10/23/2017

A Província (Conto), de Fialho de Almeida


A Província
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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À meia noite, depois de ter abraçado os amigos no Martinho, com uma ternura de adeuses que o caráter blasé de quase todos tornara, valha a verdade, intempestiva, Jorge Miguel tomou vagarosamente o caminho habitual da sua casa, cismando em que era esse o seu último “fora de horas” de Lisboa. Morava ao Monte havia nove anos, no píncaro do outeiro mesmo, sobranceiro à cidade, ao pé da ermida — numa casinhola de pobres cujo primeiro andar o novo senhorio repartira entre ele e um empregadorio velho do Museu.
Ali, com os seus livros, sem criado, varrendo a casa ele mesmo, com pares de calças por cima de todas as cadeiras e cartapácios num tumulto de rumas pelo chão, Jorge Miguel fazia uma vida concentrada de alquimista, silenciosa, de porta fechada às visitas e cerebralidade muda às expansões.
A cidade, que o conhecia num fumo de lenda um pouco feita através das suas blagues, afizera-se a lhe consentir em público um eu à parte, explicando por maluquice a concentração solitária dos seus giros, e mesmo por bebedeira as apoplexias de humor que a certas horas convertiam a sua apatia triste em improvisação epiléptica, arqui-estouvada.
Àquela hora a cidade apaziguava os seus tumultos, caía do gás um langoroso bruxuleio; os transeuntes, menos; e todo aquele sossego entrava na solidão mental do pobre moço, escruciando-lhe a vida de um nunca mais à vida de solteiro. Porque Jorge Miguel, farto de viver sozinho, ia casar.
A história desse amor era uma destas coisas ocasionais, despertadas na vida entre duas cogitações mais amargosas, arrastadas longos anos entre preguiças de afeto e desfalências de vontade, relegadas sucessivamente para os longes do futuro, e que um dia afinal se impõem como a solução pelo absurdo de um problema econômico impossível de resolver de outra maneira. A vida literária, única paixão absorvente que se lhe tinha conhecido, chegada ao cume, colocara-o na alternativa de, ou ter de rebentar de martírio num meio hostil a toda a ideia de arte independente, ou de por ponto brusco numa produção que mesmo apesar de fulgurante e vigorosa só conseguia produzir no público uma surda irritação minaz contra o escritor. Entre a miséria odiada e a expectativa de uma madorna pletórica num canto de província, Jorge Miguel acabara alfim por se vencer; e desta vez, arrasado, dera no orgulho o golpe mestre, fazendo as malas para esse desterro onde a bestificação do matrimônio lhe açaimaria os últimos piafões de arcanjo revoltado.
Quando chegou a casa estavam quatro malas fechadas na antecâmara, um couvre-pieds acorreado com guarda-chuvas e bengalas, dois móveis envoltos em lona que os galegos não tinham podido levar na última padiola, para a gare — e os aposentos sem trastes, o relógio parado no muro, o vento ronronando nas árvores do adro, tudo aquilo lhe pareceu como o responso da sua mocidade já fria e decomposta. A um canto da pequenina sala de trabalho, um monte de papéis, tombo da sua boemia, aguardava o auto-de-fé liquidador. Jorge Miguel despiu o casaco, trouxe um alguidar da cozinha, e chegando para o pé da papelada uma das malas, começou à luz da vela o inventário desse arquivo de quinze anos rebolados por todas as maluqueiras da vida sensacional e literária. Eram primeiro bilhetes de visita e bilhetes postais agradecendo livros, pedindo entrevistas, artigos, palavras de favor — menus de jantar, convites de exposições e de concertos, ramitos secos, retratos insepultos, cartéis com monogramas, dizendo, em língua inverossímil, adorações literárias com ressaibos a estranhos sentimentos — e Jorge Miguel passeava os olhos devagar naquelas coisas, evocava um momento as épocas e as respostas, e freneticamente, para asfixiar a saudade, chegava os papéis à vela, e ia-os atirando incendiados para a concavidade do alguidar. Cartas de Paris, cartas de Roma, da America, de Coimbra, todos os cantos do mundo e da província, homenagens fervorosas, anonimias de ódios truculentos, discipulados tímidos, identificações a distância num ideal sonhado, em pontos antipodais de educação e temperamento, consultas de misteriosas literárias, de celibatárias impacientes pedindo conselho para casos de psicologia individual cheios de acirrante... e desatavam-se os maços das fitas já ardidas da poeira das gavetas, as velhas folhas rolavam, talhes de letra e prosa sucediam-se, e sempre a impassível vela, com a alma da luz azul, muito direita, consumia implacavelmente essas quiméricas memórias onde tantos corações tinham batido dele ao mesmo tempo. Quando o pobre alguidar foi cheio de restos, e da mocidade de Jorge Miguel nada restava a mais do que algumas lágrimas a ferver-lhe na pele do rosto, uma vacuidade estranha entrou-lhe n'alma, sendo então que o relógio parado e o silêncio da casa pareceram marcar um fim de mundo.
