10/01/2017

O Saci (Conto), de Hugo de Carvalho Ramos


O Saci

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Por aquele tempo o saci andava desesperado. Tinham-lhe surrupiado a cabaça de mandinga. O moleque, extremamente irritado, vagueava pelos fundões de Goiás.

Pai Zé, saindo um dia à cata dumas raízes de mandioca castela que sinhá-dona lhe pedira, topou com ele nos grotões da roça.

O preto, abandonando a enxada e de queixo caído, olhava pasmado o negrinho que lhe fazia caretas e trejeitos, a saltar no seu único pé, e fungando terrivelmente.

– Vancê quer alguma coisa? – perguntou pai Zé admirado, vendo agora o moleque rodopiar como o pião do ioiô.

– Olha negro – respondeu o saci, – vancê gosta de sá Quirina, aquela mulata de sustância; pois eu lhe dou a mandinga com que ela há de ficar enrabichada, se vancê me arranja a cabaça que perdi.

Pai Zé, louco de contentamento, prometeu. A cabaça, ele sabia-o, fora amoitada pelo Benedito Galego, um caboclo sacudido que, cansado das malandrices do moleque, a tinha roubado das grimpas do jatobá grande, lá nas roças do ribeirão.

Pai Zé fora um dos que o tinham aconselhado, para obstar que o saci, como era o seu costume quando incomodado, tornasse a levantar as árvores da derrubada que o Benedito fizera nessas terras.

Arrastando as alpercatas de couro cru pelas terras de sô feitor, pai Zé capengava satisfeito e inchado com a promessa do saci.

Desde Santo Antônio que ele rondava sá Quirina, procurando sempre ocasião de lhe mostrar que, apesar dos seus sessenta e cinco anos e meio, um olho de menos e falta de dente na boca, não era negro para se desprezar assim por um canto, não – que sustância ainda ele tinha no peito para aguentar com a mulata e mais a trouxa de sá Quitéria, sua mulher, se ele tinha!

Mas a cafuza era dura da gente convencer. Toda a eloquência que ele penosamente engendrara em seu bestunto de africano e que lhe tinha despejado pela festa de São Pedro, não teve outro resultado senão a fuga da roxa quando o encontrava.

– Mas agora – gaguejava o preto – eu lhe amostro, que o saci é mesmo bicho bom pra deitar um feitiço.

Com a rica dádiva dum quartilho de cachaça e meia mão do seu fumo pixuá, pai Zé alcançou do Galego a cabaça desejada.

Sá Quitéria, porém, não via com bons olhos o afã de seu velho pela posse da milonga. E ela também sabia deitar e tirar quebranto, se sabia! Perguntassem à bruxa da nhá Benta, que desde vésperas de Reis estava entrevada na trempe do jirau; e não era o zarolho e cambaio do seu homem que a enganasse.

Por isso, a velha ciumenta estava de tocaia, desejosa por saber do seu intento. Lá ia pai Zé, arrastando novamente as alpercatas de couro cru pelas terras de sô feitor, à entrevista do saci. Atrás dele, sorrateira, lá ia também sá Quitéria.

O negro chegou aos grotões e chamou pelo saci, que de pronto apareceu.

– Toma lá a sua cabaça de mandinga, seu saci, e dá-me cá o feitiço pra sá Quirina.

O moleque desbarretou-se, tirou uma pitada grossa da cumbuca, fungou, e, entregando o resto a pai Zé, disse:

– Dá-lhe a cheirar esta pitada, que a crioula é sua escrava.

E desapareceu, fungando, pulando no seu único pé, nos grotões e covoadas da roça.

– Ah, negro velho dos infernos, que conheci a tua tramoia – gritou sá Quitéria furiosa, saindo do bamburral e segurando-o pelo papo.

E, na luta do casal, lá se foi o feitiço que o pobre pai Zé adquirira com o sacrifício dum quartilho de cachaça e a meia mão do seu bom fumo pixuá.

Desde então, nunca mais houve paz no casal, que se devorava às pancadas; e pai Zé arrenegava sem descanso o maldito que introduzira a discórdia no seu rancho.

– Porque, Ioiô– concluiu o preto velho que me contava esta história – a todo aquele que viu e falou com o saci, acontece sempre uma desgraça.

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