O Enjeitado
A Joaquina do Espinhal tinha ido,
no fim da tarde, lavar ao rio a roupa dos pequenos. Era no mês de dezembro. A
água corria por entre os choupos, fria e levemente encrespada pela brisa que
soprava do norte. Joaquina do Espinhal, com as saias arregaçadas na cintura, as
pernas metidas na água até ao joelho, ensaboava a roupa e batia-a com força
sobre a pedra polida e lustrosa do lavadouro.
Da outra banda, pelo carreiro que
havia à beira do rio, passou o filho do moleiro a tanger os machos. O rapaz ia transido
de frio, com a gola da jaqueta apanhada para as orelhas, a assobiar alto. Assim
que reconheceu a lavadeira, parou, fincou a mão ao tronco de uma árvore, e,
debruçando-se sobre o rio, perguntou de lá:
— Vocemecê não tem frio?
A Joaquina aprumou-se e
respondeu:
— Ai! és tu, Jerônimo! Frio? Quem
fala nisso? Quando a gente tem filhos, não deita conta a nada. Onde ides?
— Vou levar a fornada a casa do
Sr. doutor.
— Pois vai com Deus, vai.
Mas o rapaz deixou-se ficar imóvel
a olhar para ela. Os machos iam tosando nas silvas.
— Que frio! — exclamava ele todo
arrepiado.
— Credo! Se eu a visse aí de
noite, diabos me levem se não deitava a fugir com medo!
A lavadeira ria-se.
— Medo de quê, rapaz?
— Some-te! — dizia o moleiro. —
De noite, só as bruxas é que veem lavar aos rios... Adeusinho, tia Joaquina.
— Adeus, ó Jerônimo.
Era já noite, quando a Joaquina
voltou para casa, carregada com o alguidar da roupa molhada à cabeça.
Atravessou uma bouça; e, quando ia a transpor o portelo, que dava para a
estrada, estacou de repente. Tinha ouvido uns gemidos vagos ali perto. Debaixo
da lajem do portelo, por entre o tojo, alvejava alguma coisa que se movia.
Cuidou ao princípio que fosse um cão; e ia a dar-lhe com a ponteira da chinela,
quando os gemidos se repetiram.
— Ele que dianho é?
Pousou resolutamente o alguidar
no primeiro degrau do portelo, abaixou-se para examinar de perto; e, ao
levantar uma ponta da trouxa, viu uma criança recém-nascida, nua, embrulhada
num lençol velho. Tomou logo a criança nos braços, e, achegando-a ao calor do
peito, exclamava comovida:
— Ó meu rico filho! Que grande
cadela foi a tua mãe! Que grande desavergonhada!
Quando entrou em casa, o marido
estava com os dois pequenos sentado ao calor da lareira. A Joaquina correu o
ferrolho interior da porta, e, chegando-se junto do homem, apresentou-lhe nos
braços o enjeitado.
— Aqui tens este leitão.
O João do Espinhal pôs-se logo de
pé muito espantado. A criança, lívida de frio, ao sentir o calor do lume,
agitava-se no lençol, abria os olhos e a boca, procurando com impaciência e
avidez o leite do seio materno.
— Meu rico anjinho!? — exclamava
a Joaquina, bafejando-lhe as mãozinhas. — Que frio e que fome que tu tens!
Referiu ao homem como encontrara,
ao voltar do rio, aquele inocentinho abandonado no meio do tojo.
— Se o não topo no caminho, a
criancinha a esta hora tinha morrido de frio.
— Mas tu que lhe queres fazer? —
perguntou o marido, passado um momento de surpresa.
— Que lhe quero fazer!! Vou daqui
pedir à mulher do Cosme que chegue o peito a este inocente; e amanhã veremos
então a volta que lhe hei de dar.
O João, imóvel e calado, com os
olhos postos na labareda da lareira, coçava a nuca. O que ele não queria era
aumentar os encargos da família com mais um estranho. A féria de pedreiro, que
recebia aos sábados, mal lhe chegava para o sustento da mulher e dos dois
filhos; agora, se a Joaquina teimasse em ficar com o enjeitado...
— É uma dos diabos! — pensava
ele, franzindo os beiços.
A Joaquina saiu de casa com a
criança ao colo, e voltou pouco depois, explicando ao homem o que tinha
sucedido. A Josefa do Cosme tomava conta do inocente, chegava-lhe o peito; mas
queria que alguém desse parte ao regedor, porque não estava para se meter em trabalhos.
— Porque — dizia a mulher — o
leite que tenho, graças a Deus, chega bem para ele, sem o tirar à filha; mas, Sra.
Joaquina, é preciso que alguém de futuro tome conta da criança...
A Joaquina combinou com a vizinha
irem no dia seguinte a casa do regedor; e depois talvez que o fidalgo da
Tojeira tivesse dó do enjeitainho, e tomasse conta dele. E senão — insistia ela
— tomo eu! Pois! Onde houver um bocado de pão para os filhos, há de haver uma
migalha para o inocente.
O João ouvia isto contrariado e
sisudo, mas sem replicar. Mandou deitar os pequenos. Quando despiu a jaqueta,
para se meter também na cama, encostou-se à ilharga da enxerga, e voltando-se
para a mulher perguntou:
— Mas, ó mulher, e se o fidalgo o
não quiser? Sim; vamos a futurar que o fidalgo, que é teimoso como o burro, não
está por o que vocês lhe dizem?
— Adeus! — replicou
peremptoriamente a Joaquina, encolhendo os ombros. — Ao monte não atiro eu
outra vez o inocente!
No dia seguinte, a Josefa do
Cosme vestiu uma camisa velha à criança, embrulhou-a em uma baeta escarlate, e
com ela ao colo, foi ter com a Joaquina. Saíram ambas para casa do regedor. A
Joaquina referiu o caso, com grandes injúrias contra a desalmada que abandonou
assim o filho por um inverno daqueles! O regedor, que era sujeito circunspecto
e metódico, entendia que o verdadeiro era irem dali a casa do Abade.
— Primeiro que tudo, mulheres —
ponderou ele — vamos a fazer disto uma alma cristã. Uma de vocês serve-lhe de
madrinha, e então o fidalgo, se estiver por isso, que seja o padrinho.
Puseram-se a caminho da
residência.
O Abade tinha engrolado à pressa
o latim da missa do dia, com grande apetite do café quente do almoço. Ia a sair
apressadamente da igreja, quando viu entrar no adro as duas mulheres
acompanhadas pelo regedor.
— Vai torta! — resmungou ele, a
tiritar de frio, com as mãos entanguidas enfiadas nos bolsos das calças. Parou
no limiar; e, logo que elas se aproximaram: — Que temos? Perguntou com modo
desabrido, batendo com ambos os pés na soleira da porta.
