10/12/2017

Eu, Ido, e os outros Eus (Conto), de Salomão Rovedo


Eu, Ido, e os outros Eus

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“Pequeno e efêmero é o homem”.
(C.G.Jung)

Gostava mesmo era de ficar sentado na varanda. Vendo a gente que faz a cidade viver passar diante da casa. Conhecia quase todos pelo nome. E quando passava o padeiro, o quitandeiro, o carteiro, o gari, ficava murmurando o nome baixinho. Até o cachorro que vinha cagar no canteiro da vizinha eu conhecia. Dava-me um quilo de riso íntimo quando o danado vinha: chegava, mijava no meu poste (até deixava) e depois dava uma cagada monstruosa no canteiro da vizinha. Ela era tão chata que a safadeza do cachorro me dava acesso de riso, com dor de barriga. Bem feito! Na volta o cachorro passava perto de mim para receber um afago na cabeça, como paga: obrigado meu mano, por dar a cagada que eu gostaria tanto de dar. Antes de morrer, quem sabe criava coragem, no escuro da noite...

Estirava as pernas, doídas pelas varizes que se acumulam, sobre a almofada posta na cadeira, as canelas pretas do prejuízo que a má circulação trouxe. Quando todo mundo já tinha ido para o trabalho, eu, desempregado, sem aposentadoria, me dava o prazer de ficar tendo cuidados com meus livros. Graças a Deus que gostava de ler desde cedo, quando pirralho e roubava livros da biblioteca da escola. Hoje era o que me alegrava: ler Monteiro Lobato, Gonçalves Dias, Machado de Assis, ouvindo, música clássica, interpretada pelos velhos Artur Rubinstein, Jascha Heifetz, Pablo Casals – esses que já se foram, mas deixaram gravadas as belezas para gente ouvir. Tenho cá minhas humanidades...

Desse vício que peguei, graças à boa leitura, até já me atrevia escrever uns artigos e mandava para o jornal, sem assinar, sem nada. Algum saía publicado, outros eram porcarias mesmo, escritos na pressa de quem não tem método. Agora estava escrevendo poesia. De primeiro queria imitar J. G. de Araújo Jorge, Castro Alves e Fagundes Varela. Mas o Araújo Jorge tem muita rima e reticência, Castro Alves era poeta de praça e plateia e do Varela gostava mais daquela parte do “Evangelho na Selva”, só que é muito grande.

O que me salvou de não imitar esses e outros menos votados, foi ter me chegado às mãos livros de Mário de Andrade e de Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, Eugênio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade. Fui pegando pelo nome: se for Andrade era bom. [Cheguei a pensar que – tirante Pessoa – os Andrade eram tudo aparentado. Quem sabe se não são mesmo, lá pelas raízes de Portugal e Galícia?] Agora, tentava imitar a poesia desses, o jeito de escrever, meio relaxado, que é mais difícil de imitar – essa escrita, que parece fácil de fazer, mas não é. Só é fácil depois que está pronta. Há, há, há... Apenas para ficar parecido, o jeito. Quer dizer, imitava, mas com outras palavras minhas ideias, tiradas de tudo que eu lia, todo tipo de poesia, romance, conto, inclusive folhetos de cordel.

O Mário de Andrade era porreta quando botava um título nos livros. Enquanto que eu andava doido procurando nome para dar ao meu caderno de poesia, ele só tirava título bonito: “Remate de Males”, “Amar, Verbo Intransitivo”, “Macunaíma”, que é tão nobre que parece nome de deus Azteca, não é? Ah se eu tivesse essa facilidade, mas não tinha jeito não: ficava poesia sem nome, caderno sem nome, livro projetado sem nome. Já do Fernando Pessoa, gostava dos outros apelidos que ele dava para ele mesmo, tudo nome bem apessoado, fácil de dizer: Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa. Será que eram, todos, ele mesmo? Tenho cá minhas dúvidas. Algum escritor já levantou a hipótese de ter sido um grupo, coisa parecida. Tivesse eu nomes fáceis assim e seria poeta também. A leitura é que me aliviava a dor.

