Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Dezoito horas e meia. Nem mais um
minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca
vem ao seu lado.
A Rua Barão de Itapetininga é um
depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC
PARISIENSE, SÃO PAULO — PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as
costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.
— Espia se ele está na esquina.
— Não está.
— Então está na Praça da República.
Aqui tem muita gente mesmo.
— Que fiteiro!
O vestido de Carmela coladinho no
corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos
verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores.
— Ai que rico corpinho!
— Não se enxerga, seu cafajeste?
Português sem educação!
Abre a bolsa e espreita o espelhinho
quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz
chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco
na ponta das orelhas descobertas.
Bianca por ser estrábica e feia é a
sentinela da companheira.
— Olha o automóvel do outro dia.
— O caixa-de-óculos?
— Com uma bruta luva vermelha.
O caixa-de-óculos para o Buick de
propósito na esquina da praça.
— Pode passar.
— Muito obrigada.
Passa na pontinha dos pés. Cabeça
baixa. Toda nervosa.
— Não vira para trás, Bianca.
Escandalosa!
Diante de Álvares de Azevedo (ou
Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias
brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um
botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a Rua Barão
de Itapetininga.
— O Ângelo!
— Dê o fora.
Bianca retarda o passo.
Carmela continua no mesmo. Como se não
houvesse nada. E o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só
que sorri.
— Já acabou o romance?
— A madama não deixa a gente ler na
oficina.
— É? Sei. Amanhã tem baile na
Sociedade.
— Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo
domingo. Não segura no braço!
— Enjoada!
Na Rua do Arouche o Buick de novo.
Passa. Repassa. Torna a passar.
— Quem é aquele cara?
— Como é que eu hei de saber?
— Você dá confiança para qualquer um.
Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu armo já uma encrenca!
Bianca rói as unhas. Vinte metros
atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à
calçada. E estacam.
— Boa tarde, belezinha...
— Quem? Eu?
— Por que não? Você mesma...
Bianca rói as unhas com apetite.
— Diga uma coisa. Onde mora a sua
companheira?
— Ao lado de minha casa.
— Onde é sua casa?
— Não é de sua conta.
O caixa-de-óculos não se zanga. Nem se
atrapalha. É um traquejado.
— Responda direitinho. Não faça assim.
Diga onde mora.
— Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila.
Vila Margarida nº 4. Carmela mora com a família dela nº 5.
— Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome.
Você é capaz de lhe dar um recado?
Bianca rói as unhas.
— Diga a ela que eu a espero amanhã de
noite, às oito horas, na rua... na... atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que
ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também pode ficar em casa.
— Barbeirinho nada! Entregador da Casa
Clark!
— É a mesma coisa. Não se esqueça do
recado. Amanhã, as oito horas, atrás da igreja.
— Vá saindo que pode vir gente
conhecida.
Também o grilo já havia apitado.
— Ele falou com você. Pensa que eu não
vi?
O Ângelo também viu. Ficou danado.
— Que me importa? O caixa-de-óculos
disse que espera você amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília.
Atrás da igreja.
— Que é que ele pensa? Eu não sou
dessas. Eu não!
— Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta
de você, sua boba.
— Ele disse?
— Gosta pra burro.
— Não vou na onda.
— Que fingida que você é!
— Ciao.
— Ciao.
Antes de se estender ao lado da
irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas:
Joana a Desgraçada ou A Odisseia de uma Virgem, fascículo 2º.
Percorre logo as gravuras. Umas teteias.
A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano
a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada
louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão
inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do
ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de
carambola.
Quando Carmela reparando bem começa a
verificar que o castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro
Giuseppe Santini berra no corredor:
— Spegni la luce! Subito!
Mi vuole proprio rovinare questa principessa!
E — raatá! — uma cusparada daquelas.
— Eu só vou até a esquina da Alameda
Glette. Já vou avisando.
— Trouxa. Que tem?
No Largo Santa Cecília atrás da igreja
o caixa-de-óculos sem tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:
— Uma voltinha de cinco minutos só...
Ninguém nos verá. Você verá. Não seja má. Suba aqui.
Carmela olha primeiro a ponta do
sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do
direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas.
— Só com a Bianca...
— Não. Para quê? Venha você sozinha.
— Sem a Bianca não vou.
— Está bem. Não vale a pena brigar por
isso.
— Você vem aqui na frente comigo. A
Bianca senta atrás.
— Mas cinco minutos só. O senhor falou...
— Não precisa me chamar de senhor.
Entrem depressa.
Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.
Só para no Jardim América.
Bianca no domingo seguinte encontra
Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha
denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.
— Xi, quanta coisa pra ficar bonita!
— Ah! Bianca, eu quero dizer uma coisa
pra você.
— Que é?
— Você hoje não vai com a gente no
automóvel. Foi ele que disse.
— Pirata!
— Pirata por quê? Você está ficando
boba, Bianca.
— É. Eu sei porquê. Piratão. E você,
Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo me disse que você está ficando
mesmo uma vaca.
— Ele disse assim? Eu quebro a cara
dele, hein? Não me conhece.
— Pode ser, não é? Mas namorado de
máquina não dá certo mesmo.
Saem à rua suja de negras e cascas de
amendoim. No degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a
belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe.
— Vamos dar uma volta até a Rua das
Palmeiras, Bianca?
— Andiamos.
Depois que os seus olhos cheios de
estrabismo e despeito veem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca
resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando coisas. Roendo as unhas. Nervosíssima.
Logo encontra a Ernestina. Conta tudo a
Ernestina.
— E o Ângelo, Bianca?
— O Ângelo? O Ângelo é outra coisa. É pra
casar.
— Ahn!...
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