A Joaquina repetiu outra vez
diante do Abade o mesmo que tinha dito ao regedor.
— Mas quem será a mãe? —
perguntava ele, tentando descobrir nas feições indecisas da criança uma denúncia.
— Quem sabe lá, Sr. Abade — dizia
a Josefa.
E com a dobra da mantilha
resguardava dos olhares cupidos e profanos do padre o peito alvo e apojado em
que a criança mamava.
— Mas que grande bêbeda, Sr.
Abade! — rosnava a Joaquina. — Que grande... com licença de vossa senhoria...
que grande cabra!
O Abade replicou-lhe:
— Não insulte as cabras, mulher;
não insulte as cabras, que essas não enjeitam os filhos.
Combinou-se ali em que as duas
mulheres fossem pedir ao morgado para ser o padrinho.
— E se ele aceder — disse o Abade,
safando-se para a residência — mandem-me parte, que eu batizo-o hoje mesmo.
Vivam!
O fidalgo da Tojeira era
madrugador. Andava já a passear ao sol da varanda alpendrada da casa, quando o
criado lhe veio anunciar que a do João do Espinhal e a do Cosme lhe queriam
falar.
— Que venham aqui.
Entrou, à frente, a Joaquina do
Espinhal, seguida da mulher do Cosme. Ao princípio, o morgado disse que não. Na
sua opinião, quem faz os filhos que os crie. Ele não estava ali para remediar
as poucas vergonhas do mundo. A Joaquina, porém, não desanimava; e, enquanto o fidalgo passeava ao longo da varanda,
obstinado no seu propósito, a mulher ajuntava súplica sobre súplica, e nas
costas dele ia piscando o olho matreiro à vizinha. Instado por fortes razões
humanitárias, o fidalgo cedeu.
— Pois bem — disse ele, parando
do seu passeio. — Eu irei ser o padrinho; mas uma de vocês que se encarregue de
o criar.
O enjeitado foi batizado às três
horas da tarde desse mesmo dia. Na sacristia o Abade, enquanto enfiava a sobrepeliz em frente do arcaz,
lamentava que se tivesse dado aquele caso na freguesia.
— Mas quem será o maroto do pai!
— perguntava o fidalgo.
— Quem sabe lá, Sr. D. Bernardo!
Nem talvez a própria mãe! Isto hoje, meu senhor, o mundo vai todo assim!
D. Bernardo, quando se oferecia
ensejo gostava de chalacear.
— Pois, Abade — replicou ele —
pai tem a criança; salvo se elas fazem como as éguas de Virgílio, lembra-se?
.....................et saepe sine ulis
Conjugiis vento gravidae (mirabile dictu!)
O pequeno recebeu na pia batismal
o nome de Simão. Foi o que ocorreu à lembrança do padrinho, que tivera assim
chamado outro afilhado, morto de meningite uma semana depois de batizado.
***
D. Bernardo da Cunha era um velho
celibatário, egoísta e avarento. Assinava a Nação e o Bem Público; mas lia o
Primeiro de Janeiro, que lhe dava a cotação exata dos fundos portugueses.
Por tradições de família,
dizia-se legitimista, com quanto na sua consciência os correligionários
entusiastas e crentes não passassem de um bando de visionários.
Vivia retirado do contato do
mundo, entre as velhas e sombrias paredes do seu solar; mas, à cautela, ia
seguindo, dia a dia, as cambalhotas da política constitucional, e sobretudo a
influência que ela exercia na alta e baixa das inscrições. Era como um
passageiro esperto desta velha nau combalida e desconjuntada, que tem tesouro
com que possa salvar-se, no caso de naufrágio!
Quando acontecia que algum velho
padre correligionário ia à Tojeira, e falava com voz pungente da imoralidade
dos governos, das torpezas das eleições, da dissolução dos costumes e da perda
irreparável do país, o morgado, ouvidas as lamentações do Jeremias, encrespava
nos lábios um sorriso zombeteiro, e exclamava:
— Isto, meu caro amigo, está a
acabar. É tudo uma bandalheira!
Parecia uma frase de Tácito, escrevendo
sine ira et studio, a história da
dissolução dos romanos!
Era senhor de um morgadio
avultado. Tinha uma irmã mais nova, senhora de 59 anos, professa no convento de
São Salvador, em Braga, que lhe escrevia de longe em longe, falando-lhe muito
dos seus achaques, e de todos os santos canonizados do hagiológio cristão, e
dos não canonizados, inclusive o fradinho João da Neiva do Carmo.
D. Bernardo, depois que a
Joaquina e a Josefa se retiraram da igreja, chamou de parte o Abade, e
perguntou-lhe se devia dar alguma coisa à ama do enjeitado e afilhado. O Abade
era de opinião que a mulher merecia recompensa.
— Dando-lhe dois pintos cada mês?
— perguntou o fidalgo.
— Paga vossa excelência mui
bizarramente, Sr. D. Bernardo — disse o padre.
Simão cresceu e medrou. No fim de
um ano, ensaiava os primeiros passos ao lado da filha da Josefa. Foram
desmamados ao mesmo tempo; e, daí por diante, a tigela de sopas era comum dos
dois. A Josefa criou uma grande afeição pelo pequeno. Isto causou um grande pasmo
entre as vizinhas, que estavam costumadas a ver tratar os enjeitados com
desapiedado abandono das mulheres que os recebiam.
— Não, que uma coisa assim! —
diziam elas admiradas. — O pequeno parece filho dela!
A única diferença sensível aos
olhos dos circunstantes era esta: quando acontecia ir D. Bernardo por casa do
Cosme, a mulher obrigava o Simão a beijar a mão do fidalgo, ato respeitoso e
humilde, a que não sujeitava a filha. O pequeno olhava o padrinho com o terror
instintivo nas crianças para com as pessoas graves, que os não amimam. Mas,
afinal, o hábito quase lhe venceu a repugnância; e, ao cabo de dois anos, com
quanto a presença do fidalgo ainda o constrangesse e esfriasse no meio das suas
alegres brincadeiras com a Madalena, chegava-se a ele, humilde, e pedia-lhe a bênção,
balbuciante e trêmulo:
— A sua bênção, meu padrinho!
Decorreram os anos, sem alteração
digna de crônica no desenvolvimento do rapaz. Saiu delicado de feições, de
cabelos castanhos, os olhos claros e uma pele fina e branca, muito sensível aos
ardores do sol do estio e aos nordestes ásperos do inverno.
Se acontecia demorar-se com
Madalena fora de casa, pelo meio dos campos, com a cabeça exposta ao sol,
carminavam-se-lhe as faces, e recolhia a pingar sangue pelo nariz. À noite a
Josefa, quando o deitava, chegava-lhe vinagre ao nariz e aos pulsos; e,
apalpando-lhe o ventre, achava-lhe sempre uma pontinha de febre. Este fato
entristecia-a.
