10/01/2017

Ninho de periquitos (Conto), de Hugo de Carvalho Ramos


Ninho de periquitos

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Abrandando a canícula pelo virar da tarde, Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.

Era pelo domingo, vésperas quase da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.

Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno: não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos, que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de malícia, num cupim velho do pé da mariapreta. Não esquecesse...

O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões; foi ao paiol de palha de arroz, mais uma vez avaliando com a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes da coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno. Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.

Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.

O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão – nesses dias sem pinga d'água – galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde a galharada esguia, toda tostada desde a época da queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada.

Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho essa estação.

O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-a num repente, surpreendido. É que uma picadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.

E, enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-lhe, persistentes, os olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...

O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.

Era uma urutu, a terrível urutu do sertão, para a qual a mezinha doméstica nem a dos campos possuíam salvação.

Perdido... completamente perdido...

O réptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta; e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo jacaré inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.

Então, sem vacilar, num movimento ainda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.

E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...

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