Abriu a janela um pouco sobre a noite, e com o alguidar ainda quente despejou à rua a sarabanda das cinzas agregadas ainda em folhas inteiriças, que o vento espiralou no ar em borboletas tenebrosas; e as que tinham vindo de longe, tomaram por caminhos rápidos, ao largo; e algumas hesitavam, sem se lembrarem já da morada de seus donos; entraram-lhe pela janela outras, eram as órfãs, como a pedir ao escritor que as adotasse; e algumas finalmente, como suicidas inertes, baquearam no chão pulverisadas, e o vento de alba as varreu pouco a pouco aos quatro cantos do destino.

Acendeu um cigarro, o sono fora-se, e como aquelas cinzas fatídicas, a atenção pulverisava-se-lhe, incapaz de refletir sobre o problema terrível que era esse internato de vagabundo ilustre na aldeia, em agricultor, ao lado de uma mulher com quem mal entretivera falarios triviais alguma vez.
Estavam a dar quatro horas da manhã, e silenciosas névoas vindas do mar cobriam lentamente o céu de pálidos vapores, toldando a lua poente, e alongando-se para o interior da terra em farrapanas oblíquas, que incineravam fantasticamente os bairros afastados. Àquela hora Lisboa oferecia, das alturas do Monte, quase sem luzes, uma desolação madornal de cemitério, planificada na bruma, rebatida toda em lavouras de sulcos que eram bairros dobrados sobre si.
As cinzas dos papéis, minutos antes queimados, de certo àquela hora se estariam espalhando pelo inextricável de todos aqueles bairros inquietantes, procurando, numa aflição, os signatários das cartas e bilhetes neles escritos para lhes fazerem queixa da deserção de Jorge Miguel. Ei-las no ar, tiritando, as pobres borboletas, a orientarem-se no dédalo das casas pelos milhões de fios do telegrafo, de que o vento as pulverize antes de chegarem, com palavras legíveis ainda, ao seu destino. Ei-las a adejar de angústia nas vidraças, entrando nas casas pelo respiradouro das chaminés, indo às alcovas, pousando nos travesseiros, indo aos cemitérios, pousando nos jazigos, e nuns e em outros interrompendo os sonos e as doces mortes.
— Não sabem? Jorge Miguel apostasia de cavaleiro templário do paradoxo, de arcebispo da leria, de arcabuzeiro da rotina a balas de loucura...
E o alarme acordado apenas na mágoa dele, afigurava-se-lhe entenebrecer de luto a terra inteira, parecendo-lhe que de cada bairro, cada café, cada cartaz, cada esquina de rua, cada casa, mentes dispersas, adorações indefinidas, afetividades anônimas nascidas do deslumbramento da sua arte extravagante, se erguiam da cama no estado inconsciente de fantasmas, tomavam pelo caminho dos papéis queimados vindo de roda, pelo ar, a lhe fazer um coro de implorações. Lentamente, como amanhecia, por todo aquele vasto mapa encinzeirado, luzes de gás vinham-se apagando em linhas divergentes, como se esse extinguir gradual de estrelinhas sonâmbulas fosse a sua glória de escritor morrendo nos esquecimentos da aldeia, quando outro espírito subisse, mais vivamente moderno, a alumiar a ingratidão das gerações.
