem sólida. No entanto, fazia uma coisa bem equivalente a declarações de amor, se a moça prestasse atenção ao caso. Passou a multiplicar as representações de seu rosto por toda parte.
Tinha de anunciar uma pasta para dentes? A figura sorridente de uma moça, a mostrar os seus, brancos e magníficos, era a de Rute. Ele não lhe dizia nada, mas lá a punha, nos cartazes, com um sorriso delicioso. Havia a apregoar as excelências de um remédio para fazer dormir? Lá estava a figura da moça adormecida. E era ela, indiscutivelmente ela.
Queria algum fabricante atrair a atenção para uma nova marca de cigarros? Rute figurava nos mais delicados cartazes, fumando com graça.
Havia uma qualidade de café moído, o Café Bem-te-vi. Os anúncios o declaravam excelente. A figura de formosa moça — e era Rute — lá estava, ainda no leito, tomando uma chávena. Um despertar risonho, prometedor do dia cheio de felicidades. A obra prima do desenhista fora, porém, o anúncio da Lotérica da Felicidade. Era uma figura de corpo inteiro, bem de frente, com as mãos cheias de dinheiro, oferecendo-o. E a fisionomia tinha esses olhos, cujo olhar acompanha quem os fita em todas as direções. Era admirável de vida irradiante de beleza e graça.
Por isso mesmo, Márcio pôs esse cartaz diante da mesa de Smith. Três dias depois esse lhe fez uma confidência. Ele era, nos negócios agressivos, um pouco brutal; mas, tratando-se de sentimentos íntimos, um verdadeiro tímido. Confiou a Rafael — mas confiou por meio palavras, hesitante, como quem temia ver moço zombar dele — estar apaixonado pela pequena Espinosa. A ela mesma já o dera entender. Queria casar-se.
Márcio ficou assombrado. Perguntou-lhe de onde lhe viera aquela ideia. Mas Smith não era homem para análises psicológicas, para introspecções demoradas. Não se estudava intimamente. Um dia, vendo a pequena, cuja mesa ficava muito longe da do diretor, e que rarissimamente vinha falar-lhe, teve uma imprecisão súbita e profunda. Foi um caso fulminante de amor. Resolvera pedir para a Inglaterra uma informação exata sobre todos os seus negócios, para então falar à pequena decisivamente no casamento. Mas este no seu espírito era caso resolvido. O desenhista ficou sucumbido. Smith o venceria na concorrência, era bem claro. Mal apresentasse claramente a sua candidatura à mão da rapariga, Márcio estaria imediatamente (podia até dizer-se: automaticamente) posto à margem. Como, porém, aquele homem grave, destituído de romantismos, lento a decidir-se, se apaixonara tão bruscamente pela moça?
Ao entrar no escritório da firma, no dia imediato, Márcio entendeu tudo. Entendeu, porque, dias antes, por desfastio, ouvira uma conferência literária. O orador dava a explicação dos amores fulminantes, à primeira vista, amores dos quais nasceu aquela fórmula célebre de cartas de namoro: "Vê-la e amá-la foi obra de um momento."
Ocorre nesses casos ser a inspiradora de tão grandes paixões, em geral, muito parecida com a mãe do apaixonável amoroso. Não com a mãe, como ela está no momento do acesso de paixão; mas com a mãe, como era no tempo do nascimento do menino. Ela era então para o pequeno uma fada, uma deusa, a encarnação da Providência. Se o filho tinha fome, tinha sede, sentia uma dor, queria um brinquedo, quem lhe dava tudo isso? A mãe. Satisfazia-lhe todos os desejos, era a fonte de todas as suas alegrias.
Mais tarde, ela mudou, foi envelhecendo e, por sua parte, o menino se fez homem e procurou outros prazeres. Mas no fundo do seu inconsciente ficou a imagem da mulher-anjo, da mulher — providência, da acalmadora de todos os seus males, da suscitadora de todas as suas alegrias. Anos decorrem. Súbito, porém, lhe aparece alguém com esses traços — os antigos traços da mãe, quando ela era tudo isso. Conscientemente, ele já não se recorda dessa semelhança. Mas o inconsciente não se esquece. E, de súbito, ele tem a impressão de achar em uma mulher a evocação de todos os benefícios que a mãe lhe fazia. É um anjo, uma deusa.
