10/05/2017

A Consulesa (Conto), de Júlio Diniz


A Consulesa

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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De maillot, apenas, arrebicando as faces diante de um espelho, Nina, a bailadeira, tinha um milhão de pensamentos banais no cérebro ardente.

Os traços da sépia e os rebordos do nanquim, já lhe acentuavam a grande vivacidade do olhar, e o pó de arroz atenuava e embelecia as cores róseas do rosto criadas pelo carmim vencedor.

Uma vez por outra, deixava de conformar-se, para atender aos apelos da porta, de onde, sem deixar ninguém penetrar, voltava enfastiada com as iterações de estranhos.

Esperava Otávio: era o aimant du coeur, porque o Cônsul, o velho francês, pelas suas funções representativas, evitava aqueles encontros mais notórios...

— Nina?

— Quem bate? Otávio?

— El, sim!

— Entra, meu rico amor!

— Fiz-me esperar, hein?

— Nem tanto, mas eu tenho a regalia de poder cheirar-te as vestimentas para saber se tiveste o contato do corpo de outra mulher, de vistoriar-lhe o casaco, para descobrir aí os fios perdidos dos cabelos da que me logrou...

— Descansa o teu coração. Vivo inteiramente para ti. E enquanto estou longe do teu olhar, sou como o barro que espera, ardorosamente, a toda a hora, a plasmagem do artista. Por ele, passam e voltam, vão e tornam, todos os profanos: mas ele não é menos monopolizador de sua plasticidade do que uma flor do gnomo que só abra a horas certas...

— Não sabes? O Cônsul pediu-me a noite...

— E deste-lha?

— Nem sei...

— Já me toma os dias inteiros... Entra agora pelas noites... Que horas serão as minhas?

— Todas até. Aturo-o porque tu consentes.

— Exatamente. Mas ele vem a prejudicar-me se continuas a não se satisfazer com o que lhe dás. Às vezes, lá para as tantas do dia, penso em ti. O brasido abre em chamas ao menor sopro. O incêndio alastra. Quero remediar-me e sofrer a carícia dos teus beijos anti-incendiários. Vem logo a certeza de que o Cônsul te frequenta o dia inteiro. Esmoreço. Abomino-me e espero confiante o prazer da noite. Tenho sido certo e insubstituído. De agora por diante, nem mesmo nas noites poderei confiar. Ao amante nunca lhe dês demais. Se te pede uma hora, dá-lhe meia, se te pede um dia, dá-lhe horas, se te pede uma noite, dá-lhe um dia, e reduze sempre as suas pretensões. Ao contrário, todo o tempo será absorvido. E, quanto ao mais, espera-te hoje a ventura. Vais dormir com o Cônsul... Estou libertado...

— Oh! não! Que sucede Otávio?

— Nada. Não estorvo os teus anelos. Leva contigo o Cônsul. Dá-lhe o meu lugar, mas dize-lhe, ao menos, que não me ocultaste a entrada dele no leito que deixo vazio...

— Espera um pouco que te falarei melhor. É só acabar de toucar-me...

— Careces de mim?

— Não me aborrece, Otávio!

— Pensei sempre que valesse mais do que todos os outros teus amantes. Vejo, entretanto, agora, que um existe mais poderoso ainda do que todos nós reunidos...

— Vale apena a descoberta.

— Desmente-me, pois. Não tens um amante que preferes ao Cônsul, um amante diante do qual te esqueces mesmo de mim?

— Dizes-me coisas extraordinárias...

— Contesta a existência desse outro amante onipoderoso, que motiva teres-me deixado no exílio deste divã, na semi-obscuridão de teu camarim...

— Não és amável.

— De mais em mais se confirma o que te digo: nem tens ânimo, por causa dele mesmo, para contestares o que te afirmo de um modo tão categórico... Digo-te centos de coisas e nada te abstrai desse amante único...

— Agora, sim! Dei um último retoque nos meus preparativos de cena... Que te pareço de maillot?

— Não trato disto. Refiro-me ao teu poderoso amante.

— O Cônsul?

— Não sabia que este seja poderoso. Mas não é a ele. Ao outro, diante do qual te esqueces de mim, do Cônsul e de alguns menos e mais cotados do que nós outros...

— Amante?

— Decerto. Negas que não te absorve ele mais do que qualquer de nós?

— Nego.

— Contestas que exista esse amante?

— Juro-te mesmo.

— Vê lá que não me enganas...

— Quem será, Otávio?

— O teu espelho...

— Aceito a graça. Em troca, porém, vais dizer-me o que julgas de meus trajos em maillot?...

— Julgo mal, porque te acho parecida com uma lebre a quem cortaram cerce todos os pelos... Assim muito delambida, muito escorrida, muito masculina...

— Tens espírito.

— E fui franco do modo que tu me pediste. Veste as rendas, sobrepõe as sedas, ou tira o maillot. Se vamos ao mundo, todos os atavios, todos os soutaches, aplicações e manteaux serão poucos; se ficamos aqui, o menor fragmento de tecido mais fino, será demais... Ou o extremo enroupamento, ou a extrema nudez...

— Figuremos duas hipóteses. Se me visses enroupada, com um luxuoso vestido, de muitas rendas, muitas fitas, muito decote, muita joia, e lindo chapéu de plumas, que farias de mim?

— É essa a primeira hipótese?

— Sim!

— Pois bem: levar-te-ia, logo, à tua casa para que, antecipando a hora de tua saída, o Cônsul, nem de longe, pelo meu braço, te visse hoje...

—És digno de um ato destes.

— Bravura do amor. Agora, a segunda hipótese?