Encostou-se um bocado, mas não podia dormir, os rumores matinais sobressaltavam-no; dir-se-ia que toda a cidade se levantara mais cedo para trepar à montanha e lhe invadir a casa de vozidos. Entrementes, o dia clareava, e quando foram horas de partir, Jorge Miguel, chegando pela última vez à varanda, casualmente viu no parapeito um bocado de papel carbonizado, onde subsistiam legíveis duas rápidas linhas de escritura. Leu o seguinte: “de resto, meu caro, para ser célebre é necessário viver longe, e não ter tido nunca amigos íntimos”.
Foi sob esta impressão martirizante que ele deixou de vez a capital. 
O rebentar na província foi terrível; receberam-no à chegada da diligência com uma música de pretos, que era a estreia da filarmônica: quatro carpinteiros a trombonear canudos de latão, um barrigudo a zurzir os pratos como fulo, e o do zabumba, macanjo, dando com a maçaneta nos garotos. Como os músicos não soubessem senão a marcha da Ione, ensaiada à pressa para as procissões da Semana Santa, com esse batuque fúnebre seguiram, em passo de enterro, pela rua da grande vila, no meio dos raios te partam do cocheiro que despregava as pilecas na subida, e de um certo riso de um padre, de lhe fazer calafrios pela medula.
Em breves dias fez-se o casamento, para o qual Jorge Miguel, foi sem curiosidade, decidido a resolver o problema do seu destino por um critério de vontade estoica contra o qual piafavam todas as suas selvajarias de indomável vagabundo. Sua mulher não lhe inspirou a princípio mais que uma espécie de pretensiosa piedade: franzininha, um pouco loura, com as orelhas pequenas, a boca pura na esquadria de um queixo quase viril de voluntaria, e toda a graça de viver na infantilidade dos olhos melancólicos. Não era pela beleza de certo que essa imponderável bonequinha viria a exercer no espírito do esposo qualquer coisa semelhante à sedução.
Senão quando, atenuadas um pouco pelo aconchego de uma casita Provincial as saudades literárias de Lisboa, subitamente, uma manhã, Jorge Miguel começou a sentir orgulhos vagos de ver labutar por ele a companheira.
Reparou que os seus cabelos eram finos, a testa pensativa, e que as suas breves palavras ressabiam a qualquer coisa de penetrante, como se derivassem de uma vontade séria de enfermeira. Os seus vestidos escuros, mal roçando nos móveis, como levados num voo de borboleta, as suas lentas mãos guiadas à descoberta de fazerem o lar confortável sem parecerem tocar nos objetos, uma percepção sagaz de concentrarem cuidados no gabinete dos livros, na ordem dos papéis, na tamisação da luz, nas flores da secretária, tudo isto que dir-se-ia casual, por vezes como que se lhe afigurava nascido de uma ardilosa malícia de o prenderem pelo reconhecimento a essa vida a dois que em princípio tamanhos sustos lhe trouxera. Esta fascinação que derivara primeiro do egoísmo envaidecido de sentir em torno a vida sem atritos, com as comidas a horas e bem feitas, a casinha tépida, macios os fauteuils, a atmosfera perfumada e a pletora de bem-estar constante de riqueza, defendida às linguarices dos estranhos, pouco a pouco começou a lhe subir do estômago à inteligência, e a figurita dela, severa, apagando-se na meia luz de um recato freirático, pálida e diáfana como uma sombra do paraíso, passava às horas calmas de estudo pela cabeça dele com uma ponta de desejo que lhe tornaria a núpcia fecunda, se não fora a fatalidade dos homens de gênio não poderem propagar-se sem degenerações na descendência. Começou a pressentir então a companheira por toda a parte, nas suas ideias e nas suas leituras, no leito, a seu lado, com os olhos fechados e acordada a espreitar se ele dormia, nos seus passeios longínquos pelo campo, nos bicos da sua pena, nos cálculos dos seus negócios, a um tempo causa e fim, fantasia e realidade, e com tal poder de avassalação e absorção que o pobre boêmio acabou um dia por confessar a si próprio essa incondicional escravatura, deliciado, abjurando as antigas brutalidades de publicista solitário, a arte máscula da análise violentando as psicologias verde-podres do moderno, os excessivos de língua, as irreverências sardônicas da boutade,— todas as qualidades cruéis que haviam feito dele em solteiro o bacteriologista máximo das degenerações sociais do seu país.