— És um pelem, meu filho! —
dizia-lhe no outro dia, olhando o pequeno com piedosa ternura.
No inverno, constipava-se
frequentemente. E enquanto a Madalena,
forte, robusta, sadia, com as bochechas rosadas e luzidias como uma maçã
madura, brincava fora, chapinando nas poças do caminho, o Simão ficava em casa,
muito enroupado, friorento, agachado a um canto junto da mãe.
Pela volta dos oito anos, o
pequeno principiou a andar muito triste. Não queria brincar. Até então, era ele
o companheiro inseparável da Madalena e dos filhos da Joaquina do Espinhal.
Logo que principiava a nascer nos campos o centeio, o Simão preparava as
palheiras com o visco, colocava-as em sítio apropriado, e escondido com os
amigos entre as giestas dos valados, espreitava dali que os pardais caíssem.
Jogava o eixo e o botão com os rapazes que saíam da escola. A Madalena preferia-o
a todos. Não a largava nunca; e se o Simão, nas dúvidas do jogo, se pegava com
alguns rapazes mais alentados, Madalena punha-se da banda dele, e arremetia
valentemente.
Mas o Simão principiou a não
querer sair. Ia a Madalena para a rua, e ficava ele sozinho em casa, encostado
à janela, vendo a brincar de dentro dos vidros. Andava muito pálido e murcho;
e, se se encostava sobre uma caixa, adormecia.
— Tu tens morrinha, rapaz —
dizia-lhe a Josefa assustada e aflita. — Tu, que te doe, menino?
O rapaz não se queixava; mas a
Josefa não tinha sossego.
Foi um dia de manhã, quando o
Simão almoçava ao pé de Madalena, que a Josefa reparou que ele engolia o pão
com esforço. Chamou-o logo junto de si, e apalpou-lhe o pescoço. Sob a pressão
dos dedos sentiu a dureza dos gânglios enfartados por detrás das orelhas.
— Tens humores frios, filho! —
exclamou ela com uma voz dilacerante. — Doe-te?
As duas crianças, ao verem a cara
assustada e aflitiva da mãe, desataram ambas uma risada.
— Não doe nada, não, minha mãe —
asseverava ele.
Nesse mesmo dia, a Josefa
vestiu-lhe camisa lavada e o melhor fato, e foi com ele a casa do padrinho.
— A Lena não vem? — perguntava o
Simão com pena de a deixar só.
Pelo caminho, a ideia da
separação aterrava-o.
— Eu não torno a ver a Lena,
minha mãe? — insistia ele, virando para a Josefa os olhos suplicantes.
Ao chegarem a casa de D.
Bernardo, a mulher explicou o motivo da visita.
— O pequeno saiu enfezadito, meu
senhor. Anda triste, come pouco, e agora veja vossa excelência.
E expunha aos olhos do fidalgo o
cachaço rubro e inchado do rapaz.
— Apalpe aqui. Vê vossa
excelência? O rapazinho padece de humores frios.
D. Bernardo apalpou; e, ao ver
ali o enjeitado, com a carita muito pálida, magro, abatido, com a tristeza
melancólica das crianças doentes o que é como um pressentimento da morte, teve
sincera comiseração.
— Leve-o de meu mando ao
cirurgião — disse ele. — E o que receitar, que lho aviem na botica por minha
conta.
E quando a Josefa ia a sair
chamou-a atrás.
— Olhe, mulherzinha; e precisando
de mais alguma coisa apareça por aqui.
O cirurgião receitou ferruginosos
e banhos do mar.
Por esse tempo, recebeu D.
Bernardo uma carta da irmã freira, dizendo que o médico lhe prescrevera o uso
de banhos do mar. Para não incomodar o mano, tinha indagado no recolhimento se
alguma senhora iria às praias; mas, infelizmente, nenhuma ia! Era uma desgraça!
Respondeu o morgado que pedisse a
mana ao Sr. arcebispo licença para sair e iria ele acompanhá-la à Povoa de
Varzim, logo que findassem as vindimas. Acrescentava que levaria consigo um
enjeitado seu afilhado, que padecia de escrofulas. Recomendava-lhe que pedisse
saúde e a graça de Deus, que trabalhos e canseiras não faltavam neste mundo!
No meado de outubro, por um tempo
seco, mas um pouco frio dos ventos outoniços, apareceu na Tojeira a irmã do
fidalgo seguida de uma criada velha.
Resolveram partir na madrugada do
dia seguinte para a Povoa.
Na véspera, antes de se deitar,
esteve a Josefa a apertar em uma pequena trouxa a roupinha do enjeitado.
— Tu porta-te bem, Simão —
recomendava-lhe ela. — Olha que aqueles fidalgos são os teus benfeitores.
Ouviste?
O pequeno ouvia-a sem poder
falar. Sentia comprimida a garganta e os olhos embaciados de lágrimas. Passou
quase toda a noite em claro. A ideia da separação próxima fazia o chorar
copiosamente.
Escondia a cabeça debaixo do
lençol; e ali, colado à parede, chorava e soluçava baixinho, com receio de
acordar a Lena. Só muito tarde, prostrado pela comoção, é que adormeceu.
Rompia a luz da madrugada pelas
frinchas da janela, quando a Josefa se levantou. Chegou-se à cama do pequeno,
abanou-o e acordou-o.
— Simão, ó Simão!
O rapaz ergueu-se atarantado.
— Veste-te, filho. Anda, que são
horas.
O Simão saltou abaixo da cama, e principiou
a vestir-se devagar, atordoado, sem dar tino do que fazia.
A Josefa ajudava-o com o coração
oprimido, mas fingindo não compreender a tortura do pequeno.
— Não faças bulha, que acordas a
Lena — recomendou ela a meia voz.
Mas do leito da mãe, a Lena ouviu
e respondeu:
— Eu não durmo, minha mãe.
E sentou-se na cama, para se
vestir à pressa.
Quando o pequeno estava vestido e
pronto, a Josefa sobraçou a trouxa, e disse resolutamente:
— Vamos, filho, vamos.
A Lena também queria ir.
A mãe opôs-se, dizendo que estava
a manhã muito fria. Lena desatou a chorar, voltada para o lado.
Na ocasião que a Josefa abriu a
porta da casa para sair, o Simão ficou um momento hesitante e ansioso.
Aproximou-se da Madalena; e, com um sorriso contrafeito, como a querer suster
as lágrimas, despediu-se com uma voz sufocada:
— Adeus, Lena.
A pequena não respondeu. Com as
costas voltadas para ele, imóvel no meio do quarto, encolheu os ombros.
— Adeus, Lena — repetiu ele mais
alto e a chorar.