Márcio Rafael, olhando a vasta sala cheia de cartazes, todos eles reproduzindo o rosto de Rute, mais ou menos modificado, mas com inegável semelhança, preparara para Smith uma situação psicológica idêntica. Cada um desses cartazes parecia atribuir à moça uma perfeição. No anúncio de uma pasta para dentes, ela ensinava o meio de torná-los alvíssimos. No reclame de um pó de arroz, ela dizia como se podia ficar com uma pele ideal. Dores de dentes e dores de cabeça não são coisas agradáveis. Mas o desenhista fizera o rosto da moça quando já as dores haviam passado: estava radiante de saúde, de alegria. Que coisa horrível uma insônia! Fazia gosto, no entanto, ver o rostinho delicado da moça, dormindo e prometendo aos outros fazê-los dormir um bom sono reparador. Tinha tomado o Sonil. E mesmo no sono como era bela!
Somando-se inconscientemente no espírito de quem assim os estivesse vendo em conjunto, o dia vinha desde o despertar com o Café Bem-te-vi até o adormecer com o Sonil. Era uma bem-aventurança constante, um encanto permanente. Por fim, havia o anúncio da Loteria da Felicidade, precisamente defronte da mesa de Smith. Era Rute no máximo esplendor dos seus encantos: prometia a Felicidade; nada menos: a Felicidade. Bem certamente, Smith jamais analisara esta situação; mas a sugestão crescera dentro dele de um modo insidioso, pertinaz e inconsciente — Rute, Rute, Rute, em todas as perfeições. Um belo dia, quando reparou na mulher em quem se encarnavam todos aqueles dons sublimes — vê-la e amá-la foi obra de um momento. Mas o desenhista, compreendendo de onde havia partido o mal, resolveu dar-lhe o remédio. Tinha precisamente que proclamar os méritos de umas pílulas purgativas.
Desenhou o cartaz. Foi ainda uma vez o rosto de Rute. Mas o rosto se contraía em uma careta feiíssima. Para não fazer caretas tão feias convinha tomar as Pílulas Anticólicas — proclamava o reclame. Quem conhecesse Rute e visse aquele desenho ficava com a ideia de como ela devia transformar-se, quando sofresse uma eólica. Era abominável. Tinha-se a impressão, olhando para a moça depois de ter visto o cartaz, de ver-lhe sobre a cara a máscara da anunciadora das Pílulas Anticólicas. O desenhista substituiu o reclame da Loteria da Felicidade pelo das pílulas purgativas. E começou a fazer todos os seus cartazes tomando esse ponto de vista: caricaturando a pobre Rute. Havia o acordar de uma pessoa biliosa. Como estava horrível! Devia-se tomar o Xarope Antibilioso. Mas enquanto não o tomava, com que expressão feiíssima se achava.
Contra a insônia havia outro remédio: o Dormol. Mas para anunciá-lo Márcio pôs uma Rute insone, cansada, que não se podia ver sem desagrado.
E aí estava um dia de outra espécie, desde o Xarope Antibilioso até o Dormol, com as Pílulas Anticólicas no meio. Como seria pavoroso viver um dia inteiro com uma pessoa assim! O efeito foi decisivo. Smith, saindo uma tarde com Márcio Rafael, deu-lhe duas boas notícias: ia partir em viagem de férias para a Inglaterra e tencionava deixar a ele, Márcio, como seu substituto interino.
— E o casório, Mister Smith?
O inglês fez um gesto de enfado:
— Não há casório nenhum. Não fale nisso. Foi um ameaço de eólica romanesca, mas passou...
A comparação absurda e antipoética traía o motivo inconsciente de onde proviera a resolução. Conversaram sobre outras questões. Márcio Rafael, afastado o concorrente, não teve dificuldade em ganhar a partida. A rapariga estava despeitadíssima com o inglês. Felizmente, ela também não compreendera a perfídia. E voltou a ser nos cartazes a figura predominante, mas cada vez mais bela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...