Longe de parecer reparar neste rebaixamento de plano psíquico do esposo, ela como que só pensava em lhe encadear as atenções no sentido dos antigos trabalhos literários, afastando-o das convivências maçadoras da aldeia, pondo ao alcance da sua mão livros de estudo, interessando-se pelo seu passado jornalístico sem ciúmes e até repassando ela mesma, através dos seus conselhos, os assuntos que mais pudessem orientá-lo na diretriz do seu antigo frondismo de escritor. Em alguns meses o predomínio foi tal que o espírito dela transfilhara-se inteiramente ao corpo dele.
Uma noite de novembro, já depois das colheitas da uva e da azeitona, aconteceu que examinando os dois detidamente as contas da lavoura, ela de repente observasse que era tempo de saírem da modéstia financeira em que viviam.
Como a situação de fortuna do casal nunca fora nem melhor nem pior do que ora estava, aquilo surpreendeu Jorge Miguel, como se nas palavras da esposa houvesse reprimenda à sua inércia.
Ela, sem se perturbar, tomou ao acaso um papel da secretária, agarrou numa pena, e ao cabo de alguns pequenos cálculos feitos numa caligrafia tortuosa, começou a dizer, com a sua voz de pausas doces, que as vinhas estavam velhas, o filoxera à porta, os terrenos estanques da produção sem adubo, o vinho sem mercado, da qualidade horrível do fabrico; e quanto às terras de cereal, parte não dava, por desleixo do preparo, o que devia, e a outra parte em pousio, coberta de abrolhos e de estevas, apenas nos começos do outono era pascigo para as cabras dos pastores furtivos da vizinhança. O remédio era uma remodelação completa do regime agrícola, em quatro anos: nas terras de pousio lançar plantações americanas, reengorgitar os almargios da ceara com os elementos químicos necessários à cultura intensiva, ampliar a extensão aravel das terras, plantar arvoredo, regenerando ao mesmo tempo a indústria da vinha, cujo grosseiro preparo estava ainda na fermentação do mosto em barros pesgados, e seu esforço alcoólico com aguardentes de balsa ao esturro e à porcaria do alambique.
Demandava a nova empresa capitais de alguma forma custosos para a relativa modéstia dos seus teres; mas poderiam começar aos poucochinhos, e para isso as economias de três anos de vida Provincial talvez bastassem, e a atividade e a vigilância dele fariam o resto. Ficou decidido que encetariam os trabalhos logo esse ano, e que os hábitos indolentes de Jorge Miguel cessariam, por a vida de lavrador exigir assiduidades constantes na faina, e uma vigilância quanto possível metódica e regulada.
— Resta ver agora, objetara-lhe a esposa sorrindo, se cumprirá escrupulosamente o que prometes. Esta vida contemplativa estava-te a inutilizar todos os dias, e chamado à ação não terás tempo de te aborrecer a pensar futilidades. De mais o caminho é extenso, e estou a ver que quando te habituares a fazer com a terra, dinheiro, serás naturalmente conduzido a também aproveitar como bens de fortuna essa notoriedade de escritor de que não tens querido tirar senão vaidades espirituais, efêmeras e... irritantes.