Então a pequena, em uma grande
efusão de ternura, lançando-lhe os braços ao pescoço, beijou-o repetidas vezes:
— Adeus, Simão.
E quando o enjeitado ia já longe,
pelo atalho fora, ao lado da mãe, Madalena da porta da casa seguia-o com os
olhos cheios de lágrimas e dizia-lhe baixinho adeus, acenando com a mão:
— Adeus, Simão! Adeus!
***
A família da Tojeira esteve um
mês a banhos na Povoa de Varzim. Habitava uma casa pequena na rua da Junqueira.
A Sra. D. Leonarda levantava-se de madrugada, e ia para a praia, seguida da
criada e do Simão.
Nos primeiros dias, o pequeno
sentiu um horror extraordinário pelo mar.
Entrava na barraca a tremer e a
chorar, pedindo a Deus que o matasse!
A Sra. D. Leonarda, a sós com
ele, falava-lhe com aspereza e de sobrecenho carregado. O rapazito reprimia as
primeiras lágrimas, e ouvia-a com submissão e humildade.
— Pois o Sr. D. Bernardo e eu —
gritava a freira — a termos toda a caridade por ti, e tu, ingrato, ainda
choras!
E, como Simão, com a cabecinha
baixa como um réu convicto, principiasse a soluçar, e as lágrimas lhe caíssem
em fio, D. Leonarda indignada, levantava a voz e gesticulava convulsa:
— Tu por que choras, rapaz?
Ingrato! — e, olhando sobre o ombro, observava com irônica piedade: — Sempre
hás de mostrar que és filho do pecado!
Diante de estranhos, no grupo das
senhoras que lhe falavam, a freira de São Salvador mudava de tom. Tinha uma voz
melíflua, vagarosa, e, dando aos olhos uma feição terna, dizia do rapaz:
— É um enjeitadinho, que o mano
protege. Ele é que o não merece! — acrescentava D. Leonarda, azedando a voz. —
É muito ingrato! Ah! nem vossa excelência fazem ideia! Depois, quase
confidencialmente, explicava:
— Sempre estes desgraçados hão de
mostrar que vieram a este mundo contra a vontade de Nosso Senhor!
Simão ouvia isto sem levantar os
olhos. De volta para casa, a freira não cessava de o repreender.
Um dia, na ausência de D.
Bernardo, D. Leonarda, durante o almoço, esteve constantemente a gritar ao
pequeno. Simão, sentado defronte, ouvia-a silencioso, sorvendo o café a
pequeninos golos. D. Leonarda, no auge da sua irritação, gritou-lhe:
— Levanta a cabeça, rapaz! Deixa
o café. O rapazinho pousou logo a xícara e o pão, engoliu com esforço o bocado
que mastigava, e deixou pender os braços.
Não pôde comer mais.
Os únicos momentos felizes
durante o mês que esteve na Povoa eram os que passava na varanda da casa,
depois do jantar, enquanto D. Bernardo
e D. Leonarda dormiam a sesta. Na cozinha, a criada, sentada em uma cadeira
junto da janela que deitava para uma horta, cabeceava. Simão atravessava então
o corredor em bicos de pés, e ia debruçar-se no peitoril da varanda, distraído
a ver na rua a concorrência de banhistas. A vista da gente da aldeia
alegrava-o. Todas as raparigas da altura da Madalena, vistas de longe, lhe
pareciam a irmã. — Se fosse! — pensava ele. Estava uma tarde muito entretido a
olhar um saltimbanco que trabalhava no largo da fonte, quando ouviu que o
chamavam da rua. Era a Joaquina do Espinhal. O pequeno, assim que a reconheceu,
sentiu o coração pular-lhe de júbilo. A Joaquina perguntou-lhe como estava, e
deu-lhe muitas saudades da Lena.
— Tu ainda te lembras dela? —
perguntava a vizinha.
Ele respondia afirmativamente e
ficava muito vermelho, quase a chorar. Pediu à Joaquina que esperasse um
instante. Foi ao quarto em que dormia, tirou de uma gaveta a medalha do Bom
Jesus, que lhe dera D. Leonarda, e desceu com ela à rua para a enviar à irmã.
Logo que saiu a porta, D.
Leonarda assomou à varanda. Observou de cima o pequeno entregar à vizinha a
medalha que lhe tinha dado. Teve um acesso de indignação, e esteve para gritar,
mas conteve-a a ideia do escândalo.
Quando a mulher se separou, a
freira berrou para baixo ao Simão, que tinha ficado parado à porta da rua:
— Ó rapaz! Sobe!
E mostrou-lhe tamanha indignação
nos olhos arregalados, que o pequeno subiu as escadas a tremer, e a suplicar
baixinho de mãos postas:
— Ai! minha Nossa Senhora!
Valei-me, que ela mata-me!
Apenas chegou ao patamar, D.
Leonarda inquiriu com voz ameaçadora:
— Quem te deu licença de
entregares àquela mulher a medalha que te dei?
E, como o pequeno não
respondesse, aplicou-lhe uma bofetada com tamanha violência, que o fez
cambalear e cair para trás, batendo com a cabeça na esquina do degrau.
— Pedaço de maroto! — rosnava a
freira convulsa. — Levanta-te!
E fitava os olhos coruscantes
sobre o Simão, sem reparar que ele ficara ali, sem sentidos, estendido sobre o
patamar, com um fio de sangue a escorrer-lhe da nuca!
***
O enjeitado esteve oito dias de
cama, com assistência de facultativo. Havia receio de que ao abalo da queda
sobreviesse uma meningite. Se se declarasse, dizia o médico, o caso era grave e
podia ser fatal!
Ao cair da tarde, acometia-o uma
febre intensa, que o fazia delirar. Nessas crises, deitado de costas; com as
faces afogueadas e os olhos muito brilhantes e fixos num ponto vago, o doente
falava e gesticulava, proferindo repetidas vezes o nome da mãe e da Lena. D.
Bernardo, sentado ao lado, perguntava-lhe com voz carinhosa:
— Tu que dizes?
Simão, como se despertasse no
meio de um pesadelo, voltava os olhos para D. Bernardo, e estremecia.
— Tu que queres, Simão? —
insistia o fidalgo, apalpando-lhe a fronte esbraseada.
O pequeno recuava para o fundo da
cama, assustado, com os olhos espantados e a tremer.
— Não quero a senhora —
balbuciava ele transido e a chorar. — Ela mata-me! Ai! eu quero a minha mãe! Ó
meu padrinho, a senhora mata-me.
E segurava com força a mão de D.
Bernardo, olhando para a porta com terror da presença da freira.
D. Bernardo, no dia em que o
pequeno foi castigado, censurara a brutalidade da irmã.
— Não são modos de tratar as
crianças, mana — tinha ele dito.