Agora que vi o barbeiro se dirigindo para abrir a loja, lembro que faz dias que não via o Jotaquê passar, coitado, que pelas varizes que lhe tolhem os movimentos, aquele acabava um dia tendo derrame, embolia. Ele que gostava de ficar jogando dama, xadrez, conversando história de barbearia para passar o tempo. Uma pena, afinal Jotaquê, jornalista aposentado, era um grande na prosa, conversava de todo assunto. Gostava de trocar ideias com ele, até irritá-lo com minhas safadezas extremadas. Chega que deixava ele louco, louquinho, coitado. Depois a gente acabava na maciota, se rindo um com o outro, sabendo que era safadeza. O primeiro vizinho que passava perguntava cadê ele. Pelo menos o sofrimento dele amenizava o meu. Isso que era sofrer! Minha mazela era pinto perto do coitado. Contava-me que as varizes chegavam a doer tanto que não tinha analgésico que ature. Além de hemorroidas...

Ficava matutando desse jeito porque naquela hora estava sozinho no mundo. Eu e minha casa, três quartos, sem cachorro, sem empregada. Só uma menina vinha de vez em quando limpar os aposentos, a troco de dez cruzeiros. Os meus filhos já se tinham ido cuidar da vida. Não sei porque moravam tão longe e nunca tinham tempo de aparecer. Lá uma festa ou outra reunia todo mundo. Mas depois que a mãe deles o bom Deus também chamou para o seu lado é que ficou mais difícil deles chegarem. Cada vez mais fui ficando só. Até a gata que tinha em casa, pariu uma ninhada, logo depois morreu atropelada por um ônibus, dei os filhotes. Não é os vizinhos passando, dizendo alguma coisa e só me restava mesmo os livros, a música, meus cadernos de poesia, os artigos anônimos.

Para pagar meus pecados, que ninguém é de ferro, o bom Deus me mandou uns vizinhos de lascar. Além daquela chata, que vive resmungando sobre minha vida – coitada de solteira, carola e ainda por cima virgem rejeitada no altar, só dá isso! Tem outro, que fica duas casas pra lá, que vive botando na vitrola uma música clássica tão alta que perturba toda a vizinhança. Só para mostrar que é culto ou intelectual. Volta e mais a figura vem aqui sugar da minha sabedoria, mas dou pouca pílula, dou mentira, lorota, homeopatia. Ele sai todo se rindo, pensando que agregou mais algum dom para sua intelectualidade, mas qual, só leva mesmo sarapatel, fubá de milho...

Voltando a falar da família, nem os netos ainda eu não conhecia e daqui a alguns dias seria o aniversário do primo Walter. Dava um abraço, bebia umas bebidinhas, comia uns doces e voltava. Era gente na casa dele! Como era querido o primo Walter, tinha uma esposa bonita, carro do ano, era bem conceituado. Os sobrinhos (todos me chamavam de tio), mesmo grandes, crescidos, altos, brancos, fortes, ainda me abraçavam, me beijavam, eram muito carinhosos. Sentia-me importante quando ia lá e ele me apresentava: esse é meu primo. Políticos, deputados, fazendeiros, uísque do bom, churrasco, bolo, vinho, champanhe até, tudo servido por garçom. Os sobrinhos gostavam de ouvir minhas histórias e cada vez que chegava lá tinha de estar com alguma prontinha, na ponta da língua.

Essas pequeninas coisas que ainda me deixavam alegre. Depois, voltava para casa, estava sozinho de novo, mas a verdade é que as festas do primo Walter eram gloriosas. E as mulheres que iam lá? Nem falo, cada vestido, cada joia... E cada coxa, cada rabo! Nossa! Volta e meia me descia uma lagrimazinha de tanta alegria e felicidade que tinha nesses momentos. Que se leva da vida? Dizia cá com meus botões: essas coisas, a amizade, o carinho das pessoas, imagina, quase estranhas. Eram os mais carinhosos, esses que a gente nem podia dizer que era íntimo da gente.


E, claro, boa bebida, boa comida, manjar dos deuses. O que mais agradava, o que se leva...

Quantas vezes me arrependi das vezes que fui rude com os meus filhos. Eles é que a gente tem de trazer e deixar bem perto, sentar no colo, fazer um carinho, dar uns cheirinhos, uns beijinhos, mesmo que esse chamego todo aumente a tristeza que vai ficar, quando o bom Deus nos chamar para o seu lado direito. Se a gente não vai gostar dos filhos, vai gostar de quem? Mas tive cá meus atenuantes, porque nunca fui tão violento assim com eles. Nada de pancadas, quando meninos, sim, umas palmadinhas que mais doíam em mim. Depois, deixa pra lá, que a vida é dura demais para a gente ficar criando picuinha por bobagem. Não conto para ninguém, mas a verdade é que tive muito amor por os filhos, todos, todos, não diferenciei um do outro, nem dei privilégio.