— Tu não me aconselhas de certo que eu entre a escrever sobre a política do distrito...
— Em que estaria o mal? Não há assuntos chalros. Um talento nobre transfigura todas as coisas porque passa. Ouço-te flagelar a estupidez e a má fé dos que açambarcam despoticamente, e para fins desonestos, a política da nossa região; porque te não decidirás, pois, a intervir nela com os recursos superiores que Deus te deu, e os teus estudos têm desenvolvido? Maldizer é fácil. Quem se não mostra, esquece, e eis-te chegado à idade de reapareceres homem de ação.
— Tens-me então estado a sonhar governador civil ou deputado...
— Não pelo desforço platônico de assumires sob essa forma a autoridade, mas principalmente porque estaria nisso o começo de uma fortuna decisiva.
— Em dinheiro talvez?
— Que afinal é tudo neste mundo. Se Jesus Cristo voltasse a fazer na terra os doze apóstolos, precisaria de pelo menos ter doze milhões. Olha à roda de ti o que se passa. Não há medíocre que te não tenha suplantado; tu desesperas-te, fingindo desprezá-los, mas no fundo da tua consciência o sentimento dominante é o ciúme porque esses que tu declaras cerebralmente inferiores desenvolveram na vida qualidades de luta que te faltam.
— Supões então que eu não segui o caminho deles por impotência...
— A que chamavas altivez, e afinal não foi mais que cobardia.
— Entristeces-me com esse juízo estreito que me fazes.
— Mas prova-me o contrário. Era tão fácil! há na cidade um jornal sem redator; oferecem-to e tu não respondes; ora se desenvolvesses num sentido sagaz as tuas qualidades de foliculário, em pouco tempo esse jornal seria a tua arma envenenada, e verias realizadas todas as tuas antigas ambições.
— Mas se eu não tenho nenhumas, minha filha!
— Ambições precisas não tens, porque a multidão assusta-te, mas quererás tu persuadir-me de que a tua obra crítica de solteiro apenas fosse uma galopada de humorista? É ler os teus panfletos. Se se trata de literatura, achas a obra dos outros má, e tens o cuidado de fixar um sonho de obra que não é mais do que a tua, idealizada. Se se trata de costumes, flagelas os vícios de que não gostas, e calas-te ou defendes aqueles para que tens uma certa vocação. Em política achas todos os ministros imbecis, dizes que as nomeações não visam nunca indivíduos de valor, e que os dinheiros do país andam a rodo pelos rega-bofes dos seus administradores. Dir-me-ás o que é tudo isto senão um processo ingênuo de, desbastando nos outros, ficares sendo primeiro e único de pé?
— Mas afinal tu és uma criatura incongruente. Essa obra desenvolta de mocidade nunca te inspirou senão o enfado de uma coisa grosseira, mau grado os teus disfarces, e tanto fizeste que acabei por me envergonhar de a ter escrito. Passam seis anos, está mumifeita, esquecida, e és tu mesma que ma vens galvanizar agora numa fase de empregomania que eu detesto!
— O caso é simples. Todo o homem que esgrime sem alvo, é caricato ou doido. Os teus próprios discípulos perguntavam: mas que quer ele? porque ninguém compreende que se gaste energia sem proveito. Dez anos dessa campanha aspérrima, numa água-furtada, sem roupa nem confortos, coberto de calúnias e de dívidas, desprezado, odiado, o que te deram? A glória de seres conhecido entre os estudantes como um canalha sarcástico, e quarenta adeptos que apenas servidos desertaram de ti como da peste.