D. Leonarda replicou com azedume;
e, quando D. Bernardo lhe pediu que se calasse, a freira retirou-se da sala com
modo altivo, resmungando pelo corredor:
— Eu já o presumia! Bem me quis
parecer que para afilhado, era muito amor!
Denunciara-se a freira! A
suspeita de que o enjeitado fosse filho do irmão tinha-a sobressaltado. Nutrira
sempre a esperança de ficar herdeira universal da casa da Tojeira. À primeira
notícia da existência do afilhado, todos os seus cálculos ambiciosos se
abalaram. Teve o receio instintivo do mendigo, que vê concorrente à mesma
porta! Recebeu o pequeno com fingida ternura e piedade, mal podendo conter,
mais tarde, o rancor que a sua presença lhe inspirava.
Quando reparou que ele estava
desmaiado aos seus pés, a escorrer sangue, assaltou-a um sentimento de terror,
julgando que o tinha morto. Chamou em altos brados pela criada, que apareceu no
mesmo instante. O rapaz foi transportado em braços para o leito. Ao chegar D.
Bernardo a casa, a criada referiu o que tinha sucedido, desculpando a senhora
da melhor maneira que pôde.
— Onde está a Sra. D. Leonarda? —
perguntou o morgado com ar grave e carrancudo.
— Está no quarto — respondeu a
velha. — A senhora também ficou doente. Isto abalou-a muito.
Ao quarto dia a febre remitiu. Os
receios do facultativo desvaneceram-se. No fim de uma semana, o doente saiu da
cama para uma cadeira da sala.
Caminhava amparado ao braço do
padrinho, muito desfalecido de forças, pálido e trêmulo. A freira via então o
pequeno duas vezes por dia. Falava-lhe sem rancor, mas visivelmente
constrangida.
Durante a enfermidade, a tal
ponto D. Bernardo se afeiçoou ao afilhado, que passava os dias sentado junto
dele, conversando e lendo-lhe de alto as notícias dos jornais.
— Quando voltarmos para a terra —
dizia-lhe ele — hás de também aprender a ler. Queres?
— Quero, meu padrinho — respondia
o Simão.
Um instante depois, perguntava:
— E a Lena?
— A Lena também há de aprender
como tu.
***
Á noitinha, logo depois do toque
das ave-marias, a Josefa chegava à porta a chamar os filhos, que andavam fora a
brincar.
— Venham estudar, que é noite.
E acendia a candeia, que pendurava
num gancho da parede superior a uma mesa de pinho. Sentava-se depois ao lado,
com a roca metida à cinta, a fiar.
Como a mestra curava mais de
ensinar às discípulas a meia e a costura, pondo em último lugar a leitura e a
escrita, o Simão, em poucos dias, adiantou-se na lição à Madalena. Por isso era
ele quem, estudada a sua, ensinava a lição à irmã. Debruçados sobre o mesmo
livro, com as cabeças chegadas uma à outra, Simão ia apontando com o dedo as
silabas que Madalena soletrava:
— Ma-ri-nha.
E erguia os olhos do livro,
hesitante, fitando-os em Simão, que a animava risonho.
— Marinha — dizia a pequena. O
Simão irradiava de júbilo.
— Bem! — exclamava ele. — Agora
para diante.
Então aparecia uma palavra
enorme, que era um martírio para Madalena. Era ainda o Simão que a auxiliava
amorosa e pacientemente, fazendo-a reter bem as primeiras silabas. Diziam
simultaneamente:
— Na-tu-ra-li-da-de.
E se a Madalena dizia bem, o
Simão, num ímpeto de contentamento, tomava-lhe a cabeça entre as mãos, e beijava-a
na testa.
— Muito bem, Lena, muito bem!
No dia seguinte, saíam de casa
juntos para a escola. Metiam por um atalho aberto no meio de um pinhal. Era um
caminho triste e sombrio, com um chão úmido e mole todo sulcado pelas rodas dos
carros e murado de ambos os lados pelos taludes barrentos, onde, no inverno,
escorriam as chuvas. Acabava num terreno baixo desmoitado e areento, ao qual
vinham dar as águas de um regueiro. À tardinha vinha ali beber uma revoada de
pombas brancas. Mais adiante, o caminho bifurcava-se pelo meio de campos de
milho. Junto ao portão de uma quinta murada havia um grande sobreiro, a cujo
tronco estava arrumada uma pedra tosca coberta de musgo requeimado. Era ali que
os dois pequenos tinham de se separar, metendo Madalena por uma azinhaga, onde
ficava a mestra-régia, e Simão por outro lado, na direção da escola dos
rapazes. Nunca o faziam, porém, sem se sentarem algum tempo a conversar. Nesses
instantes Simão contava à irmã os acontecimentos da Povoa de Varzim. Madalena
ouvia-o muito atenta, com os olhos abertos, que se embaciavam de lágrimas nos
lances mais comoventes.
— Eu perguntava sempre à mãe
quando tu vinhas — dizia Madalena, enxugando os olhos nas costas da mão. — Não
gostava de estar sem ti. Olha Simão — pedia ela, lançando-lhe um braço sobre os
ombros — agora, nunca mais hás de ir embora, não?
— Quem sabe lá! — respondia o
enjeitado, incerto do futuro, muito triste, com os olhos fitos num grupo de
árvores, que havia defronte...
Ás vezes, no inverno, quando um
aguaceiro os surpreendia no caminho, corriam a abrigar-se debaixo daquela
árvore. Ficavam ambos ali, muito achegados ao tronco, e tão esquecidos e
abstratos, que nem davam tino da chuva que escorria dos ramos — como os dois
namorados vistos por Diderot!
Decorreram assim três anos.
Madalena já costurava e bordava com
tal perfeição, que era o espanto das vizinhas. Quando a Josefa mostrou uma
toalha de linho bordada pela filha, para ser oferecida ao fidalgo da Tojeira, a
Joaquina do Espinhal levantou nos braços a rapariga, beijou a na boca e
exclamou:
— És uma rosa, Madalena! Louvado
seja Deus! Tens umas mãos, que são uma riqueza!
O Simão lia correntemente,
escrevia com boa caligrafia, sabia as quatro operações, e até já auxiliava o
mestre. Era o decurião da aula. Os discípulos mais venturosos eram ensinados
por ele, propenso sempre à complacência e ao perdão, enquanto os desafortunados se viam nas mãos do Sr. mestre,
um velhote estúpido e rabujento, que se vingava das horrendas misérias a que o
lançavam os governos relapsos no calote, macerando as mãozinhas tenras das
crianças com estrondosas palmatoadas!