Depois de uns tempos fiquei velho. Dava cada pesadelo, acordava aos gritos sem ninguém para me socorrer. Sonhava que meu corpo estava cheio de chagas, de coceira, vítima da AIDS e outras doenças que tais, eram muitas de imaginação. Acordava suado que nem o cão. As pernas não obedeciam, mulher, nem pensar! Só ficava espiando as menininhas passando, querendo intimamente, mas sem poder. A idade é assim que chega. A gente nunca sabe como será, só quando chega. É que nem a morte: quem sabe como será? Quem sabe quando será? Quem sabe por quê será? Nunca vi a morte mandar telegrama, mesmo para aqueles que já estão desenganados, sempre se vai dormir pensando em acordar no dia seguinte, nem que seja para ler jornal, ver televisão, ouvir rádio.

Uma manhã, estando sentado à varanda naquele relaxamento de sempre, notei que o dia estava mais silencioso, como se não tivesse movimento algum. Mas o cotidiano se animava, as pessoas se dirigiam para a escola, para o trabalho, os ônibus começavam a circular, fumarentos e barulhentos. Mas o som e os ruídos estavam apenas na minha mente. Na realidade havia uma calada, como se fosse a mais eterna noite. As pessoas não me cumprimentavam – um ou outro ainda fazia um mero aceno, os olhos perdidos lá para os fundos da casa. Mas a grande maioria ninguém se importava mais em falar comigo, dirigir alguma palavra. Só então me dei conta de que eu estava ficando invisível.

À noite eram os sonhos que substituíam as pessoas. Lembro-me ainda hoje, bem claro, de um sonho que me acompanhava durante toda a infância e juventude. Saía de casa a caminhar em terrenos baldios e sempre parava num local ermo qualquer e ficava a cavar, cavar, até deixar as mãos sujas de barro e areia negra, encharcada, até encontrar um tesouro, um ninho de moedas antigas. Não, não era um baú ou coisa parecida. As moedas estavam no chão, enterradas como sementes. Esse sonho me acompanhava anos e anos seguidos, sempre se repetindo, mesmo quando passei a morar em cidades grandes, onde os terrenos baldios escasseavam. Deixava as moedas sujas de terras escorrer pelas mãos, mais para admirar a antiguidade de cada uma do que pelo valor intrínseco. Lembro-me bem, minha alegria era encontrar as moedas, patacas, não lembro de ligar o achado à fortuna, para mim – acho – as moedas não tinham valor monetário, mas valor histórico, de colecionador.

O meu pai teve uma dessas coleções de moedas antigas, já esverdeadas pelo azinhavre, que eu sempre ficava admirando. Era Réis, Patacões, com a efígie do Rei de Portugal, brasões, frases em latim. Não sei se havia ligação entre esse fato e o sonho, mas nunca procurei interpretá-lo nem saber o significado. Busca de fortuna? Se assim fosse, as moedas deveriam ter algum valor financeiro. Desenterrar o passado? Sempre que penso nisso, fico buscando um passado que não existe. Os pais já não contam mais a história de seus antepassados, muito menos o meu, cujas parcas notícias que tinha eram mais que nebulosas. O meu passado não vai além de um avô, porcamente conhecido.

Sempre tive dificuldade com o sonho. Não sabia quando o acontecimento é sonho, quando é realidade, sempre me confundindo. Às vezes só depois de estar acordado muito tempo é que percebia que as coisas de que me lembrava eram somente sonho. Às vezes aos sonhos se misturavam as coisas cotidianas e me acompanhavam o dia todo. Existe aquele pedaço de tempo perdido que não é mais sonho nem realidade, uma coisa dúbia. É quando os fantasmas aparecem.

Quando começamos a dormir, chega um momento que não se está mais acordado nem se chegou às profundezas do sono. Nesse estado, os sonhos também acontecem, os sons do interior, misturados aos ruídos que vêm de fora, vozes, falas, algazarra. É preciso cuidado para não pensar que se está ficando louco. Por exemplo, depois que fiquei sozinho, de uns tempos para, cá andei de notar passar uns vultos. Agora mesmo, quando escrevo, vejo pelo canto dos olhos eles se movimentando. A princípio fiquei curioso, mas depois me acostumei.