A lógica destas combinações chocava fundo os quarenta anos já frios do antigo panfletário, que hesitava, no entanto obcecado da tradição dos gênios famintos. Imbuído das doutrinas utilitárias da esposa, via efetivamente o dinheiro como uma causa geral de toda a culminência, e as suas antigas ambições gozosas de grande homem despertando da indefinida madorna em que o estagnara a vida Provincial. Via-se reaparecer de novo em plena vida, com outros ideais mais largos e mais firmes, senhor da sua razão e da sua força, já sem os platonismos de artista e as nebulosas filosofias de panfletário demolidor joeirado das antigas relações comprometedoras de café, homem de ação, batido no desprezo, monossilábico, hipócrita, insolente, fazendo a sua entrada sem ruído, sondando os tipos, avaliando a frio os consagrados, e numa reviravolta leonina, de repente, apoderando-se dos cimos, e fazendo-se sagrar chefe de clan. Tudo estaria em fazer do seu talento o molosso incorruptível de uma ideia fixa. Essa marmorização de vontade, porém, onde formá-la, com o seu caráter feminino e dominável, acobardando-se diante dos obstáculos, e que a primeira mão resoluta guiaria a sabor dos seus caprichos? Então, lançando a vista de roda, apercebeu como sempre os olhos claros da mulher, interrogando-o com uma tristeza escarninha sobre a sua falta de coragem. A pretexto de inspeção às escolas primárias, o governador civil percorria nesse momento o distrito, a sondar o espírito das terras sobre o êxito das próximas eleições. Era um antigo companheiro de Jorge Miguel, súcio pomposo, que começara por gazetilhas obscena no Pimpão, subindo daí a amanuense da Junta, e redator político da Nova, jornal do presidente do conselho, que o despachou depois aos bejenses com subscritos de funcionário de confiança.
Jorge Miguel inspirara-lhe sempre mesmo nos dias de convivência literária no Martinho, uma espécie de rancor desconfiado, com orlas de desprezo, e pode-se imaginar a surpresa do conselheiro, quando, avistados na aldeia os dois boêmios, Jorge Miguel lhe comunicou as suas tenções de comprar o jornal e entrar de vez na política militante. Sentindo-se de cima o governador civil prometeu com uma sublime benevolência, apoiar-lhe as pretensões, combinando-se depois de três dias de hospedagem e de jantares pantagruélicos, que adquirida a gazeta, com tipografia e pessoal conveniente, Jorge Miguel fosse a Lisboa munido de cartas prestar ao ministério vassalagem, e receber dos magnates do partido a sua iniciativa de cavaleiro. Quinze dias depois ia na casa do nosso pacífico contemplador uma barafunda dos demônios.
Pelo caminho de ferro chegaram de Lisboa umas poucas de charruas, caixotes de adubos e sementes, milheiros e milheiros de bacelos americanos. A adega foi quase toda guarnecida de tonéis; lagariças novas no pátio, com toda a sorte de máquinas modernas. Os pousios das herdades eram começados a revolver a talho fundo, para o que foi necessário alugar juntas de bois a todo o preço; de fora viera um regente agrícola, de monóculo, que se levantava ao meio dia, e achava mau passadio um jantar de cinco pratos; e finalmente, negociado por quinhentos mil reis, tipografia e tudo, o jornal aparecera depois onerado por uma hipoteca de dois contos, e com o tipo delido, os prelos num cangalho, tendo Jorge Miguel de despender, por conselho do governador civil, proprietário secreto da folha, mais de novecentos mil réis para aquisição de material. Na aldeia, quando estas coisas correram, foi o alvoroço que se tem por um individuo que emaluquece, de rodilhão, e todos punham as mãos na cabeça, antegozando com lástimas hipócritas a hora opípara em que rebentaria a casa do “escritor”. A audácia desta renovação agrícola pelos risíveis processos científicos, que nenhum rico ousara, e de que ria o povinho como uma brincadeira de crianças, além de não parecer condizente à remediada fortuna do literato, tão pouco pelo estapafúrdio do regente agrícola, e resultado incerto das colheitas parecia estribar-se lá muito na econômica prudência que deve sempre guiar um lavrador. Viticultura americana? dinheiro perdido, bufavam todos. O filoxera imobilizando-se no Douro perdera a força para chegar aos vales do Tejo. Reengorgitação das terras pelo adubo? mas onde ia isso parar de dispendioso, e para que necessário? se a vinha nunca se estrumara no Alentejo, e quanto ao cereal, a bosta dos animais abundou sempre, para fazer de alqueires, moios.