— Sim: se me visses nua, tão nua que nem uma écharpe me velasse as pomas, que farias de mim?

— Ah!... Aí está uma pergunta de difícil resposta, uma hipótese de operosa solução...

— Por quê?

— Porque uma nueza dessas exigiria um leito e sem este tu serias apenas uma gravura...

— Venceste-me. Despacharei o Cônsul.

— Não sou eu quem determina. Passarias uma noite igual às de Bhodis na companhia de Chrysis... Por que escancelas tanto os teus deformados olhos? Não calculas, assim, a desproporção do teu semblante, lindo como um camafeu...

— Procurei ouvir o que se faz em cena, a fim de verificar quanto falta para a minha vez...

— Queres, saio a ver...

— Não. Chamarei o contrarregra. Nem precisa: canta a Solidônia...

— A pernóstica!

— Deixa-a, coitada! Ainda tenho todo um intervalo e dois números da outra parte. Agora... dá-me um beijo, paixãozinha!

— Guarda-te para receberes os do Cônsul, senhora Consulesa...

— Otávio, para que sentes ciúmes desse devasso? que te importa que eu lhe tenha prometido uma noite, quando não lha darei por preço nenhum?

— Ciúmes?!... Não os sinto dos outros homens, porque nenhum deles logrará de ti as venturas e as concessões que eu tenho gozado... Nem mesmo do Cônsul... Se um prazer novo junto de ti ele experimentar, deve dizer sempre que antes dele provei-o eu. Tenho ciúmes, Nina, do que tu vestes, do que te pinta, do que te adorna, do que mordes, do que fitas... Se eu pudesse, haveria de ser o tecido com que se fazem os teus vestidos. Invejo deles a sorte de cingirem-te o corpo e serem confidentes dos teus nervos e das tuas pulsações. Tenho ciúmes das flores que exornam os teus cabelos, porque somente elas passam o delíquio de uma vida inteira, enlanguescidas do teu amor. Tenho ciúmes do fruto que mordes, diante da grande fortuna de ser apertado entre os teus dentes luxuriosos. Inquieto-me com a sorte do perfume que te inebria, porque somente ele atravessa as tuas formas e vai arrebatar-te na essência do teu ser. Tenho inveja da palavra que proferes, porque somente ela vive fecundada da umidade quente dos teus lábios. Por tudo isto, eu quereria ser o sono que te fecha as pálpebras, porque participaria das felicidades todas dos teus sonhos; a água que te banha as formas, porque desvendaria os imensos segredos e mistérios de tua beleza única, e o riso que te doura o semblante, porque teria o domínio do mundo inteiro. Recordas-te, Nina, do instante mágico em que pela primeira vez nos pertencemos mutuamente? São deveras muito irmãs as almas que tocam à meta de uma ventura no mesmo instante... e as nossas duas...

— De lembrar isto, criei uma lenda. Sou eu a mulher que conseguiu o poder de duas virgindades, uma sacrificada no início da puberdade, com a inclemência de Nausithêa diante do deus Priapo, e a outra, concedida ao amante, no fervor do gozo, entre os teus braços, naquela noite, Otávio, naquela primeira noite...

— Desgraçadamente, já eu, então, poderia ter sentido por toda a parte de teu corpo, o hálito bafiento do outro amante.

— O outro amante?!... Tenho-o, e é como se ele não existisse. Tenho-o porque tu consentes que eu o tenha. E mais nada. Contra o seu amor, protestam os meus seios, bem diversos na tua presença do que são na dele. Diante de ti, as minhas pomas parecem florescer como os jasmineiros em deliciosas noites de luar, como as laranjeiras em uberosos tempos de outono. Diante dele... nem perdem na secura e esterilidade os pinheiros agrestes que vegetam nas fendas dos rochedos... És a águia que se avizinha do sol e beija os astros nos lábios. Ele é o verme que rasteja sobre o rochedo onde borda todos os seus desejos...

— Mas, para ele houve um dia venturoso: a mulher não se cede a um homem sem a experiência de um prazer. E tu tiveste esse prazer...

— Acertaste. Não sabes, porém, que os olhos da mulher voluvelmente procuram por toda a parte o homem e que só ao depois de muitos descobre o procurado? Quando topei contigo, já o tinha no convívio de suas esquisitices.

— Tu és formosa, Nina, como a flor de mirto! Os gregos te diriam divinamente pressagiada porque nasceste nas vésperas das Afrodisias! Quero enlanguescer ao som de tua voz contando-me os teus mais baixos amores...

— Bem sei que os homens todos são uns animais. Uns, porém, são menos do que outros. Daí esses amores que tu queres ouvir. Sabes, Otávio, que os cães, nesse mister, são os equivalentes de certos homens? E que eles são os seres que mais baixos amores fruem? O Cônsul ama como um cão... Os seus lábios, como os de Pan, seriam capazes de devorar as virgindades, se as virgens recebessem os seus beijos...

— Quero crer.

— É um libertino.

— Nada mais?

— É um estrangeiro...

— Que importa?

— É um devasso...

— E somente isto?

— Ama como um cão, Otávio.

— E que é que faz?

— Seria preciso descrever-te todas as astúcias que emprega para me arrastar à concessão do prazer que só vige nos seus lábios? Não te bastará a expressão do pouco que te digo?

— Repugnante!...

— Ah! deixa-o, deixa-o! O meu amante és tu!... Toda esta noite serei tua como nas demais...

Os rasgados olhos da ervoeira, luzentes nas sombras dos seus cabelos de ouro como espigas de trigo maduro, pareceram a fonte de todas as volúpias da terra, como os cornos de Almateia foram de todas as riquezas do mundo...

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