“São apenas fantasmas”, disse comigo mesmo, “que fiquem sossegados...”

Desde então temos uma convivência pacífica. Ou quase. Outro dia acordei de um sonho em que ouvia música alegre, muitas falas, risos, barulho de copos e garrafas, como se tivesse uma festa. Claro que fiquei chateado com aquela confusão toda a perturbar o meu sono. Acordei com vontade de mijar, fui no banheiro e aproveitei para dar uma passada na sala. Estava tudo silencioso, como se tivessem todos se calado e desaparecido de cena, em respeito a mim, apenas o vento assobiava uma música na veneziana. Voltei para a cama e a algazarra começou de imediato. Estava com sono demais para levantar-me de novo, o corpo já não mostra essa disposição toda.

“Só espero que não me deixem para amanhã o trabalho de arrumar um bocado de coisas, louças sujas para limpar”. Pensava no clima depois de festa, em que os cinzeiros, copos, pratos, garrafas vazias, líquido derramado, tudo, tudo, com aquela sujeira, fica para se limpar. E o banheiro? Banheiro depois de festa é terrível. Fiquei pensando, pensando, até o sono chegar de novo, tranquilo. Depois da ruminação, virei para o outro lado, não me aporrinhei mais e dormi. No dia seguinte – graças a Deus – estava tudo limpo (se é que se pode chamar a casa em que um velho mora sozinho de limpa). Deixaram tudo arrumado, sem lembrança da farra da noite anterior. Ao fim, pensei, estão mesmo é preparando terreno para outras festas...

Acostumei-me com essas reuniões, que às vezes eram ruidosas, outras mais caladas, como se houvesse alguma calamidade a comemorar. Só a partir desses ajuntamentos é que pude rever amigos dos quais não tinha notícia há tempo. Ficava de longe, encostado no portal, vendo a algazarra, sem me intrometer, até o sono chegar e me derrubar na cama. A turma era variada, aparecia de tudo. Volta e meia uns desconhecidos absolutos – notava-se bem que eram penetras – aproveitavam a festa para se divertir. Um desses colegas que não via era o Almir – amigo de infância que um dia brigou com a família toda e se mandou para os EUA em busca de novas oportunidades. Nunca mais voltou, por mais que se buscasse notícia, jamais se soube do seu destino. Ficou rico, dizem. Pois de repente começou a fazer parte do grupo – e assumiu seu lugar de vez.

É interessante ver como eles se comportam com neutralidade, ninguém querendo aparecer mais que o ouro. Não se nota nenhum traje mais indecoroso, mais espalhafatoso. Estão nem vestidos nem nus. Aliás, vocês podem estar pensando quem são eles e porque não cito um por um. Adiantaria? Adianta-me dizer aquele é o Mário, por isso e aquilo. Esta é a Maria Antônia, que o marido abandonou, mas agora estão juntos outra vez, se perdoando mutuamente. Aquele outro é o Carlos, que, dizem, roubou a mulher do melhor amigo. Está vendo o velho ali no canto? Abandonou tudo e todos pelo jogo. Filhos, mulher, amigos, emprego. Estão vendo a ambiguidade e a falsidade nessas frases? Percebem como seria inútil essa dissertação?

Infelizmente também não vejo nenhuma utilidade em dizer aqui que, depois, pude saber que a fulano aconteceu isso e a sicrana aquilo. Que Severino se suicidou. Que Maria do Carmo, fiel aos oitenta anos, jamais olhou outro homem que não o marido Leonardo. Que Roberto se acidentou num desastre de aviação, junto com outros duzentos passageiros. Que aquela Hilda não é a Hilda Furacão, mas também não fica atrás. Que o padre Hildebert certamente anda pelo inferno. Simplesmente não posso porque simplesmente não saberei nunca. O importante é me manter aqui pela redondeza, acompanhando os dias e as horas, até que chegue o momento que me dará o direito de participar das comemorações.

É só esperar, é só esperar...


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Fonte:
Salomão Rovedo: Sonja Sonrisal. Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016. (Imagem: Páginas pessoal do autor)

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