A reaparição do Clamor de Beja, jornal independente, um tipo novo, e uma factura literária elegantíssima, foi verdadeiramente um caso nos anais da sornice alentejana, e claro se viu o influxo que essa incisiva folha fumegante de vida e tocando os assuntos locais com lúcida ironia, certo viria a ter na política do sul da grande província.
Jorge Miguel recebia em casa os jornais da redação, preparava o seu artigo, fazia o noticiário e a correspondência de Lisboa, e o resto era arranjado em Beja por um alferes do 17, seu antigo comensal numa república de estudantes. Em pouco tempo o sucesso atingiu pela província as proporções de uma vitória; choviam as assinaturas, os anúncios pagos sucediam-se, e em todas as questões locais e partidárias começou o jornal a fazer autoridade, o que o lembrou em Lisboa, levando as atenções dos malignos para a espécie de furor com que Jorge Miguel, jacobino medonho, ainda na véspera, defendia os atos do governo. Eleições à porta: era o momento de ir a Lisboa, jurar fidelidade ao gabinete. Atochado de missivas bejenses para os magnates graúdos do partido, saiu Jorge Miguel de casa uma manhã, com o seu chapéu alto e o seu baú de roupa, disposto a levar de vencida as agruras da jornada graças a certa galinha de recheio, mais meio presunto que a mulher lhe embrulhou, para farnel, na folha de um dos seus antigos panfletos anarquistas. A viagem foi cabeceada de sono numa segunda classe onde voltavam de férias três alarves de três seminaristas, e só no Barreiro, quando a cidade começou a surgir vaporizada nos azuis violetas do horizonte, é que Jorge Miguel sentiu tomá-lo uma infinita e estranha nostalgia. Indo no barco atirou ao rio os restos do presunto, para evitar o cheravisco aduaneiro, e com o galego do baú veio a dar fundo nas Duas Nações, ante uma canja que tinha todo o ar de um soluto de caspa em água de lavagens. Sopeteou como pôde as vitelas flácidas com cenouras, um roast-beef de folha, e vários outros acepipes córneos daquela conceituada casa alimentícia, e barbeado, de sobrecasaca fina, cheirando a água de Colônia, ei-lo baixa do hotel à coca de tipoia que o solavanque a São Vicente. Chegado à rua, os luzeiros da Baixa estontearam-no: via, extasiado, uma multidão febril, pelos passeios, os carros cheios de gente, e o indefinido rumor repercutindo-se a distância, entre pregões de jornais e silvos de comboios. Mentalmente, com esforços de memória dolorosos, desemburrando-se da bisonheria de seis anos de vida marital, tomava outra vez posse da cidade, buscando familiarizar-se no dédalo das ruas, achar no asfalto outra vez o seu rail de flaneur noturno; e mulheres que surgiam de chapa nos revérberos das lojas pintadas de branco, olhando os homens de lado, como as gansas, tinham para ele o ar de aparições; nos americanos pareceu-lhe tudo duques e duquesas, um deslumbramento as lojas, os caixeiros uns personagens ideais; e a sua emoção subia num galopar de antigas reminiscências, à mercê das surpresas esgarçadas por qualquer coisa, na volta de uma esquina, ante o estilo de um prédio novo, um novo monumento — emoção de provinciano fora da moda, cego do gás, picado de ciúmes, desesperado de já ninguém o conhecer, e que ao apear-se em Santa Clara, à porta do “nosso glorioso chefe” levava já três ridículos de aldeia a chateá-lo: a fadiga dos calos, o remorso do casamento, e pairando a tudo, um desejo frascário, exaustinado, de ir rebentar a noitada ao baile de máscaras do Trindade. Seis anos de província tinham liquidado nisto o grande homem...

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