Um domingo, na ocasião em que os
fregueses da missa saíam da igreja para o adro, o mestre-escola foi ao encontro
de D. Bernardo, que vinha da porta lateral da sacristia, e deu-lhe do afilhado
as melhores informações. Era uma grande cabeça que ali se perdia, se o
deixassem seguir a lavoura — dizia ele. O pequeno, além disso, era fraco e
doente; e parece que estava talhado para seguir a vida eclesiástica.
D. Bernardo recolheu a casa,
pensando no que o mestre lhe dissera. Era realmente preciso tratar do futuro do
afilhado. Se a vocação o não contrariasse, a vida tranquila de sacerdote era a
que mais se coadunava com as qualidades físicas do pequeno. Passados dois dias
chamou-o a jantar consigo. No fim, perguntou-lhe se queria ser padre. O pequeno
não respondeu. Pôs-se a correr entre os dedos a dobra da toalha, com os olhos
no prato e sem proferir palavra.
— Queres, ou não queres? —
insistiu D. Bernardo.
— Não, senhor — respondeu o
pequeno a medo.
Desejava seguir uma vida que o
não afastasse da Madalena. O fidalgo discordou. Ponderou com palavras
carinhosas que era preciso seguir uma carreira que o fizesse um homem de bem.
Ele que o mandara à escola, não era de certo para o deixar ficar assim, sem um
modo de vida...
— Não, — disse D. Bernardo — se
não queres ser padre, ninguém te força. Serás outra coisa. Mas previne a tua
mãe de que para a semana hás de ir para Braga.
O pequeno desatou a chorar.
— Não chores — disse-lhe D.
Bernardo, que se recordava das cenas da Povoa — não chores. Vais para um
colégio de meninos como tu; e nas férias vai tua mãe buscar-te para vires à
terra!
A propósito, e para desanuviar o
coração do afilhado, contou-lhe varias brincadeiras do seu tempo de colegial.
***
Simão foi acompanhado pela Josefa
a casa do padre Barreiros, na rua da Cônega, em Braga. A mulher entregou uma
carta do fidalgo da Tojeira. O padre montou os óculos, e leu a recomendação do
seu amigo e antigo protetor.
— Muito bem — disse no fim,
retirando os óculos, e dobrando a carta. — Então, este pequeno é o afilhado do
Sr. D. Bernardo?
— É, meu senhor — respondeu a
Josefa.
— E é seu filho? — perguntou o
padre.
A Josefa hesitou na resposta.
Olhou para o pequeno, e disse baixinho:
— Ele é enjeitado; mas quem o
criou fui eu.
Na tarde desse mesmo dia o Simão
entrava como aluno interno no colégio de Jesuítas do Campo das hortas.
Foi recebido carinhosamente pelo
diretor — um homem alto, rubicundo, vestido com uma ampla batina de clérigo. O
padre Barreiros mostrou a carta do fidalgo da Tojeira, e acrescentou:
— O meu amigo é um dos membros
mais valiosos do partido do Sr. D. Miguel! Este pequeno é seu afilhado; e,
pelos modos, o Sr. D. Bernardo dedica-o aos estudos.
Os primeiros dias foram uma nova
tortura para o pobre coração do enjeitado! Andava pelos cantos da casa a
chorar. A cada momento, chegava-se às janelas, e detinha-se a contemplar a
paisagem. Faziam-lhe inveja os homens que trabalhavam no campo. Procurava ver
entre o arvoredo o caminho por onde viera para Braga, e ia seguindo quase
instintivamente a estrada, que ora se perdia encoberta pela ramaria dos
carvalhos, ora surgia em retalho em uma clareira para aparecer depois ao longe,
ondeando pela encosta acima, muito branca entre a verdura do monte!...
Mas ao terceiro dia, o diretor
chamou-o ao quarto, e entregou-lhe um pacote de livros, batendo-lhe
carinhosamente na cara. Recomendou-lhe que estudasse muito.
— Ouviste? Para seres agradável a
Deus, Nosso Senhor, e aos teus pais.
O Simão retirou-se vivamente comovido.
A ideia de que tinha de estudar todos aqueles livros, despertava-lhe na alma um
agradável sentimento de orgulho!
Nas férias do Natal, o padre
Barreiros foi buscá-lo ao colégio, e enviou-o para a terra, muito recomendado a
um almocreve, que passava perto da Tojeira. O pequeno não cabia em si de
contente! Caminhava ao lado do recoveiro, revendo com imenso prazer os sítios
por onde tinha passado meses antes, quando viera para o colégio. Ia impaciente!
A cada passo perguntava:
— Agora já devemos estar perto? O
almocreve dizia:
— Ainda temos muito que andar.
E continuavam os dois pela
estrada fora, sem dizerem palavra. O almocreve, segurando no sovaco a arreata
do primeiro macho da recova, caminhava num passo regular, assobiando. O Simão
ia ao lado. A perspectiva triste e melancólica da paisagem em uma manhã fria de
dezembro tinha para ele encantos indefinidos! As árvores despidas da folhagem,
os campos sem verdura, o céu baixo e enevoado, toda aquela desolação do inverno
apresentava-se a ele com um aspecto risonho e sedutor!
— Ainda temos muito caminho a
andar? — tornava ele ansioso.
O almocreve respondia:
— Vê o menino além aquela ermida,
que fica na chapada? pois em lá chegando, já pode ver o telhado da casa do
fidalgo da Tojeira.
Era ainda uma boa meia hora de
caminhada! Quando iam a dobrar uma curva da estrada, Simão soltou um grito de
alegria, e deitou a correr para a frente. Ao longe, vinha a Lena ao lado da mãe
para o esperarem no caminho. A pequena correu também; e apenas se encontraram,
abraçaram-se os dois em uma grande expansão de ternura!
O pequeno teve umas férias
deliciosas. O padrinho tinha recebido excelentes informações dos padres do
colégio. O aluno era inteligente, estudioso e bem comportado.
— Se tiveres sempre juízo —
recomendava-lhe D. Bernardo satisfeito — podes ainda vir a ser um doutor!
Queres?
O Simão não respondia.
Ruborizava-se todo e, olhando para Lena, que assistia ao lado, sorriam-se os
dois!
Na véspera de voltar Simão para
Braga, a Lena deu-lhe uma pequenina cruz de metal suspensa de uma fita verde.
— Toma — disse, ela, pondo-lhe a
fita ao pescoço. — É a cruz de Nosso Senhor, que eu beijo sempre ao deitar. Não
te esqueças de fazer o mesmo, não, Simão?
***
Nesse dia, um mês depois das
férias, o diretor, antes de terminarem os autos, mandou reunir na grande sala
de estudo todo o colégio. Ao lado dele colocaram-se os professores e os
prefeitos. O diretor subiu ao estrado, e pronunciou de lá um longo discurso,
falando em amor de Deus, em humildade, em dedicação ao estudo, em obediência a
mestres, e superiores! Os alunos, aglomerados na vasta sala, ouviam
silenciosamente, em uma compostura grave, com os braços caídos ao longo do
corpo. Ia distribuir-se um prêmio a um estudante, que pela sua aplicação, pela
sua inteligência e pelo seu comportamento exemplar, se tornava digno daquela
distinção honrosa!
