10/15/2017

A piedosa Teresa (Conto), de Alcântara Machado


A piedosa Teresa: Dona Teresa Ferreira
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Atmosfera de cauda de procissão. Bodum.
Os homens formam duas filas diante do altar de São Gonçalo. São Gonçalo está enfaixado como um recém-nascido. Azul e branco. Entre palmas-de-são-josé. Estrelas prateadas no céu de papel de seda.
Os violeiros puxando a reza e encabeçando as filas fazem reverências. Viram-se para os outros. E os outros dançam com eles. Bate-pé no chão de terra socada. Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Param de repente.
Para bater palmas. Pla-pla-pla-plá! Pla-plá Plá! Pla-pla-pla-plá! Pla-plá! Param de repente.
Para os violeiros cantarem, viola no queixo:
É este o primero velso
Qu'eu canto pra São Gonçalo
Senta aí mesmo no chão, Benedito. Tu não é mió que os outro, diabo!
É este o primero velso
Qu'eu canto pra São Gonçalo
E o coro começa grosso, grosso. Rola subindo. Desce fino, fino. Mistura-se. Prolonga-se. Ôooôh! Aaaah! ôaaôh! Ôaiiiih! Um guincho!
O violeiro de olhos apertados cumprimenta o companheiro. E marcha seguido pela fila. Dá uma volta. Reverências para a direita. Reverências para a esquerda. Ninguém pisca. Volta para seu lugar.
— Entra, Seu Casimiro!
O japonês Kashamira entra com a mulher e o filhinho brasileiros de roupa de brim. Inclina-se diante de São Gonçalo. Acocora-se.
O acompanhamento das violas feito de três compassos não cansa. Nos cantos sombreados os assistentes têm rosário nas mãos. No centro da sala de cinco por quatro a lâmpada de azeite dança também.
Minha boca está cantando
Meu coração lhe adorando
Cabeças mulatas espiam nas janelas. A porta é um monte de gente. Dona Teresa, desdentada, recebe os convidados.
— Não vê que meu defunto Seu Vieira tá enterrado já há dois ano... Faiz mesmo dois ano agora no Natar.
Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan!
— A arma dele tá penando aí por esse mundo de Deus sem podê entrá no céu.
Pla-pla-pla-plá! Pla-plá!
— Eu antão quis fazê esta oração pra São Gonçalo deixá ele entrá.
Vou mandá fazê um barquinho
Da raiz do alecrim
O menino de oito anos aumenta a fila da direita. A folhinha da parede é uma paisagem de neve. Mas tem um sol. E o guerreiro com uma bandeirinha auriverde no peito espeta o sol com a espada. EMPÓRIO TUIUTI.
Pra embarcá meu São Gonçalo
Do promá pro seu jardim
Desafinação sublime do coro. Os rezadores sacodem o corpo. Trocam de posição. Enfrentam-se. Dois a dois avançam, cumprimento aqui, cumprimento ali, tocam-se ombro contra ombro, voltam para os seus lugares. O negro de pala é o melhor dançarino da quadrilha religiosa.
São Gonçalo é um bom santo
Por livrá seu pai da forca
Só a casinha de barro alumiando a escuridão.
— Não vê que o Crispim também pegou uma doença danada. Não havia jeito de sará. O coitado quis até se enforcá num pé de bananeira!
Dona Teresa é viúva. Viúva de um português. Mas nem oito dias passados Dona Teresa se ajuntou com o Crispim. A filhinha dela ri enleada e é namorada de um polaco. Na Fazenda Santa Maria está sozinha pela sua boniteza. Dona Teresa cuida da alma do morto e do corpo do vivo. No carnaval deste ano organizou um cordão. Cordão dos Filhos da Cruz. Dona Teresa é pecadora mas tem sua religião. Todos gostam dela em toda a extensão da Estrada da Cachoeira. Dona Teresa é jeitosa, consegue tudo e ainda por cima é pagodeira.
Artá de São Gouçalo
Artá de nossa oração
Nóis antão fizemo uma promessa que se Crispim sarasse nóis fazia esta festinha.
Foi promessa que sarando
Será seu precuradô
As violas têm um som, um som só. É proibido fumar dentro da sala. Chega gente.
São Gonçalo tava longe
De longe já tá bem perto
Um a um curvam-se diante do altar. O violeiro de olhos apertados está de sobretudo. Negros de pé no chão.
Nóis tamo memo emprestado neste mundo.
Cantando cruzam a salinha quente.
Amor castiga a gente. Olhe a Rosa que não quis casar com o sobrinho do poceiro. Não houve conselho de mãe, não houve ameaça de pai nem nada.
Fincou o pé. E fugiu com o italiano casado carregado de filhos. Um até de mama. Não tinham parada. Agora, agora está aí judiada com o ventre redondo. São Gonçalo tenha dó da coitada.
Abençoada seja a união
Que enfeitô este oratório
O preto de pala dá um tropicão engraçado. E a mulher de azul-celeste dá uma risada sem respeito. O bico do peito escapuliu da boca do filho.
Da dança de São Gonçalo
Ninguém deve caçoá
Ôooôh Aaaah! ôaiiiih!
São Gonçalo é vingativo
Ele pode castigá
Silêncio na assistência descalça. As bandeirinhas de todas as cores riscam um x em cima dos dançarinos. Atrás da casa tem cachaça do Corisco.
— Depois é a veiz das môça. Quem quisé pode pegá o santo e dançá com ele encostado no lugá doente.
Onde chega os pecadô
Ajoeai pedi perdão
O estouro dos foguetes ronca no vale fundo. Anda um ventinho frio cercando a casa.
São Gonçalo tá sentado
Com sua fita na cintura
O caboclo louro puxa a faca e esgaravata o dedão do pé.
— São seis reza de hora e meia cada mais ou meno. Pro santo ficá satisfeito.
Lá no céu será enfeitado
Pla mão de Nossa Sinhora
Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pla-pla-pla-plá! Plaplá! Plá! Pla-pla-pla-plá!
Oratório tão bonito
Cuma luz a alumiá
De cima do montão de lenha a gente vê São Paulo deitada lá embaixo com os olhos de gato espiando a Serra da Cantareira. Nosso céu tem mais estrelas.
São Gonçalo foi em Roma
Visitá Nosso Sinhô
Dona Teresa parece uma pata.
— Só acaba aminhã, sim sinhô! Vai até o meio-dia, sim sinhô! E acaba tudo ajoeiado, sim sinhô!
Ôooôh! Aaaah! ôaaôh! ôaôaiiiih! Primeiro é órgão. Cantochão. Depois carro de boi. No finzinho então.
Sinhora de Deus convelso
Padre Filho Espírito Santo
Quem guincha é mesmo o caipira de bigodes exagerados.

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