O diretor fez uma pausa, e em
seguida proferiu com voz cheia e solene o nome do aluno distinto:
— Simão Ferreira, filho de...
E, como no registro não houvesse
designação de nome dos pais, emendou:
— Natural de São Silvestre.
O Simão saiu dentre a multidão,
muito vermelho e comovido, adiantando-se na sala com um passo hesitante. O
diretor fê-lo subir ao estrado; e, colocando a mão sobre a cabeça do pequeno,
proferiu ainda uma breve alocução laudatória, e entregou-lhe um livro
encadernado em marroquim azul com letras doiradas no frontispício. Os
professores bateram palmas, abraçaram o estudante; e Simão atravessou por entre
os condiscípulos no meio de uma saudação entusiástica!
Á tarde, quando estava no
recreio, um criado veio chamá-lo para ir à presença do Sr. diretor. Ao entrar
na sala, Simão viu ao lado do diretor o padre Barreiros. Tinham ambos um ar
sombrio e pesado. O diretor, logo que o pequeno entrou, disse-lhe pausadamente,
pondo-lhe uma mão no ombro:
— Meu filho! O Sr. padre
Barreiros acaba de me anunciar a morte do teu padrinho...
O Simão fez-se pálido, e volveu
para o padre os olhos marejados de lágrimas.
— Morreu ontem de repente — disse
o padre Barreiros.
— Por isso — continuou o diretor
— vais-te vestir para ires com o Sr. padre Barreiros. Não sei se voltarás para
o colégio, meu filho. Se não vieres, lembra-te sempre dos teus amigos, e
continua a ser obediente e trabalhador.
O pequeno tinha o pressentimento
vago de que na sua vida aquele acontecimento funesto devia ser de alta
importância. Ficou meio atordoado, como se viesse de assistir a uma catástrofe!
Que iriam fazer dele, sem o
auxílio do seu padrinho?
Esteve dois dias metido em casa
do padre Barreiros. Ao cabo desse tempo, o padre disse-lhe, durante o jantar,
que o Sr. D. Bernardo tinha morrido repentinamente, sem deixar testamento.
Simão mal compreendia o alcance
daquela revelação; mas, pelo modo como o padre falava, pareceu-lhe que era de
gravidade o caso.
— Procurei a mana no convento —
prosseguiu o padre Barreiros — e perguntei-lhe se queria continuar a
proteger-te. Disse-me que o não fazia, por ora, sem saber o valor da sua casa.
Aí tens tu, Simão, como estão as coisas! Por isso, entendo que deves procurar
outro modo de vida. Tens hoje treze anos, sabes ler, escrever e contar, um
bocado de francês e de latim. Deves seguir o comércio para, em pouco tempo,
poderes proteger a mãe que te criou, que há de carecer do teu amparo. Queres?
De todas as considerações feitas
pelo padre, Simão concluiu apenas que estava desamparado, e que era preciso
trabalhar! Disse que sim, que fizesse o Sr. padre Barreiros o que entendesse.
No dia imediato, o padre Barreiros
foi procurar um sobrinho estabelecido com loja de ferragens na Fonte da
Corcova, e ofereceu-lhe o pequeno. O ferragista anuiu; mas declarou logo que o
fato do rapaz ter andado no colégio “era o diabo”! Ele preferia os que saíam
das aldeias, sujeitos a toda a casta de trabalhos. Enfim, uma vez que o tio
queria...
Simão entrou para a loja ao
anoitecer. O patrão falou-lhe com ar carrancudo, tratando-o por tu, e dando-lhe
a entender que, se o recebia, era por ser do agrado do tio. Simão não
respondeu.
O tratamento grosseiro e áspero
do patrão e do caixeiro mais velho da loja, a rudeza do trabalho, as condições
péssimas do quarto em que dormia, sem luz, com pouco ar, entre quatro paredes
úmidas e pegajosas, a lida continua desde o amanhecer até à noite,
transformaram em pouco tempo o pobre rapaz, como se o minasse uma doença grave.
Tinha perdido a cor sadia e a vontade de comer. Dormia mal, sobressaltado por
aquela súbita mudança nos hábitos da sua vida! O patrão obrigava-o a trabalhos
pesados; e, quando o via fraquejar sob o peso das grandes cargas de ferragem,
gritava-lhe: — Anda, avia-te! Quem não pode, arreia! Não sei de que te serve a
comida!
E outras brutalidades, que
melindravam e aviltavam o pequeno.
De uma vez, chamou-o para pesar
em uma grande balança, que havia ao fundo da loja, num armazém escuro e frio,
umas canastras de fechaduras. Simão, com o suor a escorrer-lhe na testa,
segurava a cesta de um lado, o patrão do outro, e, a um impulso simultâneo,
colocavam-na sobre o prato da balança. À terceira carga, o pequeno não pôde
mais, e deixou cair das mãos a canastra. O patrão deu um salto, e aplicou-lhe
dois pontapés valentes, dados com a biqueira do tamanco. Simão principiou a
chorar.
— Mexe-te — berrava o ferragista
— mexe-te, ou levas outros!
Na madrugada do dia seguinte,
quando o caixeiro o foi acordar para ir para a loja, Simão queixou-se de uma
forte dor de cabeça, e pediu-lhe que o deixassem ficar na cama. Logo que o
patrão apareceu, o caixeiro disse-lhe que o rapaz estava doente.
— Eu lá vou! — rosnou ameaçador o
ferragista; e entrou no quarto do rapaz, ordenando que se levantasse
imediatamente. — Eu tiro-te o mimo, meu menino! — dizia ele ao pequeno. — O que
tu tens é ronha, grande mandrião!
Simão ergueu-se a tremer de frio.
Vestiu-se à pressa, e desceu para a loja, adiante das ameaças e injúrias do
patrão. Passado um instante, vendo que o caixeiro se tinha ausentado, levantou
a porta do mostrador, e fugiu para a rua. O patrão, que o avistara do fundo do
armazém, saltou fora, e veio agarrá-lo por uma orelha no Campo da vinha. Quando
se viu preso, Simão julgou-se perdido. Foi levado para casa, perseguido de
sucessivos pontapés. Umas mulheres que passavam, pararam na rua, ao ver a fúria
do homem, e compadecidas do rapazinho, que, a cada momento se voltava para
trás, pedindo perdão com as mãos postas:
— Perdoe ao rapazinho —
imploravam elas segurando o ferragista. — Perdoe-lhe por esta vez, Sr. José.
O ferragista, porém, era implacável.
Chegado a casa, subiu com o rapaz
a uma sala do andar superior, fê-lo despir a jaqueta e as calças, pegou num
junco, e gritou-lhe pálido e trêmulo de raiva:
— Ajoelhe-se, e peça perdão!
Simão caiu de joelhos no sobrado,
e ergueu as mãos.
— Agora — disse o ferragista —
vamos ao corretivo.
E, com o junco vibrado com toda a
força, principiou a vergastar as costas do rapaz. Simão retraía-se de encontro
à parede, clamando por socorro. O patrão enfurecia-se mais aos brados do
padecente, e, cego de indignação, quase sem respirar, num ímpeto convulso de
fera, saltou sobre o rapaz a bater-lhe com tanta violência, que o fez cair no
chão, soltando gritos aflitivos, com as costas retalhadas e a escorrer em
sangue!
O patrão cansado e ofegante abriu
então a porta da sala, e saiu.
Simão, quando se viu só,
ergueu-se de um ímpeto, desceu à pressa as escadas, e saltou para a rua a
gritar. Ao dar meia dúzia de passos, caiu extenuado sobre o lajedo do passeio.
Reuniu-se muita gente em volta
dele. As mulheres, em grande alarido, davam morras! contra o malfeitor.
Alguns homens tentaram levantar
do chão o pequeno; mas as mulheres opuseram-se. Uma delas retirou um lençol de
uma trouxa que levava à cabeça, e embrulhou nele o rapazito.
— Matem este patife! — gritavam
as mulheres raivosas, com as lágrimas a saltarem-lhes dos olhos. — Matem!
A multidão crescia. Logo que
constou no mercado, quase todas as vendedeiras acudiram a ver. O Simão ia já
levado nos braços de uma, com a cabeça pendente no ombro dela, quando dentre o
povo, que seguia atrás, se ouviu este grito dilacerante:
— Ai! que ele é o meu filho!
E uma pobre mulher da aldeia
correu para ele aflita com os braços abertos. Era a Josefa, que, nesse dia,
tinha vindo a Braga. Andava a mercar na feira umas camisolas, que ia levar ao
filho. Ao ouvir os clamores do mulherio, adiantou-se para ver. Pobre mulher!
Tomou ela o Simão nos braços; e,
perdida pela aflição, caminhava à toa, sem destino, lamentando que lhe tinham
matado o filho do seu coração.
— Leve-o ao hospital — disseram
as mulheres que a acompanhavam.
Atravessaram as ruas, seguidas da
multidão, que ia engrossando de cada vez vez mais, até ao largo dos Remédios.
Chegadas ao hospital de São Marcos, a Josefa entrou só, subindo as escadas a
chorar. O facultativo fez deitar o pequeno, observou-lhe as contusões do corpo,
e disse:
— O homem que fez isto deve ser
preso!
O pequeno só cobrou os sentidos,
quando lhe aplicaram as compressas de arnica sobre os vergões. Principiou a
gemer, e a chamar pela mãe.
— Eu estou aqui, Simão — dizia a
Josefa debruçando-se sobre ele. — Não chores, meu filho.
— Eu morro, minha mãe — dizia o
pequeno, segurando-lhe as mãos, e levantando para ela os olhos suplicantes e
cheios de lágrimas.
O povo, que acompanhou o Simão ao
hospital, desandou em grande turba para casa do ferragista. Ali, ajuntou-se a
um magote, que estava já estacionado à porta. O patrão tinha desaparecido da
loja. Ao canto do balcão, o caixeiro, muito assustado pelo aspecto ameaçador da
gente, não se mexia.
— Morra o patife! — gritou uma
mulher.
— Morra! repetiram as outras.
E a multidão cresceu sobre a
loja.
Foi precisa a intervenção da
autoridade, reclamada pelos vizinhos do ferragista.
O administrador apareceu seguido
do escrivão e de alguns polícias, e ordenou ao povo que se dispersasse.
— Não saímos, sem que o malvado
seja preso — berrou um operário face a face ao administrador.
O agente da autoridade entrou na
loja. Passado pouco tempo a polícia foi reforçada pela cavalaria, que conseguiu
dispersar o ajuntamento. E, logo em seguida, o ferragista, pálido, a tremer,
olhando assustado para os dois lados da rua, atravessou-a a correr, entre polícias,
para dar entrada na cadeia!
***
No outro dia de manhã, o médico
do hospital mandou colocar o biombo em volta da cama do Simão.
— Está a manifestar-se a
congestão — explicou ele, baixo, à enfermeira.
Os outros doentes da enfermaria,
quando viram o médico falar confidencialmente, olharam uns para os outros,
desconfiados, com um ar abatido e triste. Ao longo de toda a sala havia um
grande silêncio, percussor do silêncio frio da morte. Os serventes do hospital
atravessavam por entre as filas das camas em bicos de pés.
Ás nove horas, a enfermeira
acendeu as velas de cera de dois tocheiros, que ladeavam a imagem do Senhor
crucificado, ao fundo da sala. Em seguida aproximou-se do leito do Simão.
Estava deitado de costas, com os olhos fixos já meio embaciados... Respirava
com opressão; e a boca entreaberta formava-lhe um traço escuro na palidez
cadavérica do rosto.
— Quer alguma coisa? — disse-lhe
a enfermeira ao ouvido.
— A minha mãe? — perguntou baixo
o moribundo.
— Ainda não veio.
Houve uma grande pausa.
— Quando ela vier — pediu o Simão
com uma voz débil — se eu tiver morrido, dê-lhe a cruz que tenho ao pescoço;
sim?
Parou um instante para respirar,
e acrescentou:
— É para a Lena.
A enfermeira tentou animá-lo,
dizendo-lhe que ele havia de melhorar.
Simão fez um leve sorriso de
descrença, e respondeu:
— Eu bem sei que morro... Ouvi o
médico dizê-lo há pouco... Ai! já me falta o ar! Oh! minha mãe!
Quando a Josefa chegou à porta do
hospital, o sino da capela começava a tocar a agonia!
A enfermeira esperou-a no
patamar, e disse-lhe que o filho estava a morrer. Havia então na sala um
silêncio lúgubre! Alguns enfermos, sentados no leito, murmuravam orações, com
as mãos postas em súplica. Ouvia-se, de quando em quando, um gemido que partia
do biombo.
A Josefa foi direita à cama do
Simão. Estava a expirar! Ainda reconheceu a mãe; porque, fixando nela os olhos
quase apagados, procurou com ansiedade a Lena. Como a não visse, rebentaram-lhe
duas grossas lágrimas, e murmurou baixinho:
— Adeus!
E estremeceu todo, exalando o
último alento em uma aspiração trêmula, como um suspiro